Português: 18/06/14

quarta-feira, 18 de junho de 2014

"Não gosto do brasileiro", Alexandre Martins

A minha rua estava deserta. Horas antes daquele jogo, o esqueleto, o peco, o bijas e outros ranhosos como eu tínhamos ocupado os nossos lugares cativos no passeio para arrasarmos aquela ideia estúpida de que no futebol tudo pode acontecer: o Brasil ia ganhar à Itália e não se falava mais nisso.
Eles tinham o calcanhar de Sócrates, os passes de Falcão e a força de Leovegildo Lins da Gama Júnior, ou apenas Júnior – um defesa que também jogava no meio-campo e que foi obrigado a resumir a imponência do seu nome completo a um modesto apelido só para caber nos cromos da Panini. Todos eles eram Zico dos pés à cabeça.
E nós, na Rua 3, tínhamos o esqueleto, o peco, o bijas e outros ranhosos como eu, à falta de uma selecção portuguesa para apoiar nesse Mundial. E também tínhamos o brasileiro.
Nascido em Angola e neto de portugueses, foi parar à minha rua da mesma forma que quase todos nós tínhamos ido parar à nossa rua. Mas isso era coisa de adultos: eles ainda discutiam se o Mário Soares era bom ou era mau, e nós discutíamos se o Serginho tinha lugar na selecção do Brasil. (É claro que não tinha).
O certo é que todos nós também éramos Zico. Uns nos pés, outros na cabeça, outros só quando adormeciam e começavam a sonhar.
Os pés do Zico eram do peco, que fintava toda a gente, ia lá à frente marcar um golo e ainda regressava a tempo de fintar a própria sombra; o esqueleto ficou com a cabeça, que levantava para ver onde ia pôr a bola enquanto rodopiava sobre si mesmo e nos mantinha à distância com os longos braços.
Eu estava no meio, só que no meio errado: tinha a precisão de passe do peco e a fantasia do esqueleto, precisamente a soma dos zeros de cada um deles. (Ainda hoje me gabo de ter sido a criança magra que mais vezes foi à baliza em toda a história do futebol de rua).
Mas agora a minha rua estava deserta. Por um qualquer fenómeno que ainda hoje resiste às leis da ciência e aos mistérios da religião, o Brasil acabara de perder com a Itália, em Espanha, e tudo na minha rua ficou diferente. Nem a rulote do Nando, que vendia as melhores pastilhas Gorila de Portugal, voltou a abrir nesse dia.
Eu e os meus amigos tínhamos acabado de receber a primeira lição de vida através do futebol. Uma lição que ainda hoje me acompanha sempre que me levanto da cama: faças o que fizeres, nunca vistas de amarelo.
Mal acabou o jogo, os pais do brasileiro pegaram nele e foram morar para o Brasil. Há quem diga que passaram quatro anos entre uma coisa e outra, mas não é essa a recordação que eu tenho da mentira que contei na frase anterior.
Eu, o esqueleto e o brasileiro éramos os melhores amigos. Separar aquele grupo foi como arrancar o Zico ao Sócrates e ao Falcão. Ainda hoje falo sobre futebol com o esqueleto, que perdeu o direito à alcunha em meados da década de 1990. Mas não falo muito com o brasileiro porque já não gosto dele. Não gosto do brasileiro porque ele se foi embora.


(c) Alexandre Martins, in Público

Exame Nacional de Português 12.º Ano - 2014 - Correção (1.ª chamada)

Grupo I


1. A construção e o voo inaugural da passarola resultam da conjugação das capacidades e dos esforços das três personagens:
– o padre Bartolomeu de Gusmão contribui com o saber científico e a inteligência – «viajei à Holanda» (linha 19); «estou subindo ao céu por obra do meu génio» (linhas 22 e 23);
– Baltasar contribui com a sua força e o seu trabalho manual – «Puxa, Baltasar» (linha 5); «por obra da mão direita de Baltasar» (linha 24);
– Blimunda contribui com os seus poderes sobrenaturais, que permitem ver o que escapa ao olhar humano – «por obra também dos olhos de Blimunda» (linha 23); num momento de hesitação, é também ela quem leva Baltasar a agir – «Blimunda aproximou-se, pôs as duas mãos sobre a mão de Baltasar, e, num só movimento, como se só desta maneira devesse ser, ambos puxaram a corda.» (linhas 6 a 8).

2. Num primeiro momento, Baltasar e Blimunda começam por ser apanhados de surpresa pelo súbito movimento da passarola – «tinham caído no chão de tábuas da máquina» (linhas 14 e 15); «Não tinham medo, estavam apenas assustados com a sua própria coragem» (linha 26). Depois, erguem-se, ficam deslumbrados e deixam de estar assustados.
Num segundo momento, as reações individualizam-se:
– Baltasar dá largas à sua alegria – «Ah, e Baltasar gritou, Conseguimos, abraçou-se a Blimunda e desatou a chorar, parecia uma criança perdida» (linhas 31 e 32); «e agora soluça de felicidade» (linha 33);
– Blimunda mantém a calma e o discernimento – «Então Blimunda disse, Se não abrirmos a vela, continuaremos a subir, aonde iremos parar, talvez ao sol.» (linhas 37 e 38).

3. O padre manifesta um estado de euforia, pois sente-se realizado e vitorioso pelo facto de ter conseguido concretizar o seu sonho de voar.
Esta euforia é enfatizada pela evocação de situações anteriormente vividas pelo padre, as quais, pela relevância que assumiram, aumentam agora o seu contentamento:
– a viagem à Holanda para aquisição de saber – «o mar por onde viajei à Holanda» (linha 19);
– o apoio discreto de D. João V – «se me visse el-rei» (linhas 20 e 21);
– a troça de que foi alvo – «se me visse aquele Tomás Pinto Brandão que se riu de mim em verso» (linha 21);
– a perseguição da Inquisição – «se o Santo Ofício me visse» (linhas 21 e 22).

4. O peixe voador simboliza o homem ambicioso, que não tem consciência dos limites impostos pela sua
natureza e pelas suas capacidades.
      Para evidenciar esta característica, o pregador faz referência ao comportamento dos peixes voadores que, por possuírem grandes barbatanas, agem como se fossem aves e pudessem voar.

5. A inconsciência e a presunção do peixe voador fazem-no correr riscos inúteis e graves, pois, para além
de poder ser vítima dos perigos do mar, é vítima das velas e das cordas dos navios, perigos do ar – «o
Voador toca na vela ou na corda, e cai palpitando» (linhas 11 e 12). Assim, encontra frequentemente a
morte – «Aos outros peixes mata-os a fome e engana-os a isca, ao Voador mata-o a vaidade de voar, e a
sua isca é o vento.» (linhas 12 e 13).



Grupo II

          Versão 1          Versão 2

1.1.        B (interpretação idealista daquilo que o rodeia)

1.2.        C (mantém-se inalterada)

1.3.        A (passou a integrar o real de forma mais complexa)

1.4.        D (da dificuldade dos leitores em entenderem a literatura subsequente)

1.5.        C (uma metáfora)

1.6.        A (obrigação)

1.7.        D (expositivo)
NOTA: De acordo com os critérios do GAVE, a opção correta é a C - argumentativo. Com a devida dose de humildade perante a sapiência de quem elaborou a prova e os respetivos critérios, é nossa opinião que esta pergunta não faz sentido e está mal formulada, dada a «proximidade» entre o texto expositivo e o argumentativo, bem exemplificada no excerto indicado.

2.1. Predicativo do sujeito

2.2. Oração subordinada adjetiva relativa explicativa

2.3. Ato ilocutório compromissivo
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