Português: 03/01/2011 - 04/01/2011

quarta-feira, 30 de março de 2011

"A Portugal", Jorge de Sena

                    Esta é a ditosa pátria minha amada
                    Não, nem é ditosa porque o não merece,
                    nem minha amada, porque é só madrasta
                    nem pátria amada, porque eu não mereço
                    a pouca sorte de ter nascido nela.
                    Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
                    Quanto esse arroto de passadas glórias.
                    Amigos meus mais caros tenho nela
                    Saudosamente nela,
                    Mas amigos são por serem meus amigos
                    e mais nada.
                    Torpe dejecto de romano império,
                    Babugem de invasões,
                    Salsujem porca de esgoto atlântico,
                    Irrisória face de lama, de cobiça e de vileza,
                    De mesquinhez, de fátua ignorância.
                    Terra de escravos, de cu para o ar,
                    Ouvindo ranger no nevoeiro a nau do Encoberto.
                    Terra de funcionários e de prostitutas,
                    Devotos todos do Milagre,
                    Castos nas horas vagas, de doença oculta.
                    Terra de heróis a peso de ouro e sangue,
                    E santos com balcão de secos e molhados,
                    No fundo da virtude.
                    Terra triste à luz do Sol caiada,
                    Arrebicada, pulha,
                    Cheia de afáveis para os estrangeiros,
                    Que deixam moedas e transportam pulgas
                    (Oh!, pulgas lusitanas!) pela Europa
                    Terra de monumentos
                    em que o povo assina a merda
                    o seu anonimato.
                    Terra-museu em que se vive ainda
                    com porcos pela rua em casas celtiberas.
                    Terra de poetas tão sentimentais
                    Que o cheiro de um sovaco os põe em transe.
                    Terra de pedras esburgadas,
                    Secas como esses sentimentos,
                    De oito séculos de roubos e patrões,
                    Barões ou condes.
                    Oh! Terra de ninguém, ninguém, ninguém!
                    Eu te pertenço.
                    És cabra! És badalhoca!
                    És mais que cachorra pelo cio!
                    És peste e fome, e guerra e dor de coração!
                    Eu te pertenço!
                    Mas seres minha, não!

O Cheque

Roubado do blogue Portugal dos Pequeninos:


          «A imagem, por si, é a mensagem e a massagem. Uma escritora de livros infantis, ainda ministra da educação do Portugalório, contempla a aventura por vir. A seu lado, duas raparigas e dois rapazes - os "melhores" alunos do secundário -, em vez de exibirem livros, mostram réplicas de cheques que lhes devem ter sido entregues pelos "resultados". A educação não pode ser tratada como uma prostituta notória à semelhança do que ainda ontem aconteceu no parlamento. Agora é que sim. Agora é que não. Que lindo futuro.»

Semana Académica Coimbra 2011

quinta-feira, 24 de março de 2011

"Nevoeiro", Fernando Pessoa

          O primeiro-ministro (em minúsculas) demitiu-se; a dívida pública e privada é gigantesca; os juros exigidos pelos empréstimos que contraímos são descomunais; a crise está aí em todo o seu esplendor.

          Sobre a CRISE, ou crises, escreveu Pessoa na Mensagem o poema «Nevoeiro», precisamente o que encerra a obra:


NEVOEIRO

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer –
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo - fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer,
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a hora!


          O poema aponta claramente para um clima de degradação da pátria, de melancolia e tristeza, enfatizado pelo recurso a palavras e expressões que revelam negatividade ("Nem rei nem lei"; "Brilho sem luz", etc.), em suma, um ambiente de crise a vários níveis: político ("Nem rei nem lei, nem paz nem guerra"); moral ("Ninguém sabe que coisa quer, / (...) nem o que é mal, nem o que é bem"); de identidade ("ninguém conhece que alma tem"). A situação de Portugal era, portanto, de incerteza e indefinição. Ontem, tal como hoje: "Ó Portugal, hoje és nevoeiro...".

          Assim sendo, as circunstâncias exigem um golpe de asa, um esforço conjunto de resgate da situação disfórica que se vive. Parafraseando Pessoa, «É a hora!».

Populares

          O povo / os populares configura(m) uma personagem colectiva relevante na peça, como não poderia deixar de acontecer.
          O povo não possui qualquer poder nem um líder - embora deposite enormes esperanças no general -, o que faz com que surja na peça oprimido e completamente indefeso.
          O seu espaço privilegiado é a rua, retrato da sua miséria - fome, desemprego, ausência de habitação condigna ["Tens sete filhos com fome e com frio e vais para casa com as mãos a abanar. (...) E tu, qu enão comes desde ontem (...) Nenhum de vocês tem um tecto que os abrigue no Inverno, nenhum de vocês tem onde cair morto (...)"] -, da ignorância e do analfabetismo ("Talvez, se o ensinassem a ler..." - p. 36), da opressão e do terror, da desilusão e ausência de perspectivas.
           Nas palavras de Vicente, a sua miséria é tal que dirige a sua preocupação para o quotidiano e para a sobrevivência diária ("Interessa-lhe mais o preço do pão... Talvez, se o ensinassem a ler, tomasse conhecimento do «Eclesiastes»..." - p. 36), escasseando-lhe tempo para questões da filosofia política ou religiosa ("... e pouco se preocupa com a origem do poder." - p. 36).
          Não obstante todas as circunstâncias que marcam o seu quotidiano, o povo tem um grande sentido de justiça e de dignidade e uma elavada consciência. À semelhança do que sucede com Manuel, vê no general Gomes Freire o libertador da opressão, do medo e da miséria em que vive, depositando na sua acção toda a esperança, daí não ser de estranhar o desespero e a desilusão que o assalta quando toma conhecimento sua prisão e posterior condenação à morte.

          Por outro lado, esta personagem desempenha diferentes funções ao longo da peça:



  1. Coro, dado que as suas falas têm o valor de informação ou comentário dos acontecimentos;
  2. Inicia os dois actos, estabelecendo, no I, a ligação entre a acção e o espectador e relatando, no II, a prisão de Gomes Freire e o desespero de Matilde;
  3. Situa o espectador no tempo histórico, através das suas interrogações ("Onde aprendeu vocessemecê isso? Em Campo d'Ourique - já lá vão dez anos..." - pág. 18);
  4. No acto II, as falas populares revestem o carácter de informação / comentário sobre os episódios ao nível da acção dramática: "Passaram toda a noite a prender gente por essa cidade..."; "É por pouco tempo, amigo, espera pelo clarão das fogueiras..." (pág. 80).
          Em suma, o povo é uma personagem colectiva que representa o «grupo dos deserdados pela sorte e pelo berço», dos que servem e são explorados, que recebem esmola e são tratados indignamente pela classe dominante, que trabalham e são explorados.

Principal Sousa

          Principal Sousa, a figura que representa o poder religioso, é, em nossa opinião, de todas, a personagem mais odiosa da peça. Porquê? Desde logo, porque deveria representar o BEM e, por isso, estar ao lado do povo humilhado, explorado, oprimido e ignorante. No entanto, pelo contrário, Principal Sousa personifica uma Igreja contrária aos princípios cristãos e ao exemplo de Jesus Cristo: autocrática, dogmática, conservadora nos usos e costumes, falsa e hipócrita, defensora dos seus interesses, daí o seu comprometimento com o poder político (a equivalência à relação, em determinados períodos do Estado Novo, entre a Igreja católica, representada pelo Cardeal Cerejeira, e o Presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar).

          Defensor do despotismo iluminado ("É de origem divina o poder dos reis e é portanto a sua - e não a do povo - a voz de Deus." - p. 36), é um obscurantista, na medida em que defende a manutenção do povo na ignorância para que, desse modo, o poder opressivo e tirânico possa manter o seu reinado livremente. É uma forma de assegurar o sufocar da revolta popular ("... a sabedoria é tão perigosa como a ignorância! Ambas podem afastar o homem de Deus e do seu caminho." - p. 36) - que receia (p. 40) -, pois a ignorância impede que o povo seja capaz de reflectir sobre si, sobre a sua existência, sobre os mecanismos do poder opressivo e de os questionar. Assim, também não é de estranhar que ele odeie os ideais revolucionários e os franceses ("... perdoe o ódio que tenho aos Franceses..." - p. 39), acusando-os de serem responsáveis pelo espírito revolucionário que germina e que poderá contribuir para o fim do seu consulado.

          Por outro lado, dá voz a determinadas ideias do Salazarismo: a conservação de um povo «pobre mas feliz» (pág. 40). Odeia Beresford ("O principal não gosta de Beresford..." - p. 41), que considera um herege (pág. 41), mas aceita e submete-se à sua presença porque tem consciência de que precisa do seu auxílio para manter o poder (p. 59). Além disso, é vingativo, pretendendo justificar a condenação do general com uma ofensa que este terá praticado relativamente ao seu irmão ("Agora me lembro de que há anos, em Campo d'Ourique, Gomes Freire prejudicou muito a meu irmão Rodrigo!" - p. 72).

          Adopta, sucessivamente, uma postura calculista e cínica. Por exemplo, mostra-se falsamente preocupado com a possibilidade de se condenar um inocente (p. 60), mas é denunciado por Beresford, que lhe diz que está nas suas mãos impedi-lo. Faz uso constante de uma linguagem pejada de termos religiosos, invocando periodicamente a figura divina para justificar os seus actos, como se agisse em seu nome. Não obstante, o seu inconsciente parece atormentá-lo: sonhou com o seu julgamento e com a sua condenação à forca (p. 68), o que o deixa aterrado e sem dormir.

          Vive deformado pelo fanatismo religioso, evidenciando uma ausência aflitiva de valores éticos e um paternalismo falso, oco e beato. Daí a sua linguagem estereotipada, paternalista e falsamente compreensiva. Acaba por ser Matilde a desmascará-lo e humilhá-lo.

          Em suma, a figura de principal Sousa representa:
  1. o conluio entre a Igreja e o Poder;
  2. a política do orgulhosamente sós, princípio em que se espelha, mais uma vez, o Salazarismo;
  3. o não cumprimento da sua missão, evidenciada pela hipocrisia, pela ausência de valores éticos e morais consonantes com a ética cristã e pela cobertura que dá à injustiça.

quarta-feira, 23 de março de 2011

D. Miguel Forjaz

          D. Miguel Forjaz pertence ao grupo das personagens do PODER, do qual fazem parte igualmente Principal Sousa e William Carr Beresford, formando um núcleo que comprova a existência de diversos interesses em jogo no que à regência do reino diz respeito: os da nobreza, os dos oficiais ingleses e os da Igreja católica. Por outro lado, os três comungam ainda do medo que possuem relativamente ao movimento liberal por este poder pôr em causa a rígida hierarquia da governação e, assim, ameaçar os privilégios de que beneficiavam.

          D. Miguel é o representante, na peça, da nobreza e de uma das três formas de poder: o civil. Trata-se de uma figura prepotente e sectária, religiosa e absolutista. É alguém reaccionário, que não aceita as ideias de liberdade, personificada pelo general Gomes Freire de Andrade. Não obstante serem primos, odeia-o porque põe em causa o seu poder e porque lhe reconhece qualidades que ele não possui. Assim, sentindo-se ameaçado pelas novas ideias e pelo ambiente revolucionário que se vai instalando, executa um plano ardiloso para forjar a condenação do general, assumindo, sem rebuço, o seu maquiavelismo, ao afirmar que os fins justificam os meios. Desde logo, encarrega Vicente da missão de vigiar a casa de Gomes Freire e dar notícia dos seus contactos e movimentações (p. 38), prometendo-lhe, como recompensa, a chefia de um posto de polícia.

          D. Miguel defende o abafar rápido e imediato da revolução de qualquer forma e por qualquer meio, sem contemplações ou receios de recorrer à violência e à brutalidade ("Temos de a impedir com tal brutalidade que ninguém volte a conjurar neste Reino... Se não o fizermos, se tivermos piedade, ou escrúpulos, mais tarde ou mais cedo voltaremos ao mesmo." - p. 43) de forma a conservar o seu poder. Nesse sentido, procura incriminar quem lhe convém e não se preocupa em procurar os verdadeiros conspiradores ("A pergunta é: quem deverá, ou convirá, que tenha sido o chefe da revolta?" - p. 60), saindo da sua boca afirmações que remetem para o salazarismo: "Não há inocentes, Reverência. Em política, quem não é por nós, é contra nós." - p. 60).

          O processo que leva à condenação do general revela um D. Miguel corrupto («compra» os denunciantes, com Vicente à cabeça), ameaçador, manipulador e estratega, recorrendo a argumentos convincentes para alcançar os seus desígnios. Deste modo, no intuito de convencer Beresford a alinhar no seu plano, dado que este receia perder o seu posto e a sua tença, descreve Gomes Freire como um soldado brilhante, um homem inteligente e um herói popular, e, ao procurar o apoio de Principal Sousa, relembra-lhe que o general é grão-mestre da Maçonaria e um estrangeirado. Não obstante, revela sempre ser medroso e até cobarde, por exemplo, quando não é capaz de receber Matilde de Melo, no acto II, que se lhe dirige procurando libertar o «marido». Por outro lado, defende um julgamento secreto e uma execução célere para evitar possíveis perdões ("... o julgamento será secreto, e para evitar o perdão de el-rei, a execução seguir-se-á imediatamente à sentença." - p. 65), o que significa que quem for acusado, automaticamente, mesmo antes de ser julgado, já está condenado.

          Nas palavras de Sousa Falcão (pp. 116-117), D. Miguel é «frio, desumano e calculista. Odeia Gomes Freire (...) é a personificação da mediocridade consciente e rancorosa.» e «... um cristão de domingo (...) todos os dias dá, a um pobre, pão que lhe baste para se conservar vivo até morrer de fome...» - o oposto do seu primo. Por outro lado, é desumano, vingativo e cruel, por exemplo, quando afirma que «Lisboa há-de cheirar toda a noite a carne assada. (...) o cheiro há-de-çhes ficar na memória durante muitos anos...», ou «Temos de a impedir [à revolução] com tal brutalidade que ninguém volte a conjurar neste Reino...» (pp. 71-72).

          Na sua qualidade de governador, personifica o pequeno tirano, insensível, inseguro e prepotente, que é avesso ao progresso e à modernidade, mantendo o povo na miséria, na ignorância e no obscurantismo, pois a situação reverte a seu favor. O seu discurso enquadra-se perfeitamente no da época do Estado Novo (séc. XX), girando em torno da retórica e lógica ocas e demagógicas, construindo verdades falsas - assinalem-se, a título exemplificativo, as ideias do «ardor patriótico», da construção de «um Portugal próspero e feliz, com um povo simples, bom e confiante, que viva lavrando e defendendo a terra, com os olhos postos no Senhor...». Por outro lado, a sua megalomania e prepotência aliam-se à cobardia e ao calculismo político, num ser desprovido de integridade e corrupto. O processo de condenação do general evidencia, ainda, a aliança da traição, do despeito e da vingança, sentimentos motivados por aquela figura: «Senhores Governadores: aí tendes o chefe da revolta. Notai que lhe não falta nada: é lúcido, é inteligente, é idolatrado pelo povo, é um soldado brilhante, é grão-mestre da Maçonaria e é, senhores, um estrangeirado. (...) Se eu fosse falar do ódio que lhe tenho...» (pp. 97-98).

          Além disso, personifica a ambição desmedida, o egoísmo e o desejo de perpetuação da opressão, do absolutismo, das injustiças e diferenças sociais: «Não concebo a vida, Excelências, desde que o taberneiro da esquina possa discutir a opinião d'el-rei, nem me seria possível viver desde que a minha opinião valesse tanto como a de um arruaceiro. Pergunto-vos, senhores: que crédito, que honras, que posições seriam as nossas, se ao povo fosse dado escolher os seus chefes?» (p. 43).

Brecht

          A peça Felizmente há Luar! é um drama narrativo que surge na linha do teatro épico de Bertold Brecht, dramaturgo de origem alemã nascido na Bavária em 1956, um dos reformadores do teatro do século XX. Dentre as suas obras, as mais conhecidas entre nós são as peças Ópera dos Três Vinténs (1928), Mãe Coragem e seus Filhos (1941) e O Círculo de Giz Caucasiano (1949). Além de escritor, Brecht foi encenador e director da Companhia Berliner Ensemble. A temática recorrente dos seus textos gira em torno da luta dos oprimidos.

          Os fundamentos do teatro épico são os seguintes:
a. o teatro épico é um teatro didáctico;
b. tem uma função ideológica precisa;
c. designa-se épico no sentido em que é sobretudo narrativo, processando-se essencialmente pela argumentação, em detrimento da sugestão;
d. o teatro deve ser um instrumento de construção e transformação social, dado que deve intervir activamente no curso dos factos históricos e constituir-se como meio para mudar uma época, a partir de uma abordagem racional por parte do espectador;
e. a representação teatral deve tomar como ponto de partida a realidade envolvente, denunciando as injustiças sociais e procurando levar o espectador a reflectir, a reagir criticamente, a tomar uma posição crítica sobre essa realidade - estamos na presença de um novo espectador: crítico e interventivo, que toma partido;
f. ao contrário do drama aristotélico, o espectador do teatro épico não se deve identificar ou emocionar com a realidade que lhe é mostrada através da representação ou como herói da peça;
g. de facto, o drama segundo Brecht já não se destina a criar o terror (fobos) e a piedade (eleos) no espectador.
          O conceito fundamental do teatro épico é, no entanto, o da distanciação histórica, cujo objectivo passa pela promoção da reflexão do espectador sobre uma realidade que lhe é próxima, recorrendo para isso à encenação de factos históricos.
          Através de uma fábula, isto é, através do retrato de um acontecimento passado que apresenta pontos de contacto com o presente, pretende-se levar o espectador a olhar o mundo de forma lúcida e crítica. Ou seja, a peça deve abordar um tema histórico que funcione como metáfora (na peça de Sttau Monteiro, a realidade representada - a prisão e condenação do general Gomes Freire no século XIX - funciona como metáfora da realidade portuguesa do tempo da escrita - 1961).
          A distanciação possibilita um olhar crítico e uma tomada de posição do espectador perante a realidade que lhe é mostrada e, consequentemente, perante a realidade em que vive. Confrontado com situações de injustiça e de opressão social, ele toma consciência de que a realidade circundante não é imutável e que é capaz de a alterar.
          Por outro lado, as personagens devem distanciar-se do que representam, permitindo que o espectador compreenda que estão ao serviço de uma ideia, de uma denúncia, agindo de modo a não contribuir para que o espectador as confunda com o que representam. Dito de outra forma, a personagem deve ser entendida como porta-voz de uma consciência, cabendo-lhe fazer com que o público não se identifique consigo, antes compreenda que ela é uma máscara, um processo de denúncia.
           Por sua vez, o cenário é muito pouco caracterizado. Como verificamos no Felizmente há Luar!, apenas são referenciados alguns elementos que nos remetem para determinados espaços sociais (por exemplo, as três cadeiras «pesadas e ricas com aparência de trono» - pág. 47 - ilustram as três faces do poder; o «caixote» no qual se sentam uma «velha» - pág. 16 - caracteriza os oprimidos).
          O gestus promove também a distanciação na medida em que abarca um conjunto de atitudes que aponta para a relação do indivíduo com o mundo que o rodeia, podendo servir para indicar um posicionamento de classe (na peça, o 1.º Popular ora macaqueia os modos de um fidalgo, ora «desfaz o gesto com violência» - pág. 17 -, para denunciar que ali ninguém tem relógio, compreendendo-se que assim é porque as condições socioeconómicas não o permitem).
          Quanto à iluminação, contribui para o efeito da distanciação através da incidência ou não, em determinadas personagens, da luz, pretendendo, deste modo, o autor realçar as suas opções ideológicas.
          Os efeitos de som - por exemplo, o ruído dos tambores - contribuem para a distanciação porque apresentam uma função intimidatória, opressora dos populares e de todos os que se opõem ao Poder: «Começa a ouvir-se, ao longe, o ruído dos tambores» (pág. 17).

          Por último, nota para o facto de a influência de Brecht se reflectir sobretudo no primeiro parágrafo, pois o segundo aflora essencialmente as emoções de Matilde resultantes da prisão do marido e do seu percurso em busca da sua salvação, apresentando uma natureza dramática.

Festa...

terça-feira, 22 de março de 2011

Os delatores: Andrade Corvo e Morais Sarmento

          O grupo dos delatores / traidores (Vicente, Andrade Corvo e Morais Sarmento) funciona como uma espécie de grupo-sombra que age segundo os seus interesses e conveniências, obtidos através do exercício do Poder, não demonstrando quaisquer princípios ou valores éticos e morais em se vender ("Meu amigo: você desconhece o que se compra de respeitabilidade com uma pensão anual de 800$00..." - pág. 47). Com efeito, o seu papel na peça «resume-se» à provocação e à denúncia, pelo qual são premiados e não castigados, como seria desejável. No fundo, estas figuras corporizam o meio utilizado pelos governadores para alcançarem o seu fim: a condenação de Gomes Freire de Andrade (daí serem apelidados, ironicamente, de «patriotas»).

          Andrade Corvo é um oficial do exército («Mau oficial, ignorante...»), «... promovido pela denúncia, já que o não pode ser por mérito.». Ex-maçon, ambicioso e materialista ("800$ por ano!" - pág. 45), é um delator que possui grande poder argumentativo, como o comprova o diálogo que mantém com Morais Sarmento, quando este aparenta alguns escrúpulos por estar a contribuir para a condenação de um inocente, em que vence esses receios e hesitações do companheiro. O seu nome liga-se à simbologia disfórica do corvo, ave de mau agouro. Dedicado à «causa» do Poder, representado pelos três governadores, que o consideram bem vestido (vaidoso) e «amigo dos prazeres») pretende ser promovido pela denúncia. É esta personagem que confirma aos três governadores a existência de uma conspiração e o nome do general Gomes Freire de Andrade como líder da mesma.

          Por seu turno, Morais Sarmento é capitão do exército, inseguro e hesitante, aparentando ficar atormentado pelos remorsos e pela sua consciência e receando ser rotulado de traidor por causa do processo que levará à condenação à forca do general Gomes Freire ("O que vão dizer de nós" - pág. 46; "Muitos duvidarão."; "Chamar-nos-ão denunciantes" - pág. 47; "Não falarão connosco."; "Os nossos filhos..."). Todos estes pretensos rebates de consciência são ardilosamente desmontados pelo companheiro de denúncia, Andrade Corvo, que o convence, dessa forma, a prosseguirem a sua senda, facto que poderá significar que as preocupações e a sua consciência de culpa de Morais Sarmento são, meramente, aparentes.

          Estas duas personagens, além das características que as individualizam, funcionam como um par, um «mini-grupo», pois comungam da maioria dos traços que constituem o seu retrato. De facto, ambos são denunciantes e corruptos, vendendo-se a troco de dinheiro e de uma promoção; ambos são tratados com superioridade pelos governadores, que os apelidam ironicamente, como atrás já ficou esclarecido, de «patriotas»; ambos surgem em cena exclusivamente no acto I, visto que a sua missão termina quando pronunciam o nome do general como o chefe da conjura. Por outro lado, nunca andam sozinhos, dado que, não sendo honestos, necessitam constantemente de testemunhas que comprovem os seus falsos testemunhos / depoimentos: «Defendem-se sempre, andando em grupo, tal é o conhecimento que têm de si mesmos...».

          Pelo que acima ficou resgistado, pode concluir-se que as figuras em análise neste «post» representam os delatores por excelência, aqueles que não possuem qualquer escrúpulo em trair, em mentir, em abdicar de quaisquer ideais, para satisfazer os seus interesses e os obscuros «interesses patrióticos» dos governadores. Por outro lado, põem a nu o exército português, pela sua desorganização e pela ausência de qualidade(s) de alguns soldados, oficiais e capitães para desempenharem adequadamente os seus cargos.

"Sealed with a kiss", Brian Hyland


25/02/1992 - "Sealed with a kiss"

sexta-feira, 18 de março de 2011

Bibliofilmes

         O prazo de entregra / envio dos Bibliofilmes aproxima-se.

          Para que possam compreender o tipo de trabalhos que poderão construir, preenchendo eventuais ausências de inspiração, aqui ficam alguns dos vencedores de 2010, que poderão consultar (além de muitos outros) em http://bibliofilmes.com/.


1. Tétrio, vazio e gelado: vencedor Curtas BiblioFilmes



2. Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos: vencedor Prémio Trailer de Livros



3. O rabo do esquilo: vencedor Curta BiblioFilmes (votação popular) (1.ª parte)


4. Aventura na Quinta das Lágrimas: melhor Trailer de Livros (selecção do júri)

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Estrutura interna

 
(c) Aula Viva - Português A - 12.º Ano (Porto Editora) 

quinta-feira, 17 de março de 2011

Ode à Mentira

                    Crueldades, prisões, perseguições, injustiças,
                    como sereis cruéis, como sereis injustas?

                    Quem torturais, quem perseguis,
                    quem esmagais vilmente em ferros que inventais,
                    apenas sendo vosso gemeria as dores
                    que ansiosamente ao vosso medo lembram
                    e ao vosso coração cardíaco constrangem.
                    Quem de vós morre, quem de por vós a vida
                    lhe vai sendo sugada a cada canto
                    dos gestos e palavras, nas esquinas
                    das ruas e dos montes e dos mares
                    da terra que marcais, matriculais, comprais,
                    vendeis, hipotecais, regais a sangue,
                    esses e os outros, que, de olhar à escuta
                    e de sorriso amargurado à beira de saber-vos,
                    vos contemplam como coisas óbvias,
                    fatais a vós que não a quem matais,
                    esses e os outros todos… – como sereis cruéis,
                    como sereis injustas, como sereis tão falsas?
                    Ferocidade, falsidade, injúria
                    são tudo quanto tendes, porque ainda é nosso
                    o coração que apavorado em vós soluça
                    a raiva ansiosa de esmagar as pedras
                    dessa encosta abrupta que desceis.
                    Ao fundo, a vida vos espera. Descereis ao fundo.
                    Hoje, amanhã, há séculos, daqui a séculos?
                    Descereis, descereis sempre, descereis.

                                                                     Jorge de Sena

terça-feira, 15 de março de 2011

"Lisbon Revisited (1923)" e "Going Down Town" - Proposta de correcção

Proposta de reposta da ART

          O título do poema, «Lisbon Revisited», poderia ser o título da imagem que observamos no quadro de Miguel Yeco. De certa forma, esta imagem faz-nos lembrar a cidade de Lisboa tal como ela é retratada na décima estrofe do poema.
          O quadro mostra-nos uma rua antiga de uma cidade triste, escura e sombria, iluminada por um céu azul-marinho e um sol tardio. Este céu é o único elemento que alegra o quadro, tal como o céu azul de que o poeta fala quando se refere à sua infância, a única altura da sua vida em que foi feliz.
          Observando o quadro de Yeco com mais atenção, constatamos que nele há muitas parecenças com a cidade de Lisboa de outrora e de hoje, nomeadamente, o castelo no cimo da colina, que nos faz lembrar o castelo de São Jorge. Os prédios antigos, altos, escuros e sombrios que se erguem de ambos os lados de uma rua íngreme e sombria, onde não se vê uma única pessoa, fazem-nos lembrar uma viela dos bairros típicos de Lisboa.
          A rua que é retratada no quadro é uma rua solitária e sem vida, que dá a sensação de tristeza, parecendo que caminhamos num abismo sem fim.
          As palavras que o poeta utiliza para descrever a «Cidade Revisitada» são as mesmas que poderíamos utilizar na descrição do quadro de Yeco. A imagem que nele podemos observar é uma imagem «eterna», «vazia», «macia» (no sentido de calma e solitária), «ancestral» e «muda».
          Tal como o poeta sente uma mágoa profunda na sua «Lisbon Revisited», também nós, ao passarmos pela rua retratada no quadro, nos sentimos pequenos, magoados e deprimidos no meio de prédios tão altos, tão escuros e tão assustadores. Nesta rua, sentimo-nos infelizes, tal como o poeta não é feliz nesta cidade que nada lhe dá, nada lhe tira e nela nada sente a não ser mágoa.



Proposta de resposta da SP

          Neste quadro de Miguel Yeco, conseguimos observar no horizonte um castelo e o céu (o pôr-do-sol). O castelo encontra-se no alto de uma colina e a partir daí a única coisa que conseguimos ver são casas, ou seja, construções modernas que apagaram todos os vestígios da antiga cidade que ali existiu, ficando apenas o castelo e o imutável céu.
          Ora, é isto mesmo que o sujeito poético nos diz na décima estrofe do poema, que Lisboa mudou e que se sente como um estrangeiro nela. As únicas coisas que se assemelham ao que Lisboa fora outrora são o céu e o Tejo. O sujeito poético, ao ver Lisboa (ou a recordar a imagem que tinha dela), sente nostalgia e saudade da infância que ali passou (a melhor altura da sua vida). No entanto, esta já não é a sua Lisboa, mas sim Lisboa Revisitada («Lisbon Revisited»).
          Podemos ainda contemplar neste quadro uma grande escuridão que nos remete para tristeza, angústia e solidão. São também estes os sentimentos que podemos encontrar ao longo do poema e são também estas as emoções que surgem no sujeito poético ao revisitar Lisboa.



Proposta de resposta da AI

          O poema, cujo título é «Lisbon Revisited», de Álvaro de Campos, pertence à terceira fase do autor, uma fase intimista ou independente marcada pela abulia, pelo tédio, pela angústia.
          Na penúltima estrofe deste poema, o sujeito poético começa a recordar a imagem que tinha de Lisboa no passado e a nostalgia de tudo de bom que parecia existir na sua infância. Nesta estrofe, podemos, então, comparar Álvaro de Campos ao seu ortónimo Fernando Pessoa, pois este também descrevia a saudade da sua "idade de ouro". Apesar de o passado não ter sido perfeito, ambos encaram pior o presente e falam da infância como a única oportunidade de uma suposta felicidade. O tempo que o sujeito poético recorda é um pedaço da sua vida de outrora e descreve-o como sendo um tempo agradável e de felicidade. A Lisboa de outrora que o poeta revisita é a Lisboa da infância, simbolizada em Lisboa, e o presente asfixia-o, porque se caracteriza pelo estado de consciência, de racionalidade, o que lhe causa a dor de pensar, tal como Fernando Pessoa.
          Desta Lisboa, o sujeito poético já não reconhece nada, nem nada lhe desperta sentimento nem vontade de encarar este local como pedaço de vida presente ("Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.").
          Comparando o conteúdo da décima estrofe deste poema com o quadro de Miguel Yeco, podemos observar a tal Lisboa de outrora que o sujeito poético revive com saudade.
          Miguel Yeco é um pintor que se caracteriza por pintar a "figurinha" solitária de Fernando Pessoa e, neste poema, Álvaro de Campos assemelha-se àquele.
          No quadro, no canto inferior direito, conseguimos avistar uma parte do corpo de Fernando Pessoa, bem como no canto da parede do prédio. Este parece encontrar-se na Lisboa de hoje, mas revivendo a Lisboa de outrora, pois o sujeito poético deste poema apenas deseja relembrar a sua agradável infância na sua Lisboa antiga. No quadro "Going Down Town", de 1986, podemos ver a Lisboa de outrora, pois vemos os candeeiros nas paredes dos prédios com os seus rendelhados de ferro, vemos os prédios antigos, com janelas altas e escuras. Só o céu tem uma cor viva, azul, "(...) o mesmo da minha infância (...)".
          Assim, podemos concluir que o quadro descreve a infância e a Lisboa de outrora que Álvaro de Campos retrata no poema. O sujeito poético revista a Lisboa de hoje, apenas relembrando e imaginando a Lisboa de outrora.

sábado, 12 de março de 2011

"Lisbon Revisited (1923)" e "Going Down Town"

          Relacione o título do poema - «Lisbon Revisited (1923)» - e o conteúdo da décima estrofe com o quadro de Miguel Yeco.

Miguel Yeco, Going Down Town (1986)



                               Lisbon Revisited (1923)

                               Não: não quero nada.
                               Já disse que não quero nada.

                               Não me venham com conclusões!
                               A única conclusão é morrer.

                               Não me tragam estéticas!
                               Não me falem em moral!
                               Tirem-me daqui a metafísica!
                               Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
                               Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) -
                               Das ciências, das artes, da civilização moderna!

                               Que mal fiz eu aos deuses todos?

                               Se têm a verdade, guardem-na!

                               Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
                               Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
                               Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

                               Não me macem, por amor de Deus!

                               Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
                               Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
                               Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
                               Assim, como sou, tenham paciência!
                               Vão para o diabo sem mim,
                               Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
                               Para que havemos de ir juntos?

                               Não me peguem no braço!
                               Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
                               Já disse que sou sozinho!
                               Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

                               Ó céu azul - o mesmo da minha infância -,
                               Eterna verdade vazia e perfeita!
                               Ó macio Tejo ancestral e mudo.
                               Pequena verdade onde o céu se reflecte!
                               Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
                               Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

                               Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
                               E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

                                                                                                                    Álvaro de Campos

sexta-feira, 11 de março de 2011

Correcção do teste (4.º)

Grupo I


TEXTO A


1. A metáfora “O plantador de naus a haver” remete para os pinhais mandados plantar por D. Dinis que são já, virtualmente, as naus das Descobertas – o futuro adivinhado. A figura do rei é apresentada, assim, como aquela que cria condições para as navegações futuras, como uma espécie de intérprete de uma vontade superior.

2.1. Efeitos de sentido:

          a) Com a madeira dos pinhais construíram-se as naus com as quais Portugal viria a
              construir o seu império marítimo.

          b) A palavra «trigo» pode ter o sentido de «abundância», «ausência de fome», «riqueza»,
              «sobrevivência».

3. Elementos que evidenciam o destino mítico de Portugal:
          - os pinhais plantados por D. Dinis;
          - o rumor dos pinhais;
          - «esse cantar»;
          - o «som presente»;
          - a «voz da terra».

4.1. Esta metáfora apresenta-nos o «cantar» do rei como um regato que corre em direcção a um «oceano por achar», querendo com ela apontar para a ideia de que nesse passado – do «cantar» se adivinha já o futuro das descobertas, simbolizado pelo oceano ainda não descoberto, ainda não desvendado.



TEXTO B


1 – V

2 – F

3 – F

4 – V

5 – V



Grupo II

1 – d

2 – d

3 – b

4.1. – a

5.1. O advérbio desempenha a função sintáctica de modificador frásico / de frase.

5.2. O predicativo do sujeito é «a que fica, esperando, imóvel, na felicidade e no sonho do regres-so».

6.
   1 – d
   2 – h
   3 – a
   4 – g
   5 – f

7.
   a) A oração é uma oração subordinada substantiva relativa.

   b) As orações são ambas coordenadas disjuntivas.

"Esta velha angústia"

          Todo o poema se desenvolve em torno da expressão da angústia do sujeito poético.

          Logo a abrir, o deíctico demonstrativo «esta» (repetido em anáfora nos versos 1 e 2 com a finalidade de expressar o estado de alma do sujeito) e o adjectivo qualificativo «velha» remetem para a temática da angústia, para a sua presentificação.
          O sujeito poético pretende comunicar que a angústia o consome (o complemento preposicional «em mim» relaciona-o precisamente com esse sentimento) e é real ("Esta (...) angústia, / Esta angústia» - vv. 1-2; «este mal-estar» - v. 9) e se vem a desenvolver na sua alma («em mim» - v. 2), desde a idade da razão, desde que começou a tomar consciência de si («velha» - v. 1; «que trago há séculos em mim» - v. 2 - notar a hipérbole, para mostrar o enraizamento, a duratividade da angústia, já sugerida pela expressão «trago (...) em mim»).
          Por outro lado, a angústia do sujeito poético é «tanta» e dura há tanto tempo que «transbordou da vasilha» (metáfora - v. 3), isto é, ele (o seu coração, a sua alma) já não comporta mais, por isso não a pode esconder e tem de a exteriorizar através das lágrimas, de grandes imaginações, de sonhos e de grandes emoções  (vv. 4 a 6) - notar a anáfora, a estrutura paralelística e os nomes abstractos que designam os sentimentos e as emoções. Além disso, a adjectivação («grandes») sugere que as «imaginações» e as «emoções» são muito numerosas, muito intensas ou muito elevadas e distanciadas da realidade. Por outro lado, os nomes abstractos «pesadelo» e «terror» traduzem o carácter opressivo dos sonhos, o que os torna semelhantes a pesadelos, embora sem o medo que eles instilam («sem terror»). Por último, convém atentar no valor expressivo do modificador preposicional «sem sentido nenhum», que destaca a desproporção entre a intensidade das sensações experimentadas e a falta de lógica da sua existência.

          Na segunda estrofe, despojado de qualquer argumento, em anáfora com o verso 3,

quinta-feira, 10 de março de 2011

Semana Académica Viseu 2011


          E eis que chegamos àquela época em que se multiplicam as semanas académicas...

          Além dos problemas ortográficos, há a referir a ausência, no cartaz, da alusão à Serenata, a realizar no dia 3, pelo grupo «Toada Coimbrã».

segunda-feira, 7 de março de 2011

Epigrama - Gregório de Mattos

Juízo anatómico dos achaques de que padecia o corpo da República em todos os membros, e inteira definição do que em todos os tempos é a Bahia

                    Que falta nesta cidade?... Verdade.
                    Que mais por sua desonra?... Honra.
                    Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha.

                    O demo a viver se exponha,
                    Por mais que a fama a exalta,
                    Numa cidade onde falta
                    Verdade, honra, vergonha.

                    Quem a pôs neste rocrócio?... Negócio.
                    Quem causa tal perdição?... Ambição.
                    E no meio desta loucura?... Usura.

                    E que justiça a resguarda?... Bastarda.
                    É grátis distribuída?... Vendida.
                    Que tem, que a todos assusta?... Injusta.

                    Valha-nos Deus, o que custa
                    O que El-Rei nos dá de graça.
                    Que anda a Justiça na praça
                    Bastarda, vendida, injusta.

          Substituamos o nome «Bahia» pelo de Portugal e o texto de Gregório de Mattos (Bahia, 1633-1696), também conhecido por Boca do Inferno, escrito no século XVII, aplica-se, sem a mais pequena alteração, à situação que se vive hoje no nosso rectângulo.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Gomes Freire de Andrade

          Embora nunca apareça em cena, Gomes Freire de Andrade - amado pelo povo e odiado pelos governadores - é a personagem central e constitui o elemento estruturador da acção:
  • origina a sequência de episódios da peça;
  • é o símbolo da luta pela Liberdade e pela Justiça;
  • atrai a admiração e a esperança do povo miserável e oprimido;
  • atrai, por oposição, a desconfiança e o ódio dos governadores.
  • a sua prisão, condenação e execução constituem o centro das conversas e condicionam o comportamento das restantes personagens.

          Apesar de estar fisicamente ausente (de facto, nunca surge em cena / palco), domina os pensamentos e as preocupações das restantes personagens, daí que o seu retrato seja traçado a partir do que elas nos dão a conhecer sobre ele.


1. Para o POVO:
  • é considerado um mito / é mitificado ("Para esta cambada, o Freire é Deus." - pág. 24);
  • é idolatrado (pelo povo);
  • é carismático;
  • é admirado ("Fala com entusiasmo." - pág. 20);
  • representa a liberdade;
  • é um amigo, «um homem às direitas»;
  • é humano e corajoso («Não é um santo, é um homem como todos nós.»);
  • é o único capaz de enfrentar «os senhores do Rossio».

2. Para o ANTIGO SOLDADO:
  • é um militar - general ("No regimento de Freire d'Andrade" - pág. 18);
  • defende / representa a liberdade ("No regimento de Freire d'Andrade / São cantadas com o estilo / De lá ré ó liberdade." - pág. 18);
  • é "Um amigo do povo" (pág. 20);
  • é justo, recto, honesto ("Um homem às direitas!" - pág. 20), sendo, pelas suas qualidades, único, diferente dos restantes ("Quem fez aquele não fez outro igual..." - pág. 20);
  • é um herói ("Vê-se que Gomes Freire é o seu herói." - pág. 20);
  • não é oportunista; é humano e um igual ao povo ("Não é um santo, é um homem como todos nós..."- pág. 23).

3. Para MANUEL:
  • deposita no general a sua (única) esperança de enfrentar o poder instituído e lutar pela liberdade ("Se ele quisesse..." - pág. 21);
  • é forte, corajoso, valente ("... é capaz de se bater com os senhores do Rossio..." - pág. 23);
  • é o único "capaz de se bater com os senhores do Rossio" (pág. 23).

4. Para VICENTE:
  • é um general como os outros, que se serve do povo quando dele necessita e depois o abandona à sua sorte;
  • ignorará o sofrimento do povo, não o retirando da opressão e da miséria
  • é um estrangeirado ("O teu general, então, é perfeito: nem sequer é português... (...) Estrangeirado: estrangeirado é que ele é!" - pág. 23);
  • é idolatrado pelo povo ("Para esta cambada, o Freire é Deus." - pág. 24; "... a ninguém tem o povo mais amor do que ao primo de V. Excelência." - p. 34), que nele deposita toda a sua esperança numa revolução ("Em ninguém põe o povo mais esperança do que no general..." - p. 34).

5. Para BERESFORD:
  • é um oficial de patente elevada, com um grande passado militar (p. 64);
  • considera-o inimigo natural dos governadores pelas suas qualidades ("Trata-se de um inimigo natural desta regência." - pág. 71);
  • é seu inimigo pois receia ser substituído por ele e, assim, perder os privilégios de que disfruta, entre os quais se conta a tença que recebe por comandar o exército.;
  • é incómodo porque «... devendo, por nascimento e posição, defender certos interesses, defende outros...» (p. 96).

6. Para D. MIGUEL:
  • considera-o lúcido, inteligente, idolatrado pelo povo, um soldado brilhante, grão-mestre da Maçonaria e um estrangeirado (p. 71);
  • considera-o um "inimigo natural desta regência" (p. 71);
  • considera-o um traidor, daí a necessidade da sua morte: "Morte ao traidor Gomes Freire d'Andrade!" (p. 74);
  • consciente de que não possui a capacidade de comunicação do primo, receia que este ponha em causa o seu lugar na regência e lhe retire a sua projecção como estadista.;
  • considera-o incómodo, já que «... devendo, por nascimento e posição, defender certos interesses, defende outros...» (p. 96).

7. Para PRINCIPAL SOUSA:
  • odeia os franceses, os maçons, porque os considera responsáveis pela falta de respeito a Deus e à Igreja ["São muitos os inimigos do Senhor (...). Fala-se de Deus com ironia e da sua Igreja como se de letra morta se tratasse. Os piores, Srs. Governadores, são os pedreiros-livres (...). Quem será o chefe da Maçonaria?" - pág. 67]. Por ser considerado estrangeirado, Gomes Freire de Andrade representa os franceses, cuja influência faz com que o povo cante "... pelas ruas subservivas." (pág. 40).

8. Para MATILDE:
  • constitui uma ameaça ao Poder, mesmo que não tenha sido conspirador: «Olhe que nem saía de casa com medo que o povo o aclamasse. Juro-lhe que nunca conspirou.» (p. 95);
  • é o seu homem;
  • é o paradigma da honestidade, da verdade, da lealdade: «(...) dizem a verdade (...) vêem para além da cortina de hipocrisia com que os poderosos escondem a defesa dos seus interesses...» (p. 95);
  • não é ambicioso nem adulador: «Vê para além das medalhas que usais no peito...» (p. 96);
  • é ousado, corajoso e destemido: «... olha para vós de frente e sorri...» (p. 96);
  • é valente, justo e leal;
  • está inocente do crime que lhe procuram imputar, isto é, conspirar contra o Poder («... ele não cometeu qualquer crime.» - p. 95).

9. Para SOUSA FALCÃO:
  • é o oposto de D. Miguel Forjaz: «É franco, aberto e leal...» (p. 117) e sabe perdoar, ao contrário do primo, que é «calculista e medíocre»;
  • é um homem corajoso, o exemplo da luta por um ideal, um daqueles «... homens que obrigam todos os outros homens a reverem-se por dentro...» (p. 137).

10. Para FREI DIOGO:
  • é um santo: «Se há santos, Gomes Freire é um deles...» (p. 126);
  • «Foi um grande privilégio que Deus lhe concedeu - o de viver ao lado dum homem como o general Gomes Freire.» (p. 127).

          Em suma, o general Gomes Freire de Andrade é apresentado como:
  • um homem culto, educado e letrado (um estrangeirado");
  • o símbolo da luta pela liberdade e pela defesa dos ideais contrários à prática dos "reis do Rossio";
  • o símbolo da modernidade e do progresso, adepto das novas ideias liberais, por isso considerado pelos governantes subversivo e perigoso, daí que preencha todos os requisitos para ser o bode expiatório do ambiente de revolta;
  • símbolo da integridade e da recusa da subserviência, da capacidade de liderança e de coragem na defesa dos ideais em que crê;
  • culpado (pelos detentores do poder) porque "... é lúcido, é inteligente, é idolatrado pelo povo, é um soldado brilhante, é grão-mestre da Maçonaria e é, senhores, um estrangeirado..." (p. 71);
  • um homem cuja morte remete para a manutenção de uma ideologia fossilizada, num país estagnado e assolado pelo medo, pela denúncia e pela suspeição (p. 63);
  • um homem cuja morte é duplamente aviltante enquanto militar, pois é enforcado e depois queimado, quando a sentença adequada para ele na qualidade de elemento do exército seria o fuzilamento; por outro lado, a morte pretende ser uma lição para todos aqueles que ousarem afrontar o poder político.
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