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terça-feira, 11 de outubro de 2022

Análise de Os Lusíadas: Canto IX, estâncias 88-95


Contextualização
 
            Após a narração das dificuldades vividas em Calecute, o Poeta conta o regresso dos marinheiros à pátria. A meio da viagem, Vénus prepara-lhes uma recompensa, a Ilha dos Amores, onde serão recebidos pelas ninfas amorosas. Este episódio começa no canto IX e prolonga-se pelo X, quase até ao final do poema, e constitui uma alegoria, representando o prémio que, em local ameno e harmonioso, é atribuído aos homens pelo seu esforço, heroísmo e feitos.
            A armada avista a Ilha dos Amores e, depois de os marinheiros desembarcarem para caçar e abastecer as naus de água fresca, Camões descreve o contacto com as ninfas.
            Tétis explica a Vasco da Gama que a Ilha é o prémio merecido pelas façanhas realizadas, indicando, também, as glórias futuras que estão reservadas ao povo português.

 
Análise da reflexão
 
1.ª parte (estância 88) – Transição do plano amoroso para o da reflexão sobre o significado da Ilha dos Amores – o Poeta explica o significado da Ilha dos Amores: ela representa a imortalidade só atingida por quem realiza feitos sublimes.
 
Como serão os marinheiros recompensados pelo feito de terem chegado à Índia?
- na companhia das ninfas;
- num ambiente alegre e de prazer;
- usufruindo das maravilhas da Ilha.
 
Significado da Ilha dos Amores: a Ilha é uma alegoria da fama e da imortalidade.

A Ilha constitui o prémio (“O prémio lá no fim, bem merecido” – est. 88, v. 7) pelos “feitos grandes” e pela ousadia (“Porque dos feitos grandes, da ousadia” – est. 88, v. 5) da “forte e famosa” (est. 88, v. 6) gente portuguesa e o reconhecimento pelos “trabalhos tão longos” (“Os trabalhos tão longos compensando” – est. 88, v. 4), que garantirão aos heróis lusitanos “fama grande e nome alto e subido” (est. 88, v. 8), honra, fama e glória (“Aquelas preminencias gloriosas, / Os triunfos, a fronte coroada / De palma e louro, a glória e maravilha: / Estes são os deleites desta Ilha.”).

 
 
2.ª parte (estâncias 89 a 91) – Explicitação, em pormenor, do significado da Ilha.
 
Em que consiste essa recompensa?

A fama: “Com fama grande…” (est. 88, v. 8).

A mitificação: “nome alto e subido” (est. 88, v. 8).

A imortalidade: o contacto dos humanos com as ninfas confere-lhes um estatuto divino.

Os prazeres da Ilha são os sucessos, as vitórias alcançadas por mérito próprio (estância 89).

 
Trata-se, em suma, do reconhecimento pelos “feitos grandes”, pela “ousadia” e pelo esforço. Esta simbologia significa que a fama e a glória estão ao alcance de qualquer ser humano que se destaque pelos seus feitos e conduta virtuosa.
 
• Já na Antiguidade se atribuíam prémios e recompensas aos heróis.
 

• Que prémio era esse?

A imortalidade: os homens subiam ao Olimpo, tornavam-se, assim, deuses, imortais: “Que as imortalidades que fingia / A antiguidade, que os Ilustres ama, / Lá no estelante Olimpo, aquém subia / Sobre as asas ínclitas da Fama”.

Os dois versos iniciais da estância 90 são muito expressivos, pois significam que, à semelhança do que sucede com a Ilha dos Amores, os deuses da Antiguidade eram apenas representações simbólicas do prémio que é sempre atribuído àqueles que norteiam a sua existência pela virtude – a possibilidade de serem imortalizados pela fama.

 
Quem era premiado?

Os homens que realizavam feitos ilustres, grandes ações; aqueles que percorriam um caminho árduo, difícil, cheio de perigos: “Por obras valerosas que fazia, / Pelo trabalho imenso que se chama / Caminho da virtude, alto e fragoso…”. Assim, encontravam o prazer, o deleite, a satisfação: “Mas, no fim, doce, alegre e deleitoso”.

 
A personificação do verso 4 da estância 90 significa que a Antiguidade fazia subir os homens ilustres ao Olimpo nas asas da Fama.
 
Qual é o papel da Fama?

Atribuir a imortalidade.

A estância 91 serve como confirmação desta ideia: a imortalidade era um prémio dado aos homens, devido aos “feitos imortais e soberanos” (“Não eram senão prémios que reparte, / Por feitos imortais e soberanos, / O mundo cos varões que esforço e arte / Divinos os fizeram, sendo humanos”). Por isso, obtiveram nomes divinos: “Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte, / Eneas e Quirino e os dous Tebanos, / Ceres, Palas e Juno com Diana, / Todos foram de fraca carne humana.”.

 
Qual é o objetivo do Poeta com a referência à Antiguidade?

É uma estratégia para convencer os homens do seu tempo a seguirem o exemplo dos clássicos. De facto, as figuras da Antiguidade citadas (Júpiter, Mercúrio, etc.) surgem como argumento do Poeta para convencer os contemporâneos a alterar a sua atitude, combatendo os vícios, bem como para conferir importância ao caminho a percorrer para atingir a imortalidade.

A enumeração de nomes próprios dos versos 5 a 8 da estância 91 indica-nos que antes de serem deuses, logo imortais, todos foram humanos e mortais. De facto, as divindades começaram por ser humanos, tendo ascendido ao patamar divino por “esforço e arte” e “feitos imortais e soberanos”, o que lhes valeu a imortalidade. Assim, o Poeta sugere que os Portugueses podem e merecem passar pelo mesmo processo de mitificação.

 
Expressividade da conjunção «Que» (estância 89, v. 1 e est. 90,v. 1): a conjunção possui, neste caso, um valor de causa. A finalidade do Poeta é justificar a razão pela qual o episódio da Ilha dos Amores e a relação entre as ninfas e os marinheiros portugueses são simbólicos, visto que não existiram. De facto, constituem uma mera representação alegórica da fama e do reconhecimento dos feitos dos marinheiros, elevando-os à condição de deuses.
 
 
3.ª parte (estâncias 92 a 95) – Alargamento da reflexão a questões políticas, sociais e religiosas.
 
Os quatro versos iniciais da estância 92 apontam outro papel da Fama: divulgar os feitos do herói e conferir-lhe atributos (atente-se na expressividade da metáfora e da personificação “Mas a Fama, trombeta de obras tais…”: na Antiguidade, cabia à Fama o papel de dar a conhecer por toda a parte o herói e os seus feitos. A Fama anuncia os feitos realizados como se fosse uma trombeta, para que todos possam ouvir, isto é, reconhecer o mérito dos seus autores. A trombeta é tradicionalmente usada como instrumento para anunciar o início de uma batalha ou a chegada de uma figura importante.
 
Desta forma, prepara a exortação que se segue: o Poeta (através de uma apóstrofe e de formas verbais no imperativo – «Despertai» –, da adjetivação – «ignavo», «livre» – e do uso da segunda pessoa do plural – «vós», «estimais») dirige-se a todos os que estimam a Fama, que querem ser famosos e incentiva-os a mudar o seu comportamento, a abandonar o ócio.
 
Valor expressivo da apóstrofe «ó vós» (est. 92, v. 5): o Poeta dirige-se aos que desejam ser famosos como os deuses da Antiguidade Clássica (“Se quiserdes no mundo ser tamanhos”). A Ilha dos Amores é uma alegoria para a fama, para a honra, para a mitificação.
 
Conselhos do Poeta àqueles que querem alcançar a fama e a imortalidade – vícios a evitar:

Combater a preguiça: “Despertai já do sono do ócio ignavo” (est.92, v. 7).

Evitar a cobiça e a ambição: “E ponde na cobiça um freio duro, / E na ambição também…”.

Evitar a tirania: “… e no torpe e escuro / Vício da tirania infame e urgente.”.

Promover a igualdade perante a lei, garantindo a imparcialidade e a justiça: “Ou dai na paz as leis iguais, constantes”.

Impedir a exploração dos mais fracos: “Que aos grandes não deem o dos pequenos” (antítese).

Combater contra os muçulmanos: “Ou vos vesti nas armas rutilantes, / Contra a lei dos imigos Sarracenos”.

 
Comentários do Poeta:

i) As “honras vãs, esse ouro puro”, obtidas sem espaço e sem mérito, não dão “Verdadeiro valor” às pessoas.

ii) É melhor merecer a honra e os bens materiais sem os ter, do que tê-los e não os merecer.

 
Quais são os ideais a perseguir, segundo o Poeta?

- Justiça;

- Igualdade;

- Fraternidade;

- Lealdade;

- Vontade;

- Honestidade.

 
Recursos expressivos:
- Hipérbole: “Tomais mil vezes”.
- Imperativo: “ponde”.
- Vocabulário com pendor crítico: “torpe”, “vício”, “infame”, etc.
 
Efeitos dos conselhos do Poeta, se forem seguidos:

i) O reino será maior e poderoso: “Fareis os Reinos grandes e possantes”;

ii) Haverá igualdade na distribuição dos bens: “E todos tereis mais e nenhum menos”;

iii) Todos terão honra e fama: “Possuireis riquezas merecidas, / Com as honras que ilustram tanto as vidas.”;

iv) O Rei será mais ilustre e esclarecido, devido ao apoio, aos conselhos sensatos e à lealdade: “E fareis claro o Rei que tanto amais, / Agora cos conselhos bem cuidados, / Agora co as espadas, que imortais”;

v) Tornar-se-ão imortais como os seus antepassados: “Vos farão, como os vossos já passados”;

vi) Serão eternamente reconhecidos como heróis: “Sereis entre os Heróis esclarecidos / E nesta «Ilha de Vénus» recebidos.”

 
Advertência do Poeta: não há limites para o ser humano, pois quem quis sempre conseguiu. Só com a força de vontade se alcança a glória: “Impossibilidades não façais, / Que quem quis, sempre pôde”.
 
Expressividade da metáfora “E nesta ilha de Vénus recebidos” (est. 95, v. 8): neste verso, o Poeta retoma a ideia apresentada na estância 89 (“Ilha angélica pintada.”). A Ilha simboliza as honras, sendo que, para as alcançar, para se ser recebido na “Ilha de Vénus”, é necessário adotar os comportamentos e as atitudes que o Poeta sugere.
 
 
Síntese

            O Professor Carlos Reis, in Rimas e Os Lusíadas (pp. 98 e 99), Leituras Orientadas, Porto Editora, considera que há a reter desta reflexão as seguintes conclusões gerais:

1.ª) O episódio da Ilha dos Amores representa a vida sublimada (isto é, exaltada e engrandecida; est. 89). O homem que se distinguiu pelo seu esforço e pelas suas obras tem direito a uma existência que, sendo terrena, não se limita (como se pensava na Idade Média) ao sacrifício para se alcançar a salvação. A vivência amorosa não é, então, moralmente condenada; aliás, por causa do amor, a condição humana ganha novo vigor e os homens são elevados ao nível dos deuses.
 
2.ª) O estatuto sobre-humano a conceder aos marinheiros manifesta-se do seguinte modo:

Através da submissão das Ninfas aos navegantes, juntamente com o tratamento concedido a Vasco da Gama, incluindo as revelações que lhe são feitas acerca das consequências da viagem (est. 10 e seguintes).

Pela comparação dos «varões» (incluindo os nautas) com os deuses (Júpiter, Mercúrio, etc.) que, antes de serem divindades, foram também humanos. Isto significa que também os homens podem ascender ao estatuto de deuses, desde que o mereçam.

Assim, é legítimo aspirar à Fama, se ela for conseguida pelo esforço e pela superação do «ócio ignavo» (est. 92, v. 7).

A procura da Fama não se coaduna com determinados comportamentos, nomeadamente a ambição desmedida, a tirania, o culto da injustiça, etc., e que caracterizam os homens do tempo do Poeta.

O serviço prestado ao Rei (“fareis claro o Rei que tanto amais”, est. 95, v. 1) tem de ser, então, a preocupação daqueles que, na paz ou na guerra santa contra os infiéis, merecem ser recebidos na Ilha dos Amores.

 
            Um exemplo deste serviço desinteressado, que Camões não invoca aqui, mas que surgirá mais adiante, é a escrita do poema épico como ato patriótico.

terça-feira, 26 de abril de 2022

Análise da cena 16 da Farsa de Inês Pereira - Monólogo de Inês



● O Moço reentra em cena trazendo uma carta para Inês que lhe foi enviada pelo seu irmão, que também se encontrava no mesmo local onde estava Brás da Mata, em Arzila.
 
Tempo
 
            Por uma fala do Moço, ficamos a saber que já passaram três meses desde que o Escudeiro partiu para África, porém, para Inês, o marido teria partido há menos tempo.
 
● Que informações traz a carta?

▪ O irmão pede a Inês que tenha coragem.

▪ O Escudeiro morreu.

▪ Foi morto por um pastor quando fugia de uma batalha, em Arzila.

 
Simbologia da carta: a missiva representa a liberdade de Inês, a possibilidade de um recomeço.
 
● Como reagem Inês e o Moço à notícia?

        O Moço sente-se triste, enquanto Inês manifesta felicidade, alegria e alívio. Esta antítese realça a oposição de sentimentos provocados pela morte do Escudeiro: a tristeza do Moço (fingida ou verdadeira, por ficar desamparado), a alegria de Inês, por se libertar do casamento que a aprisionava.

 
● Como se explicam estas reações?

        O Moço sempre criticou as atitudes do Escudeiro e denunciou a sua pobreza, decadência e falta de valores. Deste modo, podemos questionar a sinceridade da sua reação e subentender que as suas palavras encerram alguma ironia, ou seja, a pena e a tristeza podem ser fingimento, mas também se pode considerar que a sua tristeza é autêntica, por ficar desamparado.

        Por seu turno, para Inês, acabou-se o casamento (“Desatado é o nó.” – metáfora), acabou-se o cativeiro. Assim sendo, está livre e pode recomeçar a vida.

 
● Inês manda o Moço embora (“Dai-me cá essa chave / e ide buscar vossa vida.”) e expressa toda a sua alegria: “Mas que nova tão suave!”. De seguida, decide não pôr luto e salienta o seu caráter: forte com uma mulher frágil e fraco e cobarde na guerra. Além disso, manifesta-se desiludida, frustrada, revoltada e arrependida de ter casado com um homem arrogante, desrespeitador, fingido, dissimulado e hipócrita. Tudo em Brás da Mata era fingido e falso: começou por se apresentar como um homem bem-falante, cortês e que prometia um casamento feliz a Inês. Depois de casado, mostrou que a primeira impressão era falsa, pois comportou-se e fez o contrário do que tinha prometido. A sua fuga do campo de batalha mostrou que também a sua coragem era falsa.
 
● A cena termina com o desejo de Inês: ela deseja um «muito manso marido», ou seja, alguém que seja calmo, de temperamento fácil, que lhe faça todas as vontades, “pera boa vida gozar”.
 
● O casamento com o Escudeiro serviu-lhe de lição. Ela aprendeu com a experiência: “Não no quero já sabido, / pois tão caro há de custar”.
 
● Pela cena, podemos verificar que o conceito de «liberdade» se alterou ao longo da peça para Inês:
→ inicialmente: sinónimo de casamento com um homem da corte;
→ após o casamento: consciência de que o casamento pode ser sinónimo de cativeiro, subjugação;
após a notícia da morte do Escudeiro: opção por um “muito manso marido” como forma de emancipação / libertação.
 
● Este passo da farsa relembra a cantiga de escárnio e maldizer “Dom Foão, que eu sei que há preço de livão”, dado que, tanto o dito D. Foão como Brás da Mata se revelam fracos e cobardes na guerra – Brás da Mata morre às mãos de um pastor ao fugir da batalha e a figura da cantiga foge para Portugal assim que vê os cavaleiros inimigos.
 
 
● A crítica:
-» a ironia de Inês quando recebe a carta de Arzila:
. “Já ele partiu de Tavila?” (v. 896);
. “Para mim era valente
E matou-o um mouro só!” (vv. 926-927);
-» o cómico de caráter: o contraste entre a aparência e a realidade do carácter do Escudeiro Personagem pobre e covarde, mas dissimulando, na elegância do seu discurso, na variedade das suas prendas – tocar, cantar – e na fanfarronice solene todas as suas fraquezas e misérias), culminando com a notícia da sua morte e da forma como ocorreu, ou seja, morto por um pastor quando fugia da batalha.
 

terça-feira, 19 de abril de 2022

Análise da cena 15 da Farsa de Inês Pereira - Monólogo de Inês

 
● Inês fica fechada em casa a lavrar e a cantar, lamentando a sua sorte. A cantiga que entoa (“Quem bem tem e mal escolhe / por mal que lhe venha nam s’anoje”) demonstra que a jovem que tem todas as condições para viver feliz e faz uma má escolha não pode queixar-se do mal que lhe acontece.
 
● Em que se baseia esta mágoa de Inês? Desiludida e desencantada, compreende que teve a oportunidade de casar com um homem de bem, Pero Marques, mas iludiu-se e rejeitou-o, não lhe restando outra alternativa que não resignar-se com a situação.
  De facto, ela acreditava que os fidalgos fossem homens gentis, simpáticos e cavalheiros com as suas mulheres, apesar de corajosos, audazes, destemidos e impiedosos na guerra, no entanto compreende que o facto de um homem ser nobre não significa que seja respeitador e educado, por isso renega o modelo de marido imaginado até então. Ela queria casar com um cavaleiro culto e de boas maneiras, mas Brás da Mata revela-se exatamente o oposto do que ela sonhara.
 
● Lembrando-se do seu marido, que a maltrata, Inês alude a um ditado popular que diz que quem procede como aquele procedeu é um homem covarde, o que reforça a sua convicção.
 
● Assim, Inês jura que, se ficar solteira de novo, como ela deseja, só se casará com um marido dócil, que lhe faça todas as vontades, que ela possa dominar e lhe permita fazer na vida o que bem entender. Deste modo, vingar-se-ia da situação que vive no presente (“Deste mal e deste dano”). Esta caracterização encaixa perfeitamente em Pero Marques, pois a sua simplicidade, a dedicação, a promessa de esperar pela decisão de Inês, apesar do desdém com que foi tratado, indiciam que ele será um marido humilde e submisso.
 
 
Estado de espírito de Inês
 
            Inês mostra-se desiludida e revoltada com a sua situação e constata que foi precipitada e imprudente aquando da escolha do marido. Além disso, arrepende-se de não ter optado por um pretendente mais dócil e promete vingar-se do seu destino.
 

 

Inês

Casamento com o Escudeiro

 

 

Antes

(Monólogo dos vv. 1-36)

Depois

(Monólogo dos vv. 834-862)

Estado de espírito e suas causas

aborrecida e irritada

dececionada e triste

Desejo manifestado

libertar-se da influência da Mãe através do casamento

ficar novamente solteira para poder escolher um marido diferente

Modelo de marido

um homem discreto, não necessariamente bonito ou rico e meigo

um homem honesto, pacífico, que a deixe fazer o que ela quiser

 
 
Paralelismo da situação atual com a do início da peça
 
            A situação que Inês vive atualmente é muito idêntica ao início da peça, com Inês enclausurada em casa, amargurada com a sua situação. A Mãe, tal como Brás da Mata, dá-lhe ordens e trata-a com descortesia (“Como queres tu casar / com fama de preguiçosa?”).
 

Inês solteira

=

Inês casada

Local onde está

Casa da Mãe, fechada

 

Local onde está

Sua casa (que lhe foi dada pela mãe, aquando do casamento), fechada.

Atividades a que se dedica

Bordado e canto

 

Atividades a que se dedica

Bordado e canto

Estado de espírito

Insatisfeita com a vida, lamentando a sua sorte

 

Estado de espírito

Insatisfeita com a vida, lamenta-se da sua sorte

Conteúdo do monólogo

Renega o que está a fazer, queixa-se de estar fechada e deseja sair do seu «cativeiro» casando

 

Conteúdo do monólogo

Renega o que está a fazer, queixa-se de estar fechada e espera sair do seu «cativeiro» depois da casada, arrependendo-se da decisão que tomou

 

Visão que tem do futuro marido

Homem “avisado”, de boas maneiras, tocador de viola e versejador, que lhe proporcione uma vida com diversão

 

Visão que tem do marido

Homem insensível e tirano, que quer mantê-la presa, não permitindo que saia de casa ou chegue à janela

 
 
Composição da personagem Inês Pereira
 
            Inês é uma personagem modelada, dado que evolui ao longo da peça. Assim, no início, mostra-se infeliz e aborrecida com a sua vida. Quando se casa, vive um momento fugaz de felicidade e alegria, retoma o estado de espírito do início do auto, lamentando a sua situação, reconhecendo que errou e arrependendo-se de ter casado com o Escudeiro.
 
 
● De notar, a nível estilístico, a anáfora dos versos 869 e 870 e a ironia na fala de Inês, fechada, tecendo considerandos sobre a sua situação e sobre o comportamento do marido. Por outro lado, está presente a metonímia: a referência a «cavalarias» e a «mouros» remete para os comportamentos e as virtudes que deveriam caracterizar um nobre – o ideal de cavalaria e a coragem na guerra contra os infiéis.

Análise da cena 14 da Farsa de Inês Pereira


● O Moço fecha Inês em casa, argumentando que não pode desobedecer às ordens do seu amo. Assim, deixa-a a lavrar, enquanto ele sai para se divertir com as moças.
 
● Inês responde-lhe de forma irónica, criticando a lealdade do Moço ao Escudeiro, lembrando-lhe (através da afirmação do inverso: “Pois que te dá de comer, / faze o que t’encomendou”) que Brás da Mata não lhe pagou e não lhe deixou comida, o que deveria fazer com que ele se insurgisse ou não cumprisse as suas ordens.
 
● Esta ironia de Inês torna-se mais relevante, dado que, nas cenas anteriores, o Moço tinha acusado o Escudeiro de não lhe dar de comer.

Análise da cena 13 de Farsa de Inês Pereira: Inês e o Escudeiro casados



● Após a boda, plena de cantorias e alegria, os recém-casados ficam sozinhos e Inês começa a lavrar e a cantar de felicidade. Ela, que agora se julga livre, está tão feliz que retoma espontaneamente os bordados que antes lhe causavam tanto enfado.
 
● A cantiga (“Si no os hubiera mirado / no penara / pero tan pouco os mirara.”) prenuncia o seu casamento: o «eu» manifesta a dor provocada pela relação com o ser amado (“penara”), o que sugere que o casamento de Inês será infeliz.
 
● Brás da Mata, que até então se apresentara como um homem galante e respeitador, revela-se um tirano autoritário, impondo à esposa um conjunto de interdições:

proíbe Inês de cantar (“Vós cantais Inês Pereira / […] que esta seja a derradeira”);

ordena-lhe que se cale (“Será bem que vos caleis”);

proíbe-a de lhe responder, devendo acatar tudo quanto ele disser sem retorquir (“E mais sereis avisada / que não me respondais nada”);

proíbe-a de conversar com quem quer que seja (“Vós não haveis de falar / com homem nem molher que seja”);

proíbe-a de sair de casa, incluindo ir à igreja (“nem somente ir à igreja”);

impede-a de estar à janela (“Já vos preguei as janelas, / por que vos não ponhais nelas”).

Em suma, Inês ficará fechada em casa, «como freira d’Odivelas». Esta comparação mostra como o Escudeiro é um tirano que manterá Inês presa na sua residência.

 
● Comparando este passo da peça com a vida da jovem enquanto solteira, poderemos concluir que a sua vida de casa é pior do que nessa altura, visto que o marido se revela mais autoritário e repressivo do que a Mãe, trancando Inês e não lhe dando hipótese sequer de dizer o que pensa.
 
● Como se pode justificar esta mudança de atitude do Escudeiro? Se recuarmos até ao momento em que Brás da Mata surge em cena pela primeira vez, recordaremos que ele desconfiava da seriedade de Inês, por isso é «natural» que, agora, a prenda em casa e a vigie, após o casamento. Por outro lado, como sabemos, o Escudeiro apenas escondeu, momentaneamente, o seu verdadeiro caráter, que nós já conhecíamos a partir dos diálogos com o Moço, para conquistar Inês. Nessas conversas, Brás da Mata mostrara um comportamento violento e agressivo (“Faria bem de ta quebrar / na cabeça, bem migada”) e um caráter autoritário que agora de manifesta (“homem sesudo / traz a mulher sopeada”).
 
● Qual é a reação de Inês à postura do Escudeiro? A jovem mostra-se surpreendida, não compreendendo a razão das interdições a que é sujeita (“Que pecado foi o meu? / Porque me dais tal prisão?”). Inês começa a perceber que se iludiu e cometeu um erro ao casar com Brás da Mata, no entanto manifesta-se submissa: “Bofé, senhor meu marido, / se vós disso sois servido, / bem o posso eu escusar”. Ela é repreendida pro fazer aquilo que em casa da mãe faria sem restrições: cantar.
 
● Como justifica à esposa o Escudeiro o seu comportamento? A ironia dos versos “Vós buscastes discrição, / que culpa vos tenho eu?” mostra a Inês que foi ela quem quis um homem como ele, o que significa que a jovem é a única responsável pelas consequências da sua escolha. Ironicamente, acrescenta que está preocupado com Inês e que apenas a quer proteger: “Pode ser maior aviso, / maior discrição e siso / que guardar eu meu tesouro?”.
 
● Por outro lado, as interrogações retóricas e as metáforas (“meu tesouro” e “meu ouro”) permitem ao Escudeiro mostrar o quão preciosa a esposa é para ele e como a quer proteger (o seu bem maior) da cobiça alheia.
 
● Em suma, a vida de casada de Inês caracteriza-se pela reclusão em casa, pela ausência de contacto com o exterior e com outras pessoas, pela absoluta submissão aos ditames do marido (“Vós não haveis de mandar / em casa somente um pelo. / Se eu disser isto é novelo / havei-lo de confirmar.”), pelo medo dele (“E mais quando eu vier / de fora haveis de tremer”) e, como se verá alguns versos adiante, pela entrega ao trabalho.
 
● De seguida, o Escudeiro comunica ao Moço a sua decisão de partir para as “Partes d’Além”, isto é, para o Norte de África (Marrocos), para guerrear e fazer-se cavaleiro.
 
● Antes de partir, incumbe o Moço de uma missão: na sua ausência, vigiará Inês e o seu comportamento, mantê-la-á fechada em casa e assegurar-se-á de que as suas ordens serão cumpridas: “olha por amor de mi / o que faz tua senhora / fechá-la-ás sempre de fora.”. Relativamente a Inês, permanecerá encerrada em casa a lavrar.
 
● No diálogo que se segue, o Moço queixa-se que não tem recursos para se sustentar, porque Brás da Mata continua pobre.
 
● O Escudeiro incentiva, por isso, o Moço a roubar, indo “por essas vinhas”, a matar a fome com “rabisco”, nas “figueiras”, comendo favas e “túbaras da terra”. Estes conselhos comprovam, novamente, a falta de valores e de princípios do Escudeiro, que são ridicularizados, através da ironia, pelo seu criado.
 
 
Retrato de Brás da Mata
 
            Após o casamento com Inês, o Escudeiro mostra o seu verdadeiro caráter:

▪ cruel

▪ autoritário

▪ agressivo

▪ opressivo e tirânico, pois não permite que Inês

cante

lhe responda

fale com alguém

saia de casa em qualquer circunstância

mande em casa “somente um pelo”

o contrarie, tendo de concordar sempre com o que ele disser

ordena ao Moço que vigie constantemente Inês e a mantenha sempre fechada em casa

▪ ambicioso: parte para Marrocos para se fazer cavaleiro na guerra;

▪ pobre:

não deixa dinheiro ao Moço para se governar;

aconselha-o a alimentar-se percorrendo as vinhas, comendo figos, favas e cogumelos.

            É de realçar o contraste entre o amavio das palavras do Escudeiro enquanto pretendente e o seu comportamento agressivamente machista de casado. O fingimento e as mentiras acabaram e veio à tona o verdadeiro caráter de Brás da Mata.
            Por outro lado, a decisão que o Escudeiro toma de ir para o Norte de África parece resultar de um duplo equívoco:
Inês esperava do casamento uma intensa vida social e vê-se sujeita à situação inicial de clausura, dedicada às tarefas caseiras (“vós lavrai e ficar per i”);
o Escudeiro, defraudado na expectativa de colmatar pelo casamento a sua crónica penúria, vê-se obrigado a procurar na guerra um meio de subsistência ou, quiçá, de promoção social.
 
 
Cómico de situação
 
            A situação que se desenrola neste passo da farsa propicia o cómico em torna da figura de Inês, que vê o seu sonho de vida desfazer-se. De facto, tudo lhe sai ao contrário e ela apenas se iludiu: a jovem que quis ascender socialmente, desafiando as convenções da época, foi castigada, pois não soube contentar-se com o seu estado.
 
 
Dimensão satírica do diálogo
 
            O diálogo entre Brás da Mata e o Moço revela, novamente, a pobreza e a miséria da baixa nobreza decadente (representada pelo Escudeiro), que vive de aparências, e a exploração dos serviçais (Moço), que são enganados e explorados e passam fome por não receberem a remuneração devida. As soluções sucessivas que Brás da Mata apresenta para acudir à fome do seu serviçal acentuam a sátira e a comicidade, pela referência a alimentos ridículos e, por vezes, roubados. Por outro lado, esta cena revela ainda a insensibilidade do Escudeiro face a quem o serviu sempre, apesar das condições degradantes que lhe proporcionou.
 
 
A condição da mulher medieval
 
            A partida de Brás da Mata para o Norte de África, deixando o Moço a vigiar Inês, mostra como, na época de Gil Vicente, a mulher era totalmente submissa ao marido, e, na sua ausência, ela estava privada de ter vida própria. O seu estatuto social é tão baixo que até o criado tem poder sobre ela.
 
 
Recursos estilísticos:

. Comparação: “Estareis aqui encerrada / Nesta casa tão fechada, / Como freira d’Odivelas.” (vv. 801-803) ® tirânico, o Escudeiro manterá Inês encerrada em casa, como numa prisão.

. Metáforas:
‑ “Que guardar o meu tesouro?
Não sois vós, mulher, meu ouro...” (vv. 810-811) ® Inês queria um marido discreto, com siso. Ora, haverá homem mais “avisado” do que aquele que procura guardar a sua mulher, o bem mais precioso, da cobiça alheia?

. Ironia do Moço:

‑ “Se vós tivésseis dinheiro,                                              ü
    Não seria senão bem.” (vv. 824-825)                         ï
‑ “Co dinheiro que leixais                                                 ï
  Não comerei eu galinhas...” (vv. 831-832)                  ý denuncia  a  penúria do  Escu-
‑ “E convidarei minha prima.” (v. 839)                           ï deiro
‑ “I-vos vós, embora, à guerra,                                        ï
   Qu’eu vos guardarei oitavas.” (vv. 847-848)              þ
 
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