Português: Análises
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quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Análise do poema "A abelha que, voando, freme sobre", de Ricardo Reis


    Nesta ode, Ricardo Reis socorre-se de um inseto, uma abelha, para demonstrar o contraste entre a mudança que ocorre na vida do ser humano e a imutabilidade da Natureza.
    Assim, neste poema de três quadras, o «eu» começa por descrever uma situação em que uma abelha, ao aproximar-se de uma flor e ao pousar nela, se confunde com esta aos olhos de quem não presta atenção, “À vista que não olha”. A ideia expressa na primeira quadra apenas se conclui no primeiro verso da segunda (transporte): a abelha não mudou desde a Antiguidade, representada por Cecrops, o lendário fundador e rei de Atenas (entre 1558 e 1508 a.C.), que ensinou aos gregos a leitura, a escrita, o casamento e o cerimonial do sepultamento.
    Pelo contrário, o “ser que se conhece”, isto é, o ser humano, que tem consciência de si mesmo e da sua individualidade, ao contrário do que sucede com os elementos da Natureza, envelhece de forma distinta dos outros membros da sua espécie. Dito de outra forma, o ser humano tem consciência de que envelhece, é diferente dos outros seres e vai morrer, ou seja, conhece-se.
    A «abelha» é a mesma que outra que não ela.”, isto é, é igual a qualquer outra abelha, de qualquer época, sem diferença ou individualidade, ao contrário dos seres humanos, que, marcados pelo tempo, pela alma, pela vida e pela morte (atente-se na enumeração e sucessão de apóstrofes), «compram» (metáfora) “Ter mais vida que a vida”, ou seja, procuram algo mais do que a vida naturalmente lhes oferece (sonhos, desejos, arte, cultura, etc.). Essa demanda é, todavia, mortal, já que implica sofrimento e dor, desde logo porque o Homem está condenado à morte, que tudo reduz a pó. Mas não é esse, afinal, o desejo do ser humano, isto é, ser diferentes dos demais animais e não se limita a viver? “Ter mais do que a vida”.
    Assim, neste poeta, o «eu» poético estabelece o contraste entre o ser humano, a única entidade que é consciente de si mesma, e os outros animais, representados aqui pela abelha, que são iguais e imutáveis. Além disso, o ser humano envelhece e morre de forma diferente dos outros animais, exatamente porque é um ser consciente, desde logo de si, e, por isso, sabe que envelhece e morre e esta consciência, este saber que, provocando-lhe dor, angústia, sofrimento. Enquanto ser irracional, a abelha de nada tem consciência, daí que não sofra, por exemplo, com a passagem do tempo, o envelhecimento e a morte. A abelha é a mesma desde a Antiguidade, o ser humano envelhece e diferencia-se dos outros elementos da sua espécie, é único e mortal.
    Em suma, para Ricardo Reis, a questão que diferencia o ser humano e os animais é a mortalidade do primeiro e a imortalidade dos segundos, neste caso não em sentido literal, mas figurado, ou seja, a abelha, o exemplo de que se socorreu o poeta, é tomada como um elemento de uma espécie [morre uma abelha, nasce(m) outra e assim sucessivamente]. Pelo contrário, o Homem é encarado, não em termos de espécie, mas como ser individual.

Análise do poema "As mãos da noite postas sobre a mesa : uma palma", de Manuel Gusmão


 
As mãos da noite postas sobre a mesa : uma palma


As mãos da noite postas sobre a mesa : uma palma
oblíqua à espera da surda cabeça da manhã:
– a outra escura como se abrem as folhas do chá.

 
Uma recordação e a sua névoa; um rosto indeciso
entre o sono e o sonho, entre o corpo do brilho
e a cintilação da noite :  as figuras quebradas.

 
A ondulação é mais pressentida que avistada. Pode
ser apenas a circulação do sangue no animal ereto,
a tremulante auréola dos fetos arbóreos. Ou

 
a luz que sobe da mesa onde as mãos esperam, ou
do chão sobre que dançamos a dança. Tomo
irrepetível a curva infinita de uma linha, onde


O teu corpo não cessa de ter nascido. Não cessa


    Este poema de Manuel Gusmão abre com uma imagem das mãos da noite – personificada – postas sobre a mesa, indiciando uma atmosfera de silêncio, espera, contemplação. O que simbolizará a peça de mobiliário? Um local de espera? De encontro? De espera? Uma das palmas é ou está oblíqua, isto é, inclinada desviada, sugerindo uma atitude de espera, enquanto a outra é escura, como as folhas de chá que se abrem na água quente. A comparação que aqui é feita indicia uma atitude de mistério, de profundidade e revelação, a partir da alusão à noite e à escuridão. Por outro lado, associa a mão a um movimento ou abertura subtil (“como se abrem as folhas do chá”), que remete para uma revelação gradual que se vai operando. Recuando ao verso anterior, a mão cuja palma é oblíqua está à espera da “surda cabeça da manhã”, ou seja, à espera do nascer do sol, que sucede sem se ouvir. O amanhecer surge silenciosamente.
    Na segunda estrofe, o sujeito poético alude à memória, que está envolta em «névoa», isto é, estamos perante uma memória que não é clara, que é vaga ou distante. O “rosto indeciso” representa a indefinição “entre o sono e o sonho”, entre o corpo do brilho e a cintilação da noite, o que pode constituir uma imagem poética que aponta para uma fronteira entre a vigilância e a sonolência.
    O terceiro terceto apresenta-nos uma ondulação apresentada como algo pressentido, não necessariamente visto, isto é, trata-se de um movimento suave e ritmado que é mais sentido do que visto, mais intuído do que percebido. O «eu» poético coloca em questão se essa ondulação pode ser apenas a circulação do sangue no animal ereto, isto é, no ser humano. Pode referir-se também à “tremulante auréola dos fetos arbóreos”, quer dizer, a luz que se reflete nas folhas dos samambaias, plantas antigas e resistentes que simbolizam a vida e a renovação. Pode ainda ser “a luz que sobe da mesa onde as mãos esperam”, ou seja, a claridade que se eleva da mesa onde as mãos descansam, a claridade que brota do local onde a noite está presente. A referência ao “chão sobre que dançamos a dança” (pleonasmo) aponta para uma ligação à terra e para o caráter terreno e ritualístico da vida, uma expressão artística – a dança –, uma celebração da vida. A dança desde sempre constitui uma forma ritualizada de celebração com múltiplos significados, desde ritos de agradecimento ou de celebração dos deuses até formas de sedução do outro. O recurso à conjunção coordenativa disjuntiva «ou» indicia a multiplicidade de interpretações possíveis.
    Os dois últimos versos oferecem diferentes possibilidades de interpretação. A forma verbal «tomo» remete para uma escolha: ele toma irrepetível a curva infinita de uma linha, na qual o “teu corpo não cessa de ter nascido”, isto é, o corpo do «tu» (a pessoa amada? a vida?) está em constante renovação e transformação.

domingo, 10 de dezembro de 2023

Análise do poema "A novela inacabada", de Fernando Pessoa


    Este poema de Fernando Pessoa é constituído por três quadras de versos de redondilha maior, com rima cruzada, de acordo com o esquema rimático ABAB.

    Na primeira quadra, o sujeito poético usa a metáfora nos dois versos iniciais para representar a sua vida como uma “novela inacabada”. Ora, sabendo que uma novela é um texto narrativo envolvente e complexo, cheio de situações variadas e complexas, com múltiplas reviravoltas, podemos inferir que o verso 1 remete para uma vida repleta de eventos intensos e emotivos. Por outro lado, a referida metáfora sugere que a vida do «eu» lírico, sendo uma novela e inacabada, não consegue realizar-se no seu dia a dia, no seu quotidiano. Deste modo, ele procura sentido... [continuação da análise 👉 análise-de-a-novela-inacabada].

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Análise do poema "Quando não estás a olhar é o mundo», de Manuel Gusmão


                                               Quando não estás a olhar é o mundo

 que te olha. Nunca saberás o que vê.

 Obscuramente imaginas que testemunhará

 por ti, mas ignoras de todo - e que importa? -

 onde, a que propósito e perante quem.


    O poema, uma quintilha, é da autoria de Manuel Gusmão, um poeta, ensaísta e professor português, nascido em 1945, em Évora, e falecido a 9 de novembro de 2023, em Lisboa, e faz parte da obra A Terceira Mão, publicada em 1997.
    O curto poema reflete sobre a relação entre o «tu» e o mundo. Essa relação é dialética e estabelecida através do olhar, verificando-se uma alternância entre os papéis de observador e observado. Aparentemente, é o «tu» quem contempla o mundo, porém, quando desvia o seu olhar, é este que passa a observá-lo, o que sugere uma certa curiosidade ou vigilância sobre aquele: a realidade existe para além da...


Continuação da análise aqui: análise-de-quando-não-estás-a-olhar.

domingo, 5 de novembro de 2023

Análise do poema "Árvores do Alentejo", de Florbela Espanca


    “Árvores do Alentejo” é um soneto da autoria de Florbela Espanca em versos decassílabos e de rima emparelhada e interpolada, de acordo com o esquema rimático ABBA, que faz parte da obra Charneca em Flor, publicada em 1931.
    Neste poema, Florbela Espanca alude à planície alentejana, que agoniza sob um sol escaldante, um «brasido» que anseia pela água regeneradora da vida, a «bênção de uma fonte». Todavia, no texto não são as árvores que, realmente, agonizam perante a aridez da charneca, mas, sim, o sujeito poético, uma figura que se eleva acima do horizonte e tenta amenizar tanto a sua dor como a da natureza, a quem se dirige em tom apelativo, por exemplo, no último terceto (Custódia Pereira, Do Sentimento em Florbela Espanca).
    O soneto abre com... [continuação da análise aqui: Árvores-do-Alentejo]

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Análise do poema "Em Horas inda Louras, Lindas", de Fernando Pessoa

    Este poema é constituído por três sextilhas (isto é, três estrofes constituídas por seis versos), com rima cruzada, de acordo com o esquema ABABAB, ritmo regular e versos decassílabos.
    O tema do texto é a nostalgia da infância. Por outro lado, a composição poética constitui um exemplo da vertente simbolista da obra de Fernando Pessoa, como se pode verificar pelo recurso a imagens sensoriais, diversas sonoridades, aliterações e assonâncias, bem como de sugestões de significados ocultos.
    A infância que o sujeito poético recorda é representada pelas figuras femininas de Clorindas e Belindas, que brincam no...

 

 Continuação da análise aqui → Análise do poema "Em Horas inda Louras, Lindas".

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Análise do poema "Magro, de olhos azuis, carão moreno"


 Tema: autorretrato do sujeito poético.

 
 
 Assunto: descrição física e psicológica que o sujeito lírico faz de si próprio.

 
 
 Estrutura interna

 

 1.ª parte (2 quadras + 1.º terceto) – Autorretrato:


        Continuação da análise aqui 👉 "Magro, de olhos azuis, carão moreno".

Análise do poema "Camões, grande Camões", de Bocage


 
👉 Assunto: Camões é considerado por Bocage o modelo dos indivíduos predestinados à desgraça, vítimas do Destino adverso, além de poeta genial, cuja obra aspira a imitar.

 
 
👉 Tema: comparação de Bocage com Camões (vida e obra).

 
 
👉 Estrutura interna

 
n 1.ª parte (v. 1 – “Modelo meu tu és..”, v. 12) Semelhanças entre Bocage e Camões:

– ambos vítimas do destino / o mesmo fado: “quão semelhante / Acho teu fado ao meu”;



Continuação da análise aqui 👉 : "Camões, grande Camões".

Análise do poema "O cacto", de Manuel Bandeira


    Os três versos iniciais constituem uma longa comparação, assente na forma verbal «lembrava», no pretérito imperfeito do indicativo, entre os galhos contorcidos do cato e duas personagens sujeitas a uma violência extrema: a morte de um pai e dos seus filhos, triturados por serpentes, como castigo por ter profanado o templo de Apolo (episódio de Laocoonte, narrado no segundo canto da Eneida), e um avô a morre de fome com os netos na prisão da torre de Gualandi (referência ao episódio de Ugolino, narrado por Dante no canto 33 do Inferno, no nono círculo, na “Antenora”, lugar reservado aos traidores da pátria. O caso de Laocoonte foi abordado em escultura por um artista grego, o que justifica a comparação feita pelo «eu» poético. Deste modo, o cato deixa de ser uma mera planta, visto que lhe são associados os sentidos de dor, privação e injustiça.

    Laacoonte era um sacerdote de Apolo que se casou, contra a vontade do deus, e teve filhos, Antífantes e Timbreu. Quando estava a fazer um sacrifício em honra de Neptuno, Apolo enviou duas serpentes que o mataram, bem como a seus descendentes. Segundo os frígios, isto aconteceu porque Laacoonte tinha arremessado a sua lança contra o cavalo de Troia, em pleno conflito com os Gregos. Ugolino foi uma figura histórica real que viveu no século XIII, em Itália, e que se envolveu em disputas políticas entre as famílias dos Guelfos e Guibelinos. Durante esse conflito, foi traído e feito prisioneiro, juntamente com os seus filhos e netos, no interior de uma torre da cidade italiana de Pisa, em 1288, acusados de conspirar para derrubar o governo da localidade, acabando por morrer à fome. De acordo com a lenda, teria morrido após comer a carne dos seus descendentes já mortos. Esta história foi abordada no canto 33 do Inferno, de Dante.
     O quarto verso traz-nos uma nova comparação: “Evocava também o seco nordeste, carnaubais, caatingas…”. Deste modo, a planta adquire, juntamente com a imagem do sofrimento das personagens acima mencionadas, a imagem do sofrimento da região nordestina do Brasil com as suas matas de carnaúbas e as suas capoeiras ralas.
     O quinto verso apresenta, de forma direta, o que foi dito anteriormente de modo figurado: “Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excecionais.” O cato destaca-se, porque ganha novos significados e, com isso, vai-se agigantando, já que passa a conter os males que afligem os seres humanos.
     A imagem do cato abatido pelo tufão converte-se numa alegoria, ou seja, através de uma sequência de imagens que lhe foram atribuídas, adquiriu um significado novo, diferente da sua realidade vegetal: a planta passa a ser a imagem da humanidade supliciada pela dor, pela privação e pelas injustiças.

Análise do poema "Cinco horas da manhã", de Orlando Mendes



São cinco horas da manhã

Para Maria pilando

Debaixo do cajueiro

E o noivo de Maria

Colimando a machamba

E pensando no Transval

 

São cinco horas da manhã

Para uma velha negra

Abanando o fogareiro

E assando maçaroca

Milho bom! Eh! Milho bom!

Numa voz desnecessária.

 

São cinco horas da manhã

No bazar de piripiri

Manga, coco e mulata

E tetas nuas vertendo

Leite tão branco e puro

Como leite secretado

Por outras tetas mais pudicas

 

São cinco horas da manhã

Nas cartas por escrever

Dos chibalos sonolentos

E nas mãos que dão à terra

A semente sem passado

 

São cinco horas da manhã

No coração confiante

Das mulheres que pariram

E em versos de sangue e nervos

Que latejam o futuro

 

Num canto livre e bravio

Das aves da minha terra

São cinco horas da manhã.

 

Mesmo com nuvens, espessas

Toldando a luz do sol

São cinco horas da  manhã.

 

E até no desespero

De não aceitar o dia

São cinco horas da manhã

Da manhã que irrompe

Com a alvorada ou não

Da noite de incubação.

 

São cinco horas da manhã

Do Rovuma à Ponta de Ouro

São, na coragem que temos

Para sabermos que são.

 
    Este poema, constituído por nove estrofes de versos brancos, é da autoria de Orlando Mendes, poeta moçambicano nascido a 4 de agosto de 1916 e falecido a 13 de janeiro de 1990. A temática central da sua poesia prende-se com a época colonial, pelo que talvez seja possível associar o versilibrismo e a irregularidade estrófica que caracterizam o texto a esse contexto, ou seja, tal como Moçambique estava em processo de descolonização, em busca da liberdade enquanto país, o texto também combate o espaço opressivo enquanto manifestação da liberdade literária.
    A primeira estrofe, uma sextilha, à semelhança das três seguintes, abre com um verso (anáfora) que localiza a «ação» no tempo: cinco horas da manhã, o tempo do fim da escuridão, o limite da madrugada e o início da manhã, o crepúsculo. O que sucede a essa hora? Uma mulher, chamada Maria, pila debaixo do cajueiro, sozinha. A conjugação da forma verbal «são», no presente do modo indicativo, e do gerúndio «pilando» sugerem que se trata de uma ação que está a decorrer ainda no momento em que se lê. As formas verbais seguintes («colimando» e «pensando») reforçam essa ideia. O verso 3 localiza-nos no espaço: Maria pila debaixo de um cajueiro, uma planta abundante em Moçambique da qual se extrai a castanha do caju. É provável que a figura de Maria simbolize um conjunto de Marias que pilam incessantemente, sozinhas, ao amanhecer do dia, perseverantes, com os olhos num futuro mais próspero e menos escuro ( o dia que está prestes a nascer).
    O quarto verso apresenta-nos o noivo de Maria. Ao contrário dela, introduzida trabalhando, ele está simplesmente a observar o terreno (“Colimando a machamba”) à sua frente, “pensando no Transval”), o qual sugere o progresso trazido pelo arado, pela máquina de terraplanagem e não mais o trabalho escravo e manual. Note-se, a este propósito, que, em Moçambique, o trabalho doméstico era executado, maioritariamente, pelos homens, enquanto o rural cabia às mulheres, daí que a figura em destaque seja a feminina trabalhando e não a masculina. O Transval era o nome da região da África do Sul, situada acima do rio Vaal, bem como de uma província situada nessa região, que existia entre 1910 e 1994, cuja capital era Pretória.
    A segunda estrofe introduz uma terceira figura: uma velha negra ocupada com tarefas domésticas na cozinha. O primeiro verso, uma repetição da estrofe anterior, enfatiza de novo a hora da escuridão, da imprecisão e da instabilidade do tempo crepuscular. Além disso, à semelhança da primeira estrofe também, a preposição «para» isola a personagem e a sua atividade. De novo, igualmente, os gerúndios («abanando» e «assando») apresentam-nos uma atividade que está a ocorrer no momento em que o leitor lê o poema e frisa a luta diária e a repetição de pessoas predestinadas à escuridão das suas tarefas e rotinas colonizadas.
    O quinto verso desta estrofe (“Milho bom! Eh! Milho bom!”) coloca-nos perante o pensamento da figura da «velha negra» através do discurso indireto livre, que traduz tanto a voz internalizada da personagem como a voz poética que «diz» o verso. No entanto, no verso 6, o sujeito poético quebra a alegria do anterior, afirmando que tudo foi dito “numa voz desnecessária”: por mais que a figura feminina considere o milho bom, num ambiente crepuscular, negro e sem muita esperança, a sua voz torna-se fraca e quase inaudível.
    A terceira estrofe, uma sétima, volta a repetir o primeiro verso das duas antecedentes. Agora, a ação decorre num bazar, no qual se vendem produtos (piripiri, manga, coco e mulata). Se os outros produtos não acarretam qualquer estranheza, a venda da mulata remete para a prostituição, uma atividade intensa durante o período do colonialismo, constituindo uma das poucas formas de sobrevivência das mulheres mulatas em temos difíceis. Os quatro versos seguintes, centrados ainda nessas mulheres, sugerem uma imagem diferente, uma imagem maternal: “E tetas nuas vertendo / Leite tão branco e puro / Como o leite secretado / Por outras tetas mais pudicas”. No entanto, a presença da preposição «por» e do determinante indefinido «outras» [quando surge antecedido do determinante artigo definido – o, a, os, as –, «outro» é um determinante demonstrativo; quando tal não sucede, possui um valor indefinido, como sucede, por exemplo, em «O Eusébio é de outra equipa.») indiciam que, por mais puras que sejam as tetas nuas que vertem o branco e puro leite secretado, não são tão boas quanto as que são mais pudicas, ou seja, reforça-se a ideia negativa em torno das mulheres prostitutas, mostrando-se que o leite puro se torna impuro quando se trata das mulatas do bazar.
    A quarta estrofe repete o início das anteriores e refere-se a cartas que estão por escrever, provavelmente porque não foram escritas por causa da censura do colonialismo. Por outro lado, a população estava presa ao trabalho forçado, mal pago, quando era pago, ou seja, uma situação de trabalho escravo, definindo a prática do chibalo, portanto. As imagens “chibalos sonolentos” e “cartas por escrever” associam-se, dado que, numa terra sonolenta, presa à escuridão do crepúsculo, o regime colonialista instaura um tempo de sonambulismo numa terra controlada pelos colonizadores, sem ter como se expressar livremente. A própria forma verbal no infinitivo («escrever» – v. 21) acentua a ideia da ação não concluída. Além disso, o adjetivo «sonolentos» contribui para a construção de uma imagem escura e desolada da terra representada pelo poema, visto que o vocábulo traz consigo a ideia do sono e evoca a imagem da noite consigo. Os dois últimos versos da estrofe fecham as imagens da escuridão e da falta de esperança, visto que as mãos que trabalham e proporcionam à terra a sua força de trabalho, a semeiam sem passado, sem apego e respeito pelas tradições, já que o colonizador trouxe consigo a “catequização civilizada e superior” aos “brutos selvagens” do continente. Assim sendo, a semente sem passado representa uma situação infértil às gerações futuras, pois, se o passado não for refletido no presente, o futuro semear não mais existirá efetivamente.
    Na quinta estrofe, o número cinco representa o tempo de uma nova esperança, sugerindo uma imagem e claridade que se opõe à escuridão. Por outro lado, esta estrofe situa-se no centro do poema: antes dela há quatro e depois outras tantas. Deste modo, a mudança de estado evocada pela poesia encontra-se exatamente no meio do poema. Além disso, nesta estrofe ainda é marcada pela imagem do ato de parir, do sangue, de nervos inclinados ao futuro latejante, ou seja, o surgimento de um novo tempo. No segundo verso, o adjetivo «confiante» acopla-se ao nome «coração», o que aponta para o pulsar de algo novo e esperançoso. Ora, esse estímulo é parido pelas mulheres que dão luz às novas esperanças do país: os seus filhos. O verbo «parir» transporta consigo uma ideia de luz, agregada às de pulsação, batimento cardíaco, vida, que se ligam também a «coração», que representa, em suma, o surgimento de um novo momento.
    A metáfora “versos de sangue” (v. 28) quer dizer que a poesia fala dela mesma, ou seja, recorrendo à metapoesia, podemos dizer que tanto as mulheres «pariram» novos filhos para uma nova nação, sem o jugo colonial, quanto a literatura, que, através de uma luta incessante de resistência literária à imposição de formas poéticas e comportamentos provenientes de Portugal, «rasgam», «parem» os seus próprios padrões, e, como se fossem sangue, derramam e contaminam a sua esperança num futuro mais confiante dentro do panorama literário moçambicano. Por sua vez, a forma verbal «latejam» sugere a ideia de pulsação, palpitação de um país e de uma literatura prestes a parir.
    A sexta estrofe introduz outra novidade: o verso que se vinha repetindo ao longo do poema no início, como se fosse um refrão, passa para o fim, dado que agora o foco deixa de estar no tempo crepuscular e passa para a claridade, “no canto livre”. A ideia de liberdade é suscitada logo no primeiro verso a partir da expressão “canto livre e bravio”. Deste modo, estamos na presença de uma liberdade cantada e já não domesticada, uma liberdade feroz e indomável, ideia sugerida pelo adjetivo «bravio». Essa noção é acentuada pela imagem das aves, não umas quaisquer, mas as da terra do «eu» poético.
    A sétima estrofe é introduzida pela conjunção «mesmo», traduzindo uma ideia de que, ainda que o renascer de uma nação e de uma literatura seja um processo difícil, são cinco horas da manhã, isto é, situa-se na transição para um tempo que está por vir. O que transmite essa ideia de dificuldade? Desde logo, a expressão «nuvens espessas», que cria a sensação de uma nuvem pesada, carregada, prestes a chover, a derramar-se sobre a terra. A forma verbal no gerúndio («toldando») reforça a imagem anterior de um clima instável, pesado. Por seu turno, a imagem seguinte opõe-se à claridade trazida pela luz do sol que, entre as nuvens espessas, fica no limite do nascer do dia e do fim da madrugada.
    A oitava estrofe, uma sextilha, sugere a dificuldade da transição e aceitação do dia para uma manhã que irão romper ou não da noite em incubação. A forma verbal «irrompe» revela a violência e o ímpeto da manhã que está por vir, no entanto a alvorada, a primeira manhã, pode surgir ou não da noite de incubação.
    Na última estrofe, o refrão regressa ao primeiro verso, destacando duas cidades: Rovuma e Ponta de Ouro. Estas localidades situam-se nas áreas litorais do país, locais onde a colonização se instalou inicialmente. A forma verbal «São», no presente do indicativo, repete-se três vezes nesta estrofe, anunciando uma certa instabilidade e uma certa falta de ação, dado que a situação de Moçambique, não obstante a independência e a mobilização em favor da nação prestes a nascer – em estado de efervescência –, ainda se encontrava num estado de transição, logo de incerteza, o que justifica a dicotomia claro-escuro que se verifica ao longo do poema.


Bibliografia:
- MADRUGA, Elisalva. Os percursos da literatura moçambicana: da dor à alegria. Instituto de Antropologia da Universidade de Coimbra.
- MOISÉS, Massaud. Guia Prático de Análise Literária. 3.ª edição. São Paulo.
-CRUZ, Clauber Ribeiro. “Cinco Horas da Manhã: a poesia moçambicana e o colonialismo português”.
 

domingo, 17 de setembro de 2023

Análise do poema "Rapariga descalça", de Eugénio de Andrade


    O poema abre com uma nota temporal geradora de desconforto: chove. Estamos num dia característico do início da primavera, mais concretamente de abril: “A chuva em abril…” (v. 5). É nesse dia que o sujeito poético observa uma rapariga a descer (verbo de movimento) a rua e que capta a sua atenção. Passa, de seguida, à sua caracterização: caminha descalça (o que indicia pobreza); os seus pés são formosos e leves (a dupla adjetivação enfatiza a sua beleza e a agilidade e leveza do andar); “o corpo alto / parte dali, e nunca se desprende” sugere um corpo que constitui um todo que se apresenta harmonioso e agradável ao olhar. A repetição da expressão “são formosos” (vv. 2 e 3) intensifica a beleza dos pés.
    A caracterização prossegue na terceira e última quadra: ela é alegre (“canta”); corre enquanto desce a rua em direção ao mar, ligeira e veloz (“corre, voa”), como a gaivota que «passa» diante dos «olhos» do «eu» poético; é terrena, mas, perante a visão do mar, transfigura-se em corpo alado e etéreo (“brisa”), transformando-se, assim, no símbolo da leveza e da libertação. Neste passo do poema, destaca-se o recurso à enumeração do verso 11 (“canta, corre, voa”), que sugere a transfiguração da jovem num ser alado e etéreo através da aceleração progressiva do seu movimento. Outro recurso essencial na caracterização é a adjetivação (“pés descalços”, “formosos”, “formosos e leves”, “alto”), que acentua a expressividade do quadro sugerido no poema.
    Na segunda quadra, o «eu» procura traduzir a beleza daquele dia primaveril, apesar de chuvoso. O que o torna belo e permite superar o incómodo da chuva é a observação da passagem da rapariga, que faz com que o dia surja aos seus olhos como “um jogo inocente de luzes, / de crianças ou beijos, de fragatas”. Esta metáfora / imagem forma um quadro que associa àquele dia visões encantatórias de amor e afeto (“beijos”), de viagem (“fragatas”) e de sonho. Na descrição do dia, destaca-se a sinestesia “o sabor do sol” (v. 5), através da qual se opera a fusão dos sentidos (o gosto, a visão e o tato) e sobressaem elementos sensoriais que a chuva sugere, como o ruído da chuva e o brilho das gotas (“cada gota recente canta na folhagem” – v.6 – animização).A metáfora “O dia é um jogo inocente de luzes” (v. 7) constrói uma imagem de luz pura que torna aquele dia um momento de beleza, de inocência, de amor, de viagem e de sonho. A nível estilístico, destacam-se também as sensações, nomeadamente a visão (“Uma rapariga desce a rua.” – v. 1), o paladar (“A chuva em abril tem o sabor a sol” – v. 5), a audição (“Chove” – v. 1) e o tato (“leves” – v. 3)
    Nesta segunda estrofe, as referências ao tempo são muito significativas. Por um lado, sugerem o vigor da primavera (“A chuva em abril tem o sabor do sol” – v. 5); por outro, remetem para um ambiente diurno e luminoso (“O dia é um jogo inocente de luzes” – v. 7); em terceiro lugar, associam, metaforicamente, o ambiente descrito pelo sujeito poético a características da figura feminina, como a inocência e a alegria (vv. 7-8).
    O sujeito, assim que vê a rapariga a descer a rua, não esconde o seu encanto e deslumbramento face à beleza e graciosidade dela. Esse encanto é tal que ele consegue ver beleza naquele dia de chuva. Noutras circunstâncias, sem a imagem da jovem, seria um dia incómodo.
    O poema é constituído por três quadras, num total de 12 versos brancos de métrica irregular, predominando o verso decassílabo. Na primeira, o «eu» traduz o seu encantamento por uma rapariga que desce a rua e, de seguida, descreve-a, salientando a beleza dos seus pés descalços, a elegância do seu corpo alto e a sua graciosidade. Na segunda, o sentimento de encanto intensifica-se. O sujeito lírico capta a beleza daquele dia primaveril, apesar da chuva, motivada pela passagem da rapariga. Na terceira, a imagem da jovem, que, com a sua leveza, graciosidade e agilidade, parece perder a sua condição terrena e se torna etérea, sobrepõe-se à imagem de uma gaivota que passa diante dos seus olhos.

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Moral do conto "O Tesouro"


    Através deste conto, Eça de Queirós poderá ter tido em mente várias hipóteses, no que diz respeito à função catártica:
* a ambição é má conselheira;
* amor de irmão, amor de cão;
* quem tudo quer, tudo perde;
* a vida é o grande tesouro;
* sem comunicação e comunicabilidade, o ser humano torna-se um perigoso animal;
* a família deve ser um santuário, uma igreja doméstica;
* o BEM deve triunfar sobre o MAL.
 

Elementos simbólicos em "O Tesouro"


Número três: a perfeição a atingir.
    No conto, é evidente a insistência no número três. Desde logo, são três os irmãos; e três é também um símbolo da família – pai, mãe, filho(s). Porém, aqui encontramos uma família truncada, imperfeita – nem pais, nem filhos, apenas três irmãos. Não há, aliás, a mais leve referência aos progenitores dos fidalgos Medranhos, como se eles nunca tivessem existido. Essa ausência da narração é, de certo modo, um símbolo da sua ausência na educação dos filhos. Sem a presença modeladora dos pais (ou alguém que os substituísse), Rui, Guanes e Rostabal muito dificilmente poderiam desenvolver sentimentos humanos: vivem como lobos, porque, provavelmente, cresceram como tal.
    Por outro lado, as três figuras não foram capazes de constituir uma família verdadeira, do mesmo modo que, apesar dos laços de sangue que os unem e de viverem juntos, não formam uma família e sempre pela mesma razão: são incapazes de afetos, de criar e mantar amor entre si. Note-se que, neste caso, se opõem aos animais a que são associados – os lobos –, dado que numa alcateia há ordem, estrutura e fortes ligações entre os seus membros.
 
Cofre: a ideia da essência humana, inalterável de geração em geração.
    O tesouro está guardado num cofre. Este objeto protege, preserva, permite que o seu conteúdo permaneça intocado ao longo do tempo. Igualmente significativo é o facto de o cofre ser de ferro, que é um material resistente, simultaneamente, à força e à corrupção.
 
Três chaves e três fechaduras: símbolo da felicidade, apontada quer pelo ouro quer pelo numeral três.
    As três fechaduras preservam o conteúdo do cofre(Da curiosidade? Da cobiça? Da apropriação indevida?), no entanto as três chaves produzem o efeito contrário, isto é, permitem abri-lo sem dificuldade, só que nenhuma delas, só por si, mas apenas as três em conjunto. Este dado significa que somente a cooperação dos três irmãos permitirá abrir o cofre e aceder ao tesouro. Assim sendo, será apenas por meio da solidariedade, da cooperação, da convergência de interesses e esforços que se tornará possível alcançar o tesouro que todos almejam. Como, em vez do espírito de cooperação, prevalece a ganância extrema, não lhes foi permitido possuir o tesouro. Quando Rui expõe a estratégia a seguir, o número três volta a aparecer: “três alforges de couro, três maquias de cevada, três empadões de carne e três botelhas de vinho”, numa espécie de sublinhado do irredutível individualismo que cultivam e que os conduzirá à tragédia.
 
Ouro: símbolo da perfeição, da salvação, da aquisição da espiritualidade, bem como da riqueza, que proporcionaria a fuga dos três irmãos à miséria.
    O ouro é um metal precioso e incorruptível, símbolo de perfeição. Para além do seu valor material, simboliza a salvação, a elevação a uma forma superior de vida, mais espiritual, menos animal. É esse o verdadeiro bem, o verdadeiro tesouro. Os fidalgos de Medranhos vivem mergulhados na decadência material, na mais extrema pobreza e na degradação moral. Não se lhes conhece uma atividade útil, um sentimento mais elevado, um afeto, um gesto de amor. Vivem com os animais e como os animais, contudo, como sucede para qualquer ser humano, existe a possibilidade de redenção. O tesouro está à sua disposição, mas, para que tal suceda, é necessário abandonar a cobiça, superar o egoísmo, estabelecer laços de solidariedade e verdadeira fraternidade.
 
Medranhos – medronhos (?): pobreza, miséria.
 
Moita de espinheiros: as dificuldades, as provações a que os três irmãos estão sujeitos.
 
Cova de rocha: a descida aos infernos, uma espécie de catarse, de purificação (remete para a busca do Graal).
 
Ferro: o material de que o cofre é feito representa a resistência à corrupção e o valor do tesouro nele guardado.
 
Dístico em letras árabes: mal legível, remete para um passado distante, mítico, um tempo de paz, equilíbrio e perfeição, uma idade de ouro que poderá ser recuperada por quem conseguir encontrar o tesouro.
 
Letras em árabe apontam para um tempo muito recuado:
® a idade de ouro há humanidade, una e perfeita;
® ou o mito de Adão e Eva, que, em virtude de um comportamento algo semelhante ao dos três irmãos, perderam a vida espiritual, o paraíso, sendo ainda castigados com a solidão;
® ou a época cultural em que os árabes estiveram na Península e que representa a origem da nossa língua e da nossa cultura.
 
Cerrar a fechadura: remete para a ideia de que os três irmãos jamais alcançarão a espiritualidade e a felicidade e prenuncia a desgraça, o silêncio e a morte.
 
Inverno: frio, aponta para a privação, a escuridão e a morte.
 
Primavera: o renascimento da natureza, a luz e o aparecimento do Sol criador; a vida. Em suma, a primavera significa a possibilidade de mudança, é o sinal da natureza que os homens devem saber interpretar e que os irmãos não sabem.
 
Domingo: dia do convívio, da festa, do culto, do divino, da família, tudo quanto os irmãos deviam ser e não eram.
 
Percurso temporal manhã ® noite: não sabendo ou não querendo aproveitar as oportunidades, só lhes resta uma triste noite, isto é, um triste fim.
 
Nome dos três irmãos:
Rostabal:   ® é o mais velho, logo tem o nome mais comprido;
® a repetição da vogal aberta pode sugerir animalidade, instintos, o que está de acordo com o seu retrato;
Guanes:  ® possivelmente o irmão do meio, o seu nome contém menos uma sílaba do que Rostabal e mais uma do que Rui, o que poderá querer sugerir que está a meio caminho entre a animalidade e a razão; assenta-lhe bem a traição;
Rui:     ® o mais novo, tem também o nome mais pequeno e é o mais avisado;
® estaria do lado da razão, mas também, por isso, da maldade pensada, pérfida;
® a proximidade sonora de Rui e ruim pode ser um indício dessa maldade.
 
Água: símbolo de vida (vemo-la na clareira, escoando-se por entre a relva que cresce e Rui procura combater o veneno com ela) e de purificação (com a água, Rostabal pretende livrar-se do sangue do irmão que assassinou).
 
Navalha / espada: instrumento de morte.
 
“Nuvenzinhas cor-de-rosa”: o sonho, a miragem da felicidade atingida através do tesouro.
 

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Linguagem de "O Tesouro"


 
1. Nível fónico
 
® Aliterações:
- em v: "... o vento da serra levara vidraça e telha..." ® sugere a força do vento;
- em l e r: "... estalaram a rir, num riso de tão larga rajada...";
- em t, b, d, p: "... com os olhos a flamejar, numa desconfiança tão desabrida que Guanes e Rostabal apalpavam nos cintos os cabos das grandes facas...";
- em r: "... o outro rosnou surdamente e com furor dando um puxão às barbas negras.".
 
 
2. Nível morfossintático
 
® Adjetivos: têm como função caracterizar as personagens ou o cenário e, por vezes, anunciam a ação trágica, antecipando os atos violentos dos três irmãos: "E de novo recuaram vivamente (...) numa desconfiança tão desabrida que Guanes e Rostabal..."; "Ali vieram sentar-se Rui e Rostabal, com os seus tremendos espadões entre os joelhos."
 
® Advérbios de modo:
- "Depois, mergulhando furiosamente as mãos no ouro..." ® caracteriza a brutalidade do movimento, logo da personagem;
- "E de novo recuaram, bruscamente se encararam..." ® aponta para a súbita desconfiança que se estabelece entre os três, motivada pela sua ambição;
- "Vivamente, Rui agarrara o braço ao irmão..." ® está relacionado com Rui e a sua astúcia;
- "Rui, atrás, puxava desesperadamente, os freios da égua, que, de patas fincadas no chão pedregoso..." ® remete para o contraste comportamental entre os três irmãos e a égua;
- "Então Rui tirou, lentamente,  do cinto, a sua larga navalha."; "E serenamente, como se pregasse uma estaca num canteiro, enterrou a folha toda no largo dorso dobrado, certeira sobre o coração." ® remete para a frieza e para a crueldade da personagem;
- "E Rui, alargando os braços, respirou deliciosamente." ® traduz a satisfação de Rui por o tesouro ser só seu;
- "Os seus braços torcidos batiam o ar desesperadamente." ® remete para o desespero que a personagem sente;
- "... esbugalhando pavorosamente os olhos..." ® traduz o terror de Rui, ao perceber que tinha sido envenenado e que ia morrer.
 
® Verbos: algumas formas verbais evidenciam o carácter das personagens através das referências às suas atitudes, funcionando, assim, como uma forma de caracterização das mesmas.
                Atentemos nos seguintes exemplos:
1.º) "Ao escurecer, devoravam uma côdea de pão negro." ® remete para a ideia de que o homem é um produto do meio, ou seja, a sociedade em que se insere determina a formação da sua personalidade e, consequentemente, o seu comportamento (característica realista);
2.º) relativamente a Rostabal, as formas verbais traduzem o seu instinto, o seu carácter animalesco:
- "Também eu quero a minha, mil raios! - rugiu logo Rostabal.";
- "Pois que morra, e morra hoje - bradou Rostabal.";
3.º) noutras ocasiões, traduzem a brutalidade do movimento:
- "Rostabal rompeu de entre a sarça...";
- "Então Rui (...) deslizou até Rostabal, que resfolgava.".
 
 
                3. Nível semântico
 
® Comparações:
- "... esfaimados como eles...": a miséria em que viviam os três irmãos;
- "... mais bravios que lobos.": o seu carácter animalesco;
- "... os três senhores ficaram mais lívidos que círios.": a emoção dos três irmãos ao depararem com o tesouro;
- "Então Rui, (...) ergueu os braços, como um árbitro...": a astúcia, a liderança que assume;
- "... Rostabal, homem mais alto que um pinheiro" (hipérbole): a grande envergadura / altura da personagem;
- "... onde fazia como um tanque...";
- "... dominava o atalho, estreito e pedregoso como um leito de torrente.": a estreiteza e rudeza do caminho;
- "... a espada, agarrada pela folha como um punhal...";
- "... como se perseguisse um mouro...";
- "E serenamente, como se pregasse uma estaca num canteiro, enterrou a folha toda no largo dorso dobrado, certeira sobre o coração.": o crime, a crueldade do assassínio de Rostabal pelo próprio irmão;
- "... um suor horrendo que o regelava como neve."     E
- "... sentia os ossos a estalarem como as traves de uma casa em fogo."     E
- "... como se fosse um metal derretido.": conferem os efeitos do veneno.
 
® Personificações:
- "... silenciosa manhã de domingo...";
- "Pela ramaria andava um melro a assobiar.";
- "... a cantiga dolente e rouca...";
- "A tarde descia, pensativa...": o fim do dia (= o fim da vida de Rui);
- "E a fonte cantava...": o ruído da água;
- "... as folhas tenras dos olmos, em roda, tremiam...";
- "A fonte, cantando...": como se, com a morte do último dos irmãos, a justiça tivesse sido reposta e tudo regressasse à normalidade.
 
® Hipérboles:
- "... estalaram a rir...";
- "... num riso de tão larga rajada que as folhas dos olmos, em roda, tremiam...": esta e a anterior revelam a reação, misto de nervosismo e alegre loucura, à descoberta do tesouro;
- "... Rostabal, homem mais alto que um pinheiro..." (ver comparações).
 
® Gradação: "Já rasgara o gibão, atirava os passos incertos e, a arquejar, com a língua pendente, limpava as grossas bagas de um suor horrendo..." ® os efeitos do veneno, gradualmente mais fortes e horríveis.
 
® Metáforas:
- "... rugiu logo Rostabal.";
- "O outro rosnou surdamente e com furor...": ambas revelam o instinto, o carácter animalesco das personagens;
- "... um fio de água...";
- "... tinha já a espada nua.";
- "Um vento leve arrepiou na encosta as folhas dos álamos...": uma ligeira brisa fez ondular as folhas das árvores;
- "Mal a noite descesse...";
- "Era um lume, um lume vivo, que se lhe acendera, lhe subia até às goelas.";
- "Outra vez o lume, mais forte, que alastrava, roía.";
- "E a chama dentro galgava...";
- "... para apagar aquela labareda...": estas últimas quatro metáforas traduzem os efeitos do veneno em Rui.
 
® Hipálage: "... e levou as duas mãos aflitas ao peito.": a aflição face ao envenenamento.
 
® Antítese: "No terror e esplendor da emoção...".
 
® Sinédoque: "... a pelejar contra o Turco!" (= turcos).
 
® Sinestesias:
- "Um cheiro errante de violetas adoçava o ar luminoso.";
- "A tarde descia, pensativa e doce..." (ver personificações);
- "Com aquela cor velha e quente...".
 
® Ironia:
- "Grande pena!": o menosprezo para com Guanes;
- "Oh! D. Rui, o avisado, era veneno!": afinal, o mais avisado dos três irmãos deixou-se enganar e vai morrer em consequência disso.
 
® Exclamações:
- no início, traduzem a emoção dos irmãos quando encontram o tesouro;
- na parte final, traduzem a angústia e o desespero de Rui face ao envenenamento.
 
® Perífrase e eufemismo: "Não dura até às outras neves." (= Inverno).
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