Português: Cantiga de Amor
Mostrar mensagens com a etiqueta Cantiga de Amor. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Cantiga de Amor. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Análise de "Proençaes soem mui bem trobar"

 
Assunto: o sujeito poético acusa os trovadores provençais de serem artificiais e fingidos, pois trovam apenas na primavera, ao contrário dele, que sofre realmente pela sua amada.
 
 
Tema: a coita de amor / a teoria poética [reflexão sobre a escrita de poesia] e sátira aos poetas provençais / a sinceridade versus o fingimento do sentimento amoroso.
 
 
Estrutura interna – Crítica aos trovadores provençais

 
Questão suscitada pelo sujeito poético:
- Crítica aos trovadores provençais:
• apenas trovam na primavera e não no resto do ano
• não sofrem de amor como ele sofre pela sua amada
• nunca morrerão de amor como ele
• o sentimento de que falam os provençais é artificial – fingimento e simulação

Diferença entre o sujeito poético e os trovadores provençais


 
 
Simbolismo das estações do ano
 
            A primavera, momento em que a Natureza renasce, é a estação do ano propícia às relações amorosas, em oposição ao inverno, um tempo em que os sentimentos se encontram mais adormecidos. Deste modo, os trovadores provençais compõem cantigas somente na primavera, o que enfatiza o facto de não sentirem um verdadeiro amor pela mulher amada, antes se tratar de mero artificialismo poético.
 
 
Título
 
            O título da cantiga, ao referir-se aos «provençais», reflete a origem das cantigas de amor: a região da Provença, no sul de França.
 
 
Crítica aos trovadores provençais
 
            Esta cantiga constitui uma denúncia e crítica aos trovadores provençais, acusando-os de serem convencionais e artificias no que toca à expressão do sentimento amoroso.

            De facto, apesar de serem dotados de qualidade artística, de mestria poética, dado que “soem mui bem trovar”, só o fazem na primavera, enquanto o sujeito poético exprime na sua poesia um amor verdadeiro, sincero, pautado pelo sofrimento. Os provençais compõem poemas apenas nessa estação do ano, porque é uma época propícia ao amor. Não o fazem no inverno, pois os seus sentimentos estão adormecidos (“razom / nom am”). Assim sendo, não sentem verdadeiro amor, que estaria presente em todas as estações.

            Esse falso sentimento amoroso é observado com ironia por parte do «eu»: “e dizem eles que é com amor” (verso 2). Assim que a primavera termina, os provençais deixam de ter motivo para trovar, o que confirma que o seu sentimento não é verdadeiro.

            Em suma, os trovadores provençais apenas poetam na primavera e não todo o ano e escrevem que sofrem de amor, mas esse sentimento é artificial: eles não padecem da «coita de amor» e vivem alegres.

 
 
Crítica à artificialidade do amor cortês
 
            O sujeito poético critica a artificialidade do amor cortês ao afirmar que os trovadores provençais não amam como dizem amar nem sofrem realmente a dor amorosa que afirmam sofrer. Tudo isso é exagerado e artificial. Note-se, porém, que o próprio «eu» incorre no mesmo erro/exagero, ao afirmar, na parte final da cantiga, que morrerá de amor, em decorrência de não ser correspondido pela «senhor» que ama.
 
 
Reflexão sobre a criação poética
 
            Podemos considerar que a cantiga constitui uma reflexão sobre o processo de criação poética, apresentando duas formas de compor poesia.       

            Por um lado, a poesia baseia-se no convencionalismo e na imitação servil, na esteira dos trovadores provençais e dos seus cantares de amor.

            Por outro lado, D. Dinis sugere uma poesia sustentada na expressão autêntica da «coita de amor», como se pode constatar nesta composição poética.

 
 
Forma
 

Estrofes: três sextilhas isométricas.

Métrica: versos eneassílabos (9 sílabas) e maioritariamente decassílabos.

Rima:

- esquema rimático. ABBCCA

- interpolada e emparelhada

- consoante (“amor”/”flor”)

- aguda ou masculina

- rica (“non”/”coraçom”) e pobre (“trobar”/”levar”)

Ritmo binário.

Transporte/encavalgamento: vv. 3-4, 4-5, 5-6, etc.

  
 
Recursos expressivos
 
Perífrases:
 

Gradação “da coita de amor”: na primeira cobla, o sujeito poético refere somente a sua «gram coita»; na segunda, afirma que não existe outra igual (“qual eu sei sem par”); na última, assinala o facto de esta coita ser a sua «perdiçom» e que o «á de matar».

Nomes:

- proençaes: é o objeto da crítica presente na cantiga e, simultaneamente, o criador do cantar de amor;

- tempo, frol: estes nomes remetem para a crítica – os provençais trovam apenas na primavera;

- coita: o sofrimento que atormenta o sujeito poético, em contraste com a artificialidade e o fingimento dos provençais:

- perdiçom: a morte de amor, dada a não correspondência amorosa da «senhor».

Vocábulos provençais: prez, sem.

Anáfora do e: explica que os provençais não têm “gram coita no seu coraçom”, é um fingimento, pois só trovam numa dada época do ano.

Paralelismo estrutural e semântico.

Ironia: “dizem eles que é com amor” (vv. 7-9); “sabem loar / sas senhores o mais e o melhor / que eles podem” – os provençais compõem belas cantigas, mas o que escrevem não corresponde aos seus sentimentos, pois tudo é fingimento.

 
 
Classificação
 
            O poema é uma cantiga de amor de mestria, isto é, não possui refrão.

            É curioso que Nuno Júdice (in Cancioneiro de D. Dinis) a inclui na secção das cantigas de escárnio e maldizer por causa do seu tom crítico e satírico.

Análise de "Se eu pudesse desamar"



 Resumo
 
            O sujeito poético exprime o desejo (impossível) de se vingar da “senhor”, pois esta tratou-o mal, pagando-lhe na mesma moeda, isto é, deixando de a amar, procurando o seu mal e fazendo-a sofrer como ele sofre. No entanto, este desejo é impossível de concretizar, desde logo porque a culpa é do seu próprio coração, que o fez desejar quem nunca o desejou. Como não consegue dormir, só lhe resta pedir a Deus que desampare quem sempre o desamparou e lhe dê a ele a capacidade para a perturbar um pouco. Deste modo, conseguiria dormir. Em alternativa, pede-lhe que pelo menos lhe dê coragem para falar com ela.
 
 
Assunto: o desejo de vingança por parte do sujeito poético relativamente à sua «senhor», pelo facto de ela o fazer sofrer muito (“coita de amor”).
 
 
Tema: a revolta contra o poder da “coita de amor” / o amor não correspondido / a amada como ser inacessível.
 
 
Caracterização da «senhor»
 
            A mulher amada mostra-se fria e indiferente em relação ao sujeito poético e ao seu sentimento, não lhe correspondendo amorosamente. Ela é, pois, de acordo com a convenção da cantiga de amor, inacessível ao trovador, pois não lhe corresponde amorosamente e nunca o será. E ele tem consciência disso.
 
 
Caracterização do sujeito poético
 
            O retrato do sujeito poético pode sintetizar em meia dúzia de traços:

▪ está apaixonado;

▪ sente-se enganado (v. 9);

▪ não dorme (v. 12);

▪ está desamparado e perturbado (vv. 16, 18);

▪ sofre (v. 26)

▪ deseja vingar-se da «senhor».

            De facto, o «eu» está enamorado, mas sofre imenso e mostra-se muito indignado e revoltado porque a mulher que ama não corresponde ao seu amor.

            Além de não lhe corresponder e de lhe causar dor, a «senhor» parece ter desejado fazê-lo sofrer, como o indicia o verso 4: “a quem me sempre mal buscou!”. Por outro lado, ela espicaçou nele, de forma maldosa, o amor e a paixão, como se pode comprovar pelos versos 24 e 25: “por que me fez em si cuidar, / pois ela nunca em mim cuidou”.

            Tudo isto o leva a manifestar o desejo de se vingar dela pelo sofrimento e pela dor que lhe causou, fazendo-a sofrer como ele tem sofrido. No entanto, como é impossível retribuir-lhe o mal que ela lhe causou, a sua mágoa é reforçada, ou seja, porque ele não antevê qualquer alívio futuro. Esta ideia é bem traduzida pelo refrão, que ora aponta a causa do sofrimento do «eu» (estrofes 2 e 4), ora indicia a condição impossível para o alívio do sofrimento (coblas 1 e 3): o «eu» não pode vingar-se nem dormir, isto é, encontrar a paz, pois não pode fazer sofrer a amada. Assim, como não lhe é possível libertar-se da dor, resta-lhe lamentar-se e continuar a sofrer.

            O tom do seu queixume é de lamento e algo colérico, visto que, como já foi mencionado, ele sofre por amor e está revoltado com a situação em que se encontra e com a «senhor», a responsável pelo seu estado de alma.

            Em suma, o «eu» vive um conflito interior, visto que, por um lado, deseja vingar-se da mulher, “devolvendo-lhe” todo o sofrimento que ela lhe causa, contudo, por outro lado, tem consciência de que não lhe é possível evitar o amor que o prende à dama.

 
 
Fuga às convenções da cantiga de amor
 
            De acordo com o cânone da cantiga de amor, o trovador, quando não é correspondido pela «senhor», é submisso e mantém-se leal ao amor e ao serviço amoroso. Nas palavras de António José Saraiva (in O Crepúsculo da Idade Média em Portugal), “O amor era concebido à maneira cavaleiresca, como um «serviço». Consistia esse serviço em dedicar-lhe [à amada] os pensamentos, os versos e os atos. O serviço está para a «senhor» como o vassalo está para o suserano.

            Mas o que é próprio das cantigas de amor e do seu modelo provençal é a distância a que o amante se coloca em relação à sua amada, a quem chama senhor, tornando-a um objeto quase inacessível.”

            Por outro lado, as regras do amor cortês não lhe permitem dirigir-se diretamente à mulher, daí usar o verbo «ousar» (v. 22) e no pretérito imperfeito do conjuntivo, sugerindo uma situação improvável. De facto, falar com ela constituiria um atrevimento e uma quebra do código amoroso e do serviço de vassalagem que tem de lhe prestar.

            No entanto, esta cantiga contraria a convenção, visto que o «eu» poético não serve dedicadamente a mulher amada e não aceita o sofrimento amoroso e a dor causados pela não correspondência amorosa da dama, não se resignando a sofrer. Mais do que isso, ele revolta-se contra ela e expressa mesmo o desejo de se vingar, fazendo-lhe mal e trazendo-lhe igualmente sofrimento. A revolta contra o poder da «coita de amor» é uma fuga ao código da «fin’amors», pois o trovador jamais poderia desanimar ou colocar o seu sofrimento acima do seu serviço. O amor, ainda que não correspondido, devia ser fonte de depuração. Além disso, desmistifica a ideia da mulher idealizada: ela é cruel, dá esperanças ao pobre trovador e depois desdenha dele, ignora-o.

 
 
Forma
 
Estrofes: quatro sétimas.

Rima:

- esquema rimático: ABABRAR

- cruzada e interpolada

- consoante e toante

- pobre e rica

- aguda

Métrica: versos octossílabos.

Transporte.

Ritmo lento e arrastado.

Refrão:

. estabelece o confronto entre o desejo e a realidade;

. o sujeito formula o desejo de que a “senhor” que ama e que não lhe retribui o amor sofra tanto como ele tem sofrido por ela;

. atesta a oscilação do sujeito poético entre os dois domínios: o do possível e o do impossível, expressa na alternância do primeiro verso do refrão entre as estrofes ímpares e pares:
- impossível: “se eu podesse coita dar”;
- possível: “nom posso coita dar”.
  
 
Recursos estilísticos
 
Assonância em a e e.

Aliteração em s.

Personificação do coração: o sujeito poético responsabiliza-o pelo seu sofrimento

Antítese entre o desejo do trovador e a realidade da cantiga de amor, do código da “fin’amors”. Trata-se de um conflito não resolvido, pois é impossível ao «eu» «punir» a amada, o que o deixa em tensão.

Orações subordinadas condicionais e causais: mostram o esforço do sujeito poético para encontrar a solução acertada para a sua vingança: pensa, avalia, calcula várias possibilidades sem conseguir concluir.

 
 
Classificação
 
Cantiga de amor: esta composição poética é uma cantiga de amor cujo sujeito de enunciação é masculino – o trovador –, que expressa os seus sentimentos pela «senhor», uma dama inacessível geralmente casada.
 
Recursos formais da cantiga de amor:
- Refrão (vide).
- Dobre: repetição da mesma palavra flexionada (isto é, mudando-lhe o tempo verbal ou o género, por exemplo) no mesmo lugar:
. desamar / desamou
. busca / buscou
. podesse / posso
. enganar / enganou
. dar / deu
 
 
Valor documental
 
            Esta cantiga retrata já uma desmistificação do amor cortês em confronto com uma realidade bem diferente, uma realidade onde havia mulheres de carne e osso com defeitos e virtudes.

            Além disso, é também o reflexo da decadência da vida da corte, da nobreza, que começa a perder o seu poder para uma nova classe que começa a surgir – a burguesia.

 

domingo, 15 de novembro de 2020

Análise de "Como morreu quen ben"

 
Assunto: o sujeito poético compara-se àquele(s) que enlouqueceu(eram) ou morreu(eram) por não ser(em) correspondido(s) pela mulher amada.
                Assim como morreu infeliz quem nunca foi correspondido pela mulher amada e viu acontecer o que mais receou – a amada cair nos braços de outro –, assim também morre o sujeito poético pelo mesmo motivo.
 
 
Tema: o amor não correspondido / a coita de amor / a morte por amor.
 
 
Desenvolvimento do tema
 
Na primeira estrofe, o sujeito poético compara-se a um homem indefinido (isto é, não identificado), que morreu porque nunca foi amado – “nunca bem / ouve” (vv. 1-2) – e porque viu a mulher amada fazer algo de que ele tinha medo – “viu quanto receou / dela” (vv. 3-4).
 
A segunda estrofe repete as ideias da cobla anterior: esse homem morreu porque amou uma mulher que nunca lhe correspondeu esse amor – “foi amar / quem lhe nunca quis bem fazer” (vv. 6-7) – e porque Deus o fez ver algo que o deixou triste – “lhe fez Deus ver / de que foi morto com pesar” (vv. 8-9).
 
Na terceira estrofe, o sujeito poético enumera os efeitos da coita de amor: a loucura – “ensandeceu” (v. 11) –, a perda da alegria e do sono (insónia) – “nom foi ledo nem dormiu” (v. 13) –, o sofrimento por algo que viu – “com grande pesar que viu” (v. 12), além da morte, ideia presente em todas as estrofes por intermédio da comparação.
 
Na última estrofe, o «eu» lírico identifica a causa concreta da coita de amor: o outro homem amou uma dama que nunca o amou ‑ “dona que lhe nunca fez bem” (v. 17) – e viu-a com alguém que não a merecia ‑ “e quem a viu levar a quem /a nom valia, nem a val” (vv. 17-18). E tal como este indivíduo morreu de amor, também o sujeito poético morre, pelas mesmas razões. Esta noção é transmitida através de uma gradação (“ensandeceu” “non foi ledo nem dormiu” “morreu”), que mostra os efeitos progressivos da «coita de amor», da indiferença da mulher amada, ou seja, evidencia, de forma gradativa, o sofrimento do sujeito poético.
A estrofe é a sequência lógica da terceira. De facto, esta terminou com o sujeito poético aludindo à morte de amor e a quarta revela a verdadeira razão da morte: a mulher deixou-se levar por quem não a merecia. É o clímax da cantiga.
 
 
Comparação
 
A cantiga assenta numa comparação que é estabelecida entre o sujeito poético e «alguém» não identificado no poema que morreu infeliz porque nunca foi amado pela mulher por quem se apaixonou. De acordo com a última cobla, essa mulher ter-se-á mesmo envolvido amorosamente com outra pessoa que não a merecia.
O sujeito poético não se queixa diretamente da sua senhora, antes recorre a esta comparação, ao exemplo de um homem indeterminado / indefinido («quem»), que teria morrido por não ser correspondido. Desta forma, evita criticar a sua amada pela não correspondência amorosa, respeitando, assim, o código do amor cortês.
 
 
Coita de amor
 
A coita de amor do sujeito poético está bem presente na cantiga. Ela consiste no estado de sofrimento do «eu», motivado pelo facto de o seu amor não ser correspondido, o que leva à expressão do seu lamento, e que pode conduzir à loucura e à morte.
Estas noções são evidenciadas através da repetição das formas verbais do verbo «morrer» - «morreu», «foi morto» (referentes à pessoa que sofre) e «moir’eu» (referente ao sujeito poético -, repetição essa que acentua a tragicidade das consequências do sofrimento amoroso; da repetição do vocábulo «pesar» («com pesar», «gram pesar») e das formulações «quem nunca bem ouve», «quem lhe nunca quis bem fazer», «dona que lhe nunca fez bem», que realçam o amor não correspondido e a queixa constante em relação à mulher amada.
Neste contexto, assume igualmente grande relevância o refrão. Este é constituído por uma apóstrofe dirigida à amada («mia senhor»), por uma interjeição expressiva de dor («Ai») e pelo segundo termo da comparação presente em cada estrofe («assi moir’eu»), que sugere que a morte é um destino fatal. No seu conjunto, o refrão reforça a forma persistente como o sujeito se lamenta, numa espécie de obsessão com a dor e o sofrimento que o atormentam, isto é, totalmente consumido pelo sofrimento amoroso.
 
 
Refrão
. segundo elemento da comparação que é estabelecida em cada estrofe (“Como morreu…” – “assi moir’eu”);
. contribui para reiterar o sentimento do sujeito poético;
. reforça o sofrimento sentido pelo sujeito lírico;
. intensifica a obsessão do «eu» pela sua amada;
. anuncia a morte por amor do «eu».
 
 
Personagens
. o sujeito poético («eu»)
. a dama / a mulher amada pelo sujeito poético («mia senhor»)
. o rival do sujeito poético
. um indivíduo indefinido («quem»), estranho à relação amorosa do «eu» lírico, com o qual este se compara
 
 
Retrato do sujeito poético
está apaixonado pela sua “senhor”, que é casada (foi levada por quem a não merecia, ou seja, presumivelmente o marido);
▪ sofre imenso por causa da indiferença / da não correspondência amorosa da mulher;
o seu sofrimento e dor vão num crescendo dramático, que atinge o desespero e desemboca na loucura e na morte por amor;
vive uma espécie de obsessão relativamente à “senhor”;
deixa antever o seu ciúme ao constatar que a mulher amada foi levada por outro homem;
a loucura motivada pelo amor faz com que o sujeito poético deixe de viver a sua vida e se torne uma espécie de espectador da mesma, sugerindo assim a tal morte psicológica.
 
 
Retrato da «senhor»
 
A caracterização da «senhor» é feita indiretamente. De facto, as suas características deduzem-se a partir das ações da dama invocada na pequena história do homem com o qual o sujeito poético se compara.
Assim, ela:
▪ não é identificável (em obediência ao código do amor cortês), sendo nomeada apenas pela senha «mia senhor»;
é amada pelo sujeito poético (“rem que mais amou” ‑ v. 2);
é indiferente ao sujeito poético e à sua paixão, não lhe correspondendo e nunca lhe fazendo bem (“lhe nunca fez bem” ‑ v. 17);
escolheu um homem que não a merecia [“(…) a viu levar a quem / a nom valia, nen’a val” ‑ vv. 18-19];
por isto, é a causa do sofrimento, da loucura e da morte (por amor) do sujeito poético;
representa um duplo papel na cantiga: é a amada do sujeito poético e, em simultâneo, a esposa do seu marido.
 
 
Género
 
Este poema é uma cantiga de amor:
. o sujeito poético é masculino;
. expressa a sua coita de amor;
. a atitude de vassalagem amorosa;
. a hiperbolização dos sentimentos: a loucura e a morte de amor.
 
 
Relação com a cantiga de amigo
 
Esta cantiga apresenta traços que encontramos também na cantiga de amigo:
. a presença do refrão;
. o paralelismo de construção de estrofe para estrofe:
- “quen nunca bem / ouve da ren que mais amou” (1.ª estrofe);
- “foi amar / quen lhe nunca quis bem fazer” (2.ª estrofe);
- “amou tal / dona que lhe nunca fez bem” (4.ª estrofe);
. o paralelismo semântico: as estrofes, embora existindo uma certa progressão temática, apresentam ideias muito semelhantes (vide desenvolvimento do tema);
. o desenvolvimento da mesma comparação nas estrofes 1, 2 e 4, de conteúdo equivalente.
Por outro lado, esta cantiga de amor diferencia-se de muitas das outras por não conter nenhum elogio explícito às qualidades da «senhor».
 
 
Forma
 
Esta é uma cantiga de amor de refrão, com versos predominantemente octossilábicos, distribuídos por quatro quadras com refrão monóstico, formando quintilhas.
Relativamente à rima, esta é interpolada e emparelhada, de acordo com o esquema rimático abbac / deedc / cffcc / gaagc.
 

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Análise de "Quer'eu en maneira de proençal"

Género textual: cantiga de amor composição cujo sujeito poético é masculino (o trovador), que faz o panegírico (o elogio) da “senhor”, uma dama geralmente casada.
 
 
Resumo
 
O trovador declara que vai fazer «agora» uma cantiga de amor à maneira dos provençais, dando a entender que, até então, tinha composto muitas cantigas de amigo, sendo que decidiu produzir, no presente, um cantar à maneira dos poetas provençais.
Assim, elogia muito a sua «senhor», à qual não falta todo o «valor ou formosura ou bondade»; mais do que isso, Deus fê-la tão «completa de virtudes» que é mais valiosa do que «todas as do mundo».
Deste modo, segue os lugares-comuns da época e do género, pelo que, na segunda estrofe, prossegue o panegírico da dama: é muito sociável, quando é precisos sê-lo, e muita sensata/ajuizada; em suma, é a melhor de todas (“quando non quis que lh’outra foss’igual”).
Na terceira estrofe, a «senhor» é apresentada como uma projeção platónica do Bem, do Belo e da Virtude: até a afalar e a rir sobreleva as demais damas; além disso, é leal. O trovador conclui que desconhece quem possa ter eloquência bastante para falar suficientemente das suas qualidades, até porque, além daquilo que é só «ben», não há nada mais que dela possa ser dito.
 
 
Assunto: o trovador manifesta o seu desejo de fazer agora uma cantiga de amor à maneira provençal, onde possa louvar a sua senhora, a quem não falta virtude nenhuma, pois Deus a criou mais dotada de qualidades (físicas e sobretudo morais) que todas as mulheres do mundo.
 
 
Tema: o panegírico da mulher       ® ideal
(elogio)                         ® inacessível
® perfeita
® divinizada (deusa)
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª cobla): o sujeito poético revela a sua intenção / o seu objetivo («fazer agora um cantar d’amor»).

 
NOTA:
 
1) O verso 1 denota a influência dos cantares da Provença na lírica galaico-portuguesa. A influência dessa estética encontra-se nos seguintes aspetos:
® o uso da mestria;
® a idealização da mulher como a melhor de todas;
® a enumeração das qualidades da dama;
® o amor cortês.
 
 
2.ª parte (2.ª-3.ª coblas) - Caracterização da Senhora (objeto):
 
física:
- formosa: «fremusura»
- bela: «beldade»
- sorriso bonito: «riir melhor / que outra mulher»
 
psicológica e moral:
- bondosa / generosa: «bondade»
- sábia: «sabedor de todo ben»
- perfeita: «comprida de ben»
- sensata / ajuizada: «bon sem»
- leal
 
social:
- honrada / possuidora de grande valor: «prez»
- «de mui gran valor»
- possuidora de boas maneiras / muito sociável: «mui comunal»
- «falar mui ben e riir melhor»
 
         Em síntese, estamos perante um retrato essencialmente psicológico: todas as características se orientam para a caracterização da alma, do espírito da senhora; que aponta para o retrato da mulher idealizada.
 
         Por outro lado, e atendendo à cantiga "Proençaes soen mui ben trobar", na qual D. Dinis denuncia o fingimento dos trovadores provençais, relacionando-a com esta cantiga, concluímos que ele também sabe trovar à maneira provençal e fá-lo de forma apreciável, demonstrando conhecer bem a técnica provençal e os seus artifícios poéticos, chegando mesmo a socorrer-se de termos provençais ("prez"). De facto, esta cantiga é quase um manifesto poético dos cantares de amor provençais. O próprio D. Dinis não deixa lugar a dúvidas ao afirmar logo nos versos iniciais:
"Quer' eu en maneira de proençal
fazer agora um cantar d' amor".
 
 
Conceção do amor e da mulher
 
         A mulher das cantigas de amor é uma mulher criada pela imaginação do poeta, distante da vida e da realidade, inacessível, a mulher-deusa. Ela é perfeita a todos os níveis, o que a coloca num plano superior, tornando-se inacessível ao sujeito poético, o que lhe causa sofrimento.
         Pelo contrário, a donzela das cantigas de amigo é uma rapariga real, simples, popular, do campo, movida por um amor real e sincero.
         Ao invés, na poesia de influência provençal, o que há é um amor-adoração, ao sabor do idealismo platónico. Podemos classificá-lo como artificial ou artificioso, pois ele é apenas a força ideal que alimenta a inspiração do poeta.
         A mulher retratada nesta cantiga é idealizada, dentro de uma visão platónica do amor. É uma mulher vista de longe, construída pela imaginação do poeta, é uma deusa intocável a quem o trovador rende a sua homenagem, a sua vassalagem. A sua beleza e o bem que possui são, de acordo com a teoria platónica, uma ideia pura. O amor cortês apresenta-se como ideal, como aspiração que não tende à relação sexual, mas surge como estado de espírito que deve ser alimentado.
 
 
Relação entre o sujeito poético e a mulher (amada)
 
Moldada pela relação feudal entre senhor/suserano e vassalo, na cantiga de amor há um grande distanciamento entre o sujeito poético / trovador e a mulher amada. Esta é a suserana e o trovador é o vassalo, o qual celebra as qualidades inexcedíveis da senhora, com toda a devoção e lealdade, segundo as regras do código do amor cortês.
 
 
Recursos poético-estilísticos
 
         1. Nível fónico
 
. Estrofes: três coplas uníssonas, isométricas, constituídas por 7 versos.
. Rima  - abbacca;
- emparelhada e interpolada;
- consoante;
- pobre ("amor"/"senhor") e rica ("mal"/"leal";
- aguda ou masculina.
. Metro: versos decassílabos agudos.
. Ritmo binário.
. Transporte: vv. 1-2, 6-7, 8-9, 18-19, 19-20.
. Refrão: esta cantiga não possui refrão, como sucedia com muitas de amigo, porém os dois versos finais de cada estrofe, nomeadamente das duas primeiras, funcionam como se o fossem pela posição e pela repetição de ideias. De facto, esses versos servem para realçar o quão perfeita e ímpar é esta mulher.
 
 
         2. Nível morfossintático
 
. Adjetivação (vv. 6, 9, 11, 18): estão na base do retrato da senhora e são essencialmente de ordem psicológica, pois o objetivo do trovador é fazer realçar as características morais e psicológicas da Senhora.
. Nomes:
- proençal: determina a origem e influência em Portugal das cantigas de amor;
- Deus: caracteriza a mulher como ideal e perfeita, pois todas as suas qualidades têm origem em Deus;
- ben: significa que a mulher é um ideal, que possui as qualidades supremas concedidas a um ser.
. Advérbio agora: pressupõe um passado poético de D. Dinis, que é cantiga de amigo, género que o rei-poeta também cultivou.
. Equilíbrio entre a coordenação e a subordinação: equilíbrio entre a expressão de sentimentos e o tom narrativo.
. Verbos:
® pretérito perfeito: a caracterização da Senhora, que recebeu de Deus só qualidades;
® presente: a intenção de fazer uma cantiga de amor;
® futuro: o tema da cantiga ® louvar a Senhora.
. Orações causais, temporais e consecutivas: indiciam um maior cuidado na elaboração do discurso; as orações subordinadas causais das segunda e terceira estrofes estabelecem um nexo de causalidade em relação à primeira estrofe, pois aquelas coblas funcionam como justificação do propósito da cantiga.
. Conjunção subordinativa «ca»: esta cantiga de amor, à semelhança de outras, apresenta inicialmente uma ideia que tem de ser justificada no resto da composição. Neste caso, o trovador afirma que a mulher que vai louvar é única e termina mesmo a primeira cobla constatando que Deus criou uma mulher perfeita que «mais que todas las do mundo val». A estrofe seguinte (bem como a terceira) inicia-se com a conjunção subordinativa causal «ca» (v. 8), que introduz a “listagem” das qualidades da «senhor» que comprovam a afirmação final da primeira cobla. A progressão do texto nas cantigas de amor segue frequentemente esta linha de desenvolvimento.
. Linguagem embutida de provençalismos: sen (senso), prez, comprida de ben, loor.
. Polissíndeto: explicita o entusiasmo e o deslumbramento do sujeito lírico, bem como destaca, por acumulação, o conjunto de qualidades da mulher amada.
. Poliptoto: o jogo com as formas do verbo "fazer".
. Sinonímia: «fremosura» / «beldade»; «comprida de ben» / «sabedor de todo ben e de mui gran valor», etc.
 
 
         3. Nível semântico
 
. Hipérboles: o sujeito exalta a sua "dona", faz o seu panegírico, da mulher que excede todas as outras: "mais que todas no mundo val"; "ca non há, trálo seu ben al", “quando non quis que lh’outra foss’igual” ninguém a excede nas suas qualidades; nenhuma se lhe compara; ou seja, a dama é colocada num plano de superioridade relativamente ao trovador.
. Comparações: encarecem e superlativam a mulher, louvando-a, colocando-a num pedestal onde se revela superior às outras "tanto a fez Deus comprida de bem / que mais que todas las do mundo val"; "e rir melhor / que outra mulher".
 
 
Classificação
 
1. Cantiga de amor: composição poética de carácter lírico, cujo emissor é um trovador que exprime os seus sentimentos amorosos em relação a uma dama frequentemente designada por "mha senhor".
         O poeta elogia e louva as qualidades invulgares e singulares da mulher amada a nível físico, moral, psicológico e social, de forma hiperbólica, seguindo o modelo provençal.
 
1.1. Formal:
- cantiga de mestria (= sem refrão);
- cantiga de atafinda.
 
         A Provença, pelo seu clima ameno, favorece a caça e as cruzadas, o que faz com que o nobre passe muito tempo fora do castelo. É uma sociedade matriarcal: a castelã é que tinha a seu cargo o controle político, social e económico; é a senhora no seu feudo. Daí ser natural que os trovadores procurem conquistar benefícios e benesses da "senhor".
         O trovador acaba por transpor para o plano amoroso uma situação do plano social:
 
 
         As cantigas de amor tratam sempre o tema do amor em duas vertentes:
- o trovador exprime o seu amor arrebatador, mas sempre de forma espiritualizada, ainda que sofra da coita de amor;
- o elogio da mulher amada.
         Nestas cantigas, o trovador dirige-se à "senhor" numa atitude de vassalagem e subserviência, rendendo-lhe o culto que o "serviço amoroso" lhe impunha. Este serviço amoroso orientava-se por um código rígido de comportamento ético: as regras do amor cortês, que vêm na linha da poética da "fin' amors", recebidas da Provença.
         Assim, e de acordo com este código:
* o trovador teria de mencionar comedidamente o seu sentimento (mesura), a fim de não incorrer no desagrado (sanha) da mulher amada;
* o trovador teria que ocultar o nome dela ou recorrer a um pseudónimo (senha);
* o trovador tinha que prestar à amada uma vassalagem que apresentava 4 fases:
® fenhedor: o trovador limitava-se a suspirar pelo amor da sua dama;
® precador: o trovador ousava declarar-se;
® entendedor: o trovador já era ouvido pela dona;
® drudo: o trovador era amante.
 

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...