Português: 04/11/12

domingo, 4 de novembro de 2012

Análise do Poema XXXVI - "E há poetas que são artistas"

            Neste poema, cujo tema é a reflexão sobre o processo de criação poética e a sua relação com a Natureza, Caeiro reflete sobre poesia, contrapondo duas conceções.
            A primeira é a dos poetas que designa, ironicamente, por artistas, que a veem como um trabalho, uma construção, que constroem os seus poemas verso a verso, que valorizam o lado artificial ou mecânico do ato de criação: “trabalham nos seus versos / Como um carpinteiro nas tábuas” (comparação); “pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro / E ver se está bem, e tirar se não está!” (comparação e exclamação). Estas comparações com um carpinteiro e com os pedreiros servem para destacar o trabalho formal, minucioso e exigente, dos poetas que se dedicam a essa poesia elaborada e produzida como outras construções humanas. Dito de outra forma, expressam a preocupação desses poetas com a seleção das palavras, da combinação de rimas / sonoridades, de arranjos estilísticos, de ritmos poéticos, de dimensionamento dos versos, etc., ou seja, uma noção de poesia que exige trabalho de dimensionamento, equilíbrio, polimento e construção dos versos, pensando muito a experiência. No fundo, Caeiro está a criticar todos aqueles que não conseguem ser espontâneos (verso 4) no ato de criação poética, facto que o leva a manifestar estranheza e a sentir pena deles, antes a encaram como um trabalho árduo de intelectualização.
            Ora, para Caeiro, “a poesia não é um trabalho nem uma convicção, é uma forma de revelar os mistérios da Natureza” e de se assemelhar cada vez mais a ela (Nuno Hipólito, No Altar do Fogo). Esta é a segunda conceção de poesia, a que se afirma quando o «eu» poético se declara um fruidor incondicional da Natureza, que “está sempre bem e é sempre a mesma”. Aparentemente, não há absolutamente nada a mudar nela. Deste modo, a criação poética deve resultar espontaneamente da identificação do «eu» poético com a Natureza. Assim se explica o seu lamento relativamente a esses poetas: “Que triste não saber florir” (exclamação), ou seja, que triste não comungar da naturalidade, simplicidade e espontaneidade da Natureza e não ser capaz de fazer da criação poética uma ação natural e espontânea. Ele considera que é “triste” ter de trabalhar os versos “como um carpinteiro nas tábuas” e não ser capaz de os fazer “florir” sem artifícios, de uma forma simples e natural. Ora, sendo a Natureza a verdadeira arte, a poesia deverá ser como ela, isto é, a expressão sensorial, nítida, fluida do que nos rodeia.
            Por outro lado, insiste na relação íntima com a Natureza, a fonte de inspiração e criação poética: “a única casa artística é a Terra toda” (v. 7 – metáfora). Por isso, porque a harmonia já existe nela, não é necessário intelectualizar o ato de escrita. O essencial em poesia é registar o mundo que o rodeia de forma tão natural e espontânea como é o ato de florir ou respirar (v. 9). Caeiro é o poeta da Natureza que privilegia o olhar, daí que tenha apenas de estar atento ao que ela “diz”.
            Mesmo reconhecendo a impossibilidade de compreensão entre ele e as flores, o sujeito poético sabe que em ambos – na Natureza e na comunhão do homem com ela – mora a verdade e que há uma “comum divindade” que lhes permite usufruir dos encantos da Terra, das “Estações contentes” e dos cânticos do vento (personificação). Para que tal suceda, é necessário evitar a abstração do pensamento e privilegiar uma relação natural, espontânea (“como quem respira”) com a “única casa artística” que é a “Terra toda”. Ora, é esse contacto com a Natureza a única forma de aceder à “verdade” (v. 13). Note-se o desprendimento da vida em harmonia com os elementos naturais (“De nos deixarmos ir e viver pela Terra” – v. 15), uma espécie de mãe protetora que o leva ao colo, que embala e transmite paz e tranquilidade (v. 17), evitando a existência de “sonhos” – sonhar é pensar, na medida em que se constitui como uma atividade mental durante o sonho. É, no fundo, mais uma afirmação da recusa do ato de pensar, de rejeição de qualquer atividade mental que se oponha à autenticidade dos elementos da Natureza que descreveu.

            No poema, em suma, Caeiro expõe a sua “teoria poética”, que pode resumir-se ao seguinte: a poesia é o simples ato de captar a Natureza através dos sentidos de forma espontânea, de acordo com uma relação de comunhão e harmonia. Noutro comprimento de onda, movimentam-se os poetas que fazem da poesia um trabalho árduo de intelectualização, de exposição de conceitos e combinação artística das palavras. Repetindo, estamos perante o confronto entre uma forma de elaborar poesia caracterizada pela simplicidade, objetividade, espontaneidade, naturalidade, e outra artificial, muito pensada e elaborada.
            Em consonância com estes princípios e com o tipo de poesia que defende, este poema é caracterizado pelo versilibrismo, pela ausência de rima e pela linguagem simples, com um vocabulário igualmente simples e repetitivo (“está”, “sempre”), pertencente aos campos lexicais da poesia (“poetas”, “versos”) e da Natureza, fonte inspiradora do sujeito lírico (“florir”, “Terra”, “flores”, “Estações”, “vento”), bem como pelo uso de expressões familiares e comparações com elementos naturais.
            Por outro lado, a adjetivação é escassa, resumindo-se à presença de quatro adjetivos: “triste”, “artística”, “comum” e “contente”. No que diz respeito à estruturação sintática, predomina as orações coordenadas copulativas, típicas do discurso oral, em detrimento da subordinação, embora haja a assinalar a presença de orações subordinadas temporais, relativas restritivas e infinitivas.
            A pontuação expressiva concorre de igual modo para conferir ao poema um certo tom coloquial.
            A nível estilístico, destaca-se a escassez de figuras, verificando-se o uso dos recursos semântica e sintaticamente mais simples, como a comparação (vv. 3 e 5), a metáfora (vv. 1, 4 e 6), a personificação (vv. 16 e 17), a anáfora (vv. 16-18) e o polissíndeto (repetição da conjunção coordenativa copulativa «e», que acentua o estilo simples de Caeiro, estabelecendo a ligação sumativa como processo de acumulação de argumentos.

            Em suma, o poema XXXVI evidencia alguns dos traços centrais da poética de Alberto Caeiro:
. o sensacionismo: “”E levar ao como pelas estações contentes / E deixar que o vento cante para adormecermos” (vv. 16 e 17);
. a atitude antimetafísica, de recusa do pensamento: “Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira.” (v. 9); “E não termo sonhos no nosso sono.” (v. 18);
. o objetivismo: “E olho para as flores e sorrio… (v. 10);
. a espontaneidade e naturalidade: “Que triste não saber florir!” (v. 4);
. o paganismo, isto é, a crença em diversas divindades: “Mas sei que a verdade está nelas e em mim / E na nossa comum divindade” (vv. 13 de 14);
. o panteísmo, ou seja, a doutrina segundo a qual Deus e o mundo seriam uma só substância, não sendo aquele um ser pessoal distinto deste): “Mas sei que a verdade está nelas e em mim / E na nossa comum divindade” (vv. 13 de 14);
. o misticismo, quer dizer, a atitude afetiva caracterizada pela crença na possibilidade de comunicação direta com o divino, inacessível ao conhecimento racional): “”Mas sei que a verdade está nelas e em mim” (v. 13), “De nos deixarmos ir e viver pela Terra / E levar ao colo pelas estações contentes” (vv. 15 e 16), “E não termos sonhos no nosso sono.” (v. 18).

            Por outro lado, são visíveis alguns dos traços que aproximam Caeiro do ortónimo e dos outros heterónimos:

. Caeiro e Pessoa:
- a linguagem simples;
- a musicalidade espontânea e natural do discurso, que leva por vezes a quebrar a regularidade métrica;
- a tendência de Caeiro para o refúgio na Natureza, uma tentativa de evasão, uma certa recusa do pensamento (“Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira”), que denunciam a inquietação constante e a intelectualização do sentir (marcas de Pessoa);
- divergem pelo facto de Pessoa fazer uso da regularidade estrófica e rimática, ao contrário de Caeiro.

. Caeiro e Reis:
- aceitação natural das coisas (“… a única casa artística é a Terra toda / Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma”);
- o elogio da vida campestre, a fazer lembrar a áurea mediania clássica: “De nos deixarmos ir e viver pela Terra / E levar ao colo pelas estações contentes / E deixar que o vento cante para adormecermos…”.

. Caeiro e Campos:
- são ambos espontâneos;
- voltam-se para o exterior;
- cultivam o verso livre;
- são sensacionistas: privilegiam as sensações em detrimento do pensar (a segunda fase de Campos). 

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