Português: Fernando Pessoa
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sábado, 17 de fevereiro de 2024

Análise do quadro "Heterónimos", de Almada Negreiros


Almada Negreiros (1893-1970). Heterónimos. 1958. Mural Fac. Letras de Lisboa


    A arte, dando voz a Campos, é “a expressão de um pensamento através de uma emoção ou, em outras palavras, de uma verdade geral através de uma mentira particular.” (cit. por Coelho, 1949: 162). Sob esta forma de arte dramatúrgica representada em gente, o traço de Almada percorre os corpos de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos na sua própria linguagem, integrando-os numa estética que se classifica de intemporal. Num estilo único, Almada, não mais dramaturgo do que Pessoa ele mesmo, teatraliza o drama em gente e, na reprodução pictórica em causa, não se limita a apresentar o que este triângulo de poetas foi ou poderia ter sido. Almada vestiu as almas reais ao corporizar a totalidade da mentira dos corpos. Almada, pintor, dramaturgo despersonalizado, criou imagens como extensões das almas: da deles, de Pessoa, da sua. E o drama em gente foi interpretado, decifrado, transfigurado, metamorfoseado, representado, dramatizado, permanecendo, no final, os fragmentos daquilo que cada um deles foi: “Voo outro – eis tudo.” (Pessoa, 1950: 17).
Os “eus” que revelam a multilateralidade pessoana dificultam ao pintor a tarefa da sua representação na obra e, consequentemente, a de quem tenta descortinar o seu impossível retrato. O negro absoluto em que, pelas suas próprias mãos, envolveu as máscaras involuntárias (?) do seu fingimento, torna-as incoloríveis, se assim as podemos dizer, incompatíveis com qualquer representação pictórica, em suma, invisíveis de tão divisíveis que são. Contudo, os pintores continuarão pintando, perdendo-se, tentando encontrar os possíveis corpos, ajustando cores, moldando rostos a máscaras.
Almada Negreiros, que parece situar os heterónimos pessoanos em três planos distintos nesta representação, serve-se de uma linha quase contínua, que se move, simultaneamente, no sentido de uma abstração, de uma simplificação e de uma (ou várias) incerteza premente. Sabemos tratar-se de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, mas teremos iguais convicções que nos permitam identificá-los, à primeira vista, como sendo de facto quem aparentam ser?
A primeira figura da esquerda da representação, facilmente identificável com Alberto Caeiro, aparece-nos delineada melancolicamente por um tom azul dramático, quase trágico. Ligeiramente inclinado para trás, Caeiro é, das três personagens, a mais transparente. As linhas arredondadas que traçam o seu ténue volume demarcam, curiosamente, a sensação ambígua de quem já não está, daquele cuja vida “não pode narrar-se pois que não há nela de que narrar. Seus poemas são o que houve nele de vida” (idem, 1999: 329). E assim parece ser.
O poeta bucólico “era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era.” (idem, 1950: 26). É realmente frágil que Almada o pinta. Deste modo, “O facto curioso em Alberto Caeiro é que ele surge, aparentemente do nada e mais completamente do nada do que qualquer outro poeta.” (idem, 1999: 378). Surge do nada e, na voz do próprio, não passa de “um andaime” (ibidem: 378). Assim sendo, Caeiro é como um andaime vindo do nada feito para chegar a um outro local que não sabemos qual é. Um nada que leva a lado nenhum, ao desconhecido. Um nada que leva ao nada. E é deste modo que Caeiro irrompe da pintura como quem não suporta a ideia da própria existência. Caracterizado numa pose distorcida, articula-se com os vários sentidos que as linhas nos abrem, criando, dentro de um corpo, os rostos possíveis. O seu olhar, poderoso veículo de comunicação, é de um vazio profundamente assustador, tal como a expressão do seu rosto, mas, simultaneamente, os seus olhos são “azuis de criança que não têm medo” (idem, 1950: 27), como Álvaro de Campos de outro modo não os poderia revelar. O cabelo, de “um louro sem cor” (ibidem: 26) aparece-nos totalmente apartado para trás. As próprias linhas paralelas e secas que desenham o cabelo nada mais fazem senão corroborar esta duplicidade, ou multiplicidade, que acaba por caracterizá-lo: a criança que não teme e o adulto que não faz senão temer.
O braço esquerdo, posicionado ao longo do corpo, tal como o direito, termina numa mão ligeiramente inclinada, na posição normal de passo. Como as viu Campos, “as mãos eram um pouco delgadas, mas não muito; a palma era larga.” (ibidem: 27). Assim as pinta Almada. Ambas as suas mãos são perfeitamente visíveis, ao contrário do que acontece com as outras duas personagens, e na mão direita segura o que aparenta ser duas folhas, transparentes, tal como ele. Talvez Almada quisesse sugerir que, tal como Caeiro não era corpo, também as páginas não o eram. Páginas vazias de cor, de linhas, de letras, de pensamentos passíveis de serem guardados, num corpo inteiramente translúcido, pronto a ser ocupado, dito, escrito, vivido, existido.
A sua silhueta encontra-se inclinada para a direita, como quem caminha em frente, já que a perna esquerda está na posição de passo. No entanto, apesar de tudo nele indicar movimento (o que é coincidente nos três), Caeiro parece estático... Ou será que se encontra realmente imóvel? E, se assim é, o que espera Caeiro? Ou quem espera Caeiro na sua inércia?
Dou a palavra a Álvaro de Campos: “A expressão da boca, a última coisa em que se reparava – como se falar fosse, para este homem, menos que existir, – era a de um sorriso como o que se atribui em verso às coisas inanimadas belas, só porque nos agradam – flores, campos largos, águas com sol – um sorriso de existir, e não de nos falar.” (ibidem: 27). A expressão da boca é de uma complexa interpretação. Aparentemente, não se mostra, como na anterior descrição, com um sorriso, mas, pelo contrário, é vagamente triste, emotivamente penosa, como quem busca as suas feições e não as encontra. Em Caeiro, Pessoa pôs todo o seu poder de despersonalização dramática. Talvez seja isso que Caeiro procura, ou o que espera. A sua (des)personalização, a sua pessoa, ou, tão simplesmente, a ausência de sentimento que sempre buscou.
“Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 de altura, mais dois centímetros do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos.” (ibidem: 26).
Segundo a descrição que o próprio Pessoa faz dos heterónimos Reis e Campos, numa primeira impressão, a figura que se segue à de Alberto Caeiro corresponderia a Ricardo Reis. Afirmo-o até pelo simples facto de, no bolso esquerdo do seu casaco, Almada ter colocado uma folha enrolada em si própria e nela ter escrito o nome REIS com letras quase impercetíveis, mas que estão lá e que o confirmam. Logo, porquê a hesitação em atribuir o corpo ao nome que supostamente lhe corresponde?
Na voz de Pessoa, Ricardo Reis é um pouco mais baixo e mais forte do que Alberto Caeiro. Na representação pictórica em causa, aquele a quem chamaríamos Reis, pelo nome que tem na folha do bolso esquerdo do seu casaco, aparece-nos retratado como sendo um pouco mais alto do que Caeiro e em nada mais forte do que este, o que poderia ser facilmente refutado pelo facto de Almada parecer situá-lo numa perspetiva ligeiramente dianteira. Todavia, como justificar a sua tentativa de sorriso, a gola da camisa desmazelada, o último botão do casaco aberto, o bolso direito desleixadamente cheio do “pagão por carácter em quem Pessoa colocou toda a sua disciplina mental” (ibidem: 28)? Onde se encontra Ricardo Reis para quem “quanto mais fria a poesia, mais verdadeira” (idem, 1999: 392), que procura a perfeição de uma existência que sente imperfeita? Onde se encontra Ricardo Reis neste fingimento? Em quem reconhecer Ricardo Reis neste drama em gente? Como decifrar o seu jeito nada comedido quando comparado com o da figura de um objetivismo natural e próprio cuja mala na austera mão esquerda o identifica, supostamente, como Campos? E, sobretudo, a sua postura desalinhada, descuidada até? Será que podemos, sem a ínfima dúvida, atribuir esta representação à de alguém que “sintetiza toda a sabedoria do passado, todo o património moral da tradição humanística” (idem, 1978: 14)?
De Reis diz Álvaro de Campos ter uma inspiração “estreita e densa, o seu pensamento compactamente sóbrio, a sua emoção real, se bem que demasiadamente virada para o ponto cardeal chamado Ricardo Reis.” (cit. por Coelho, 1949: 164). Pertencerá, deste modo, este corpo ao Reis egocêntrico que Campos descreve? Ao Reis que escreve com um purismo que o próprio Fernando Pessoa considera exagerado? A um Reis de um triste epicurismo que não procura os prazeres violentos e que, do mesmo modo, não foge às sensações dolorosas, aparentando a calma, a serenidade, a placidez, a sobriedade individualista? Poder-se-ia, numa perspetiva de traço caricatural, adequar a descrição de um homem absolutamente disciplinado, cuja obra é profundamente triste, à personagem que, rigidamente, segura na sua mão esquerda a mala de Campos? Nesta ótica, é lícito considerar que Campos albergar uma página no seu bolso esquerdo pertencente a Ricardo Reis (coincidentemente, ou não, o mesmo lado onde a mala de Campos se encontra nas mãos de um possível Reis, mascarado de monóculo e de chapéu) e Reis teria uma mala de Campos. Qual o valor de um nome numa mala, numa folha? Por que motivo Almada não vestiria Campos de Reis e Reis de Campos? Por que razão se negaria ele o prazer de ser agora o dramaturgo deste drama em gente, destas personae que figuravam, mais do que em Pessoa, ao seu lado? Não estará a solução do enigma no breve sorriso do pretenso Reis? Ou, quem sabe, confidencialmente oculto na folha que acolhe o seu nome...
Permanecem as hipóteses, as incertezas demoram-se e as personagens vão teatralizando pelas mãos do dramaturgo que as encena...
Abro um parêntesis para lembrar que, segundo Álvaro de Campos, Ricardo Reis foi aquele que se lhe definiu como abominando a mentira, porque a mentira nada mais é do que inexatidão. Dando voz ao primeiro, “Todo o Ricardo Reis – passado, presente e futuro – está nisto.” (Pessoa, 1980: 268). Inexatidão, mentira, drama, teatro, ficção, engano, falácia de movimentos, de falas em atos onde as personagens, caricaturas, marionetas nas mãos do dramaturgo, agem em embuste. Ora, se assim é, como avaliaria Ricardo Reis o drama que o próprio Pessoa lhe preparou e que Almada tratou de teatralizar?
Todavia, se considerarmos que é Reis de facto a figura que se segue a Caeiro, vemos objetivamente que este se posiciona de frente na representação. É a figura central do triângulo que, contudo, se inclina para o seu mestre. De rosto voltado para a direita, num movimento rotativo para onde se encontra Caeiro, Reis parece buscar nele o equilíbrio que Campos procurava, a mais pura realidade, a intuição sobre-humana que lhe era natural. Nas palavras do próprio, “Eu era como o cego de nascença, em que há porém a possibilidade de ver; e o meu conhecimento com “O Guardador de Rebanhos” foi a mão do cirurgião que me abriu, com os olhos, a vista.” (idem, 1999: 366), assim os seus olhos parecem, numa demanda incessante, procurar em Caeiro a verdadeira sapiência que o liberte da cegueira em que se encontrava mergulhado.
Os três bolsos do casaco de Reis encontram-se repletos, talvez de corpos que, ocultos, se tornam indefiníveis. Objetos ocultos, outros visíveis que possivelmente contêm ocultos em si. A folha que Almada colocou no seu bolso esquerdo é, no mínimo, enigmática. A obscuridade que transmite o envolvimento em si própria faz-nos, se não mais, imaginar o que esconderá o lado encoberto da folha. Uma folha de Reis que partilha a similaridade com a da mão direita de Caeiro, mas que se apresenta como tudo menos transparente. A linha do bolso esquerdo de Reis fá-lo absolutamente redondo, descuidadamente cheio. O que ocultará? Quanto ao bolso superior, nele encontramos claramente uma caneta (possivelmente a do ortónimo) e aquilo que aparenta ser um lenço desalinhado, em harmonia com o bolso do casaco de quem o recolheu.
De perna direita à frente, cruzada sobre a esquerda, Reis sugere movimento, mas que, tal como em Caeiro, não pode ser absolutamente atestado. O braço direito, que em Caeiro segura páginas de nada, em Reis encontra-se fletido. O mesmo gesto, pelo mesmo braço, é partilhado por quem segura a mala de Campos; contudo, se em Reis o membro se esconde atrás das costas para uma mão vir segurar inesperadamente o outro braço (braço este que literalmente expõe uma larga e estranha mão de palma aberta virada para a frente, como que a revelar que não pertence a este corpo), em Campos o braço flete-se sobre o peito e é a mão que se encobre, vibrando, silenciosamente. Braço fletido com mão encoberta, como que a esconder-se do porte rígido que a sustém, a mão de Campos abriga-se entre os dois últimos botões do casaco, atribuindo a ordem ao corpo.
Casaco desabotoado no último botão, curiosamente tal como em Caeiro, gola de camisa descomposta, num corpo tendente a curvar-se que esconde um braço atrás das costas, que cruza uma perna em possível movimento e que inclina um rosto em busca, uma cara de Reis de cabelo liso e apartado ao lado pertencente a Campos, num olhar estranhamente impertinente, obscuro, como o braço, o bolso, a perna, o próprio Reis que Almada Negreiros retratou, fantasiou, dramatizou.
Álvaro de Campos, que surge a Pessoa em derivação oposta à de Reis, é a figura que se encontra no extremo oposto do triângulo, em oposição a Caeiro, o que não deixa de ser curioso. Campos aparece- -nos, tal como as outras personagens, em posição clara de movimento, se bem que, na representação, a aparência seja, de facto, mais realista comparativamente às outras, mesmo porque Álvaro de Campos parece vir ou ir de viagem devido à mala que segura na mão esquerda, facto que o pode situar talvez pela altura da morte de Caeiro, quando se encontrava em Inglaterra, já que afirma ter sido “uma das angústias da minha vida (...) que Caeiro morresse sem eu estar ao pé dele.” (idem, 1980: 272).
Descrito por Pessoa como o mais alto dos três, Álvaro de Campos surge-nos numa postura absolutamente retilínea, alinhada, austera, contrariamente ao Campos tendente a curvar-se que o ortónimo nos apresenta. Campos, “entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português” (idem, 1950: 26), não surge de cabelo “liso e normalmente apartado ao lado” (ibidem: 26), mas com um chapéu que lho encobre e que parece pertencer a Pessoa ele mesmo, aliás, tal como outros traços fisionómicos da personagem em si: “mito que sempre contempla Fernando Pessoa em travesti de passeio, óculos, chapéu, laço, gabardina, como as fotografias e os retratos que o fixaram nos últimos anos da sua vida.” (Stegagno-Picchio, 1988: 66).
O monóculo erudito que Pessoa lhe colocou, sim, está lá, talvez como o único objeto que realmente seja de Campos, ou, quem sabe, como nada mais do que um artifício entre tantos outros.
Álvaro de Campos, que na sua obra isolou o lado emotivo, “a que chamou «sensacionista», e que (...) produziu diversas composições, em geral de índole escandalosa e irritante” (Pessoa, 1968: 41), surge-nos aqui como uma personagem num porte absolutamente severo, clássico e regrado, um autêntico Reis. “E Reis nota em Campos a falta de uma disciplina, daquele domínio da emoção que faz a superioridade da poesia em relação à prosa.” (Coelho, 1949: 164): onde se encontra nesta personagem a rebeldia, onde ressalta a falta de domínio? Se “Pessoa isolou em Campos a sua impulsividade, os seus nervos; as impressões do dia-a-dia sensabor, a vontade lassa de as transmitir nuamente ao papel, sem refinamento estético.” (ibidem: 193), em que aspeto fisionómico transparece o ímpeto no filho indisciplinado da sensação? O ritualista em excesso, onde se encontra? E, se “Campos é o Pessoa que, pela imaginação, se mexe convulsivamente, raivosamente, com a força dos seus nervos, não uma força calma e duradoura” (ibidem: 192), onde está o extravasar de emoção de Álvaro de Campos? A inquietação metafísica com que Fernando Pessoa o concebeu? Onde se vê Álvaro de Campos neste corpo?
Interpretando-o como aquele cuja mala transporta o seu nome, em Campos as linhas do rosto são absolutamente reais, definidas até às formas mais simples do mais fino traço. Linhas retas que se alongam num traço contínuo da sobrancelha ao nariz, unindo os dois lados da face, linhas que contornam todo o seu corpo e temporariamente o retesam, são percebidas pela nossa memória como elevando-lhe em linha reta a perna direita (não ligeiramente fletida como em Reis, ou em Caeiro no caso da perna esquerda) num movimento ritmado, como quem caminha a largos passos em direção ao desconhecido. Talvez vá ao encontro de Reis, talvez siga até Caeiro. De face virada na direção de Caeiro a quem, tal como Reis, parece obedecer subalternamente, dele sobressai um olhar tão vago como a incerteza do caminho que toma, de quem ou daquilo que busca, ligando-o ao mundo exterior de uma forma sem retorno. Verdadeiramente negros, os olhos maquinalmente esvaziados coordenam, disciplinam um corpo que lhes obedece. Detêm um poder hipnótico, de onde brota a expressão que parece tudo querer possuir e, simultaneamente, de tudo abdicar, no vazio que por trás deles se rasga. Quem se encontra por trás daquele vazio? A quem obedece o corpo de Campos?
Nesta trilogia da unidade que Almada Negreiros interpretou, não podemos encarar a ordem na qual os colocou como meramente arbitrária. Os três planos de representação pictórica de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos não se apresentam como uma opção infundada; pelo contrário, Almada aplicou neles a sua mestria de representação. Nestas “ficções do interlúdio”, como Pessoa lhes chamou, as figuras pintadas em triângulo aparecem-nos como marionetas nas suas mãos. Suas... de Almada, de Pessoa, de ambos?
Ao traçar as linhas, prossegue numa melodia em que o ritmo une os elos dispersos das personagens, ritmo este que, só por si, justifica e resume a essência do gesto criador. Alberto Caeiro, sendo “o «mestre», porque elabora a doutrina e pratica a crítica que permite a emancipação de Fernando Pessoa do «decadentismo» a que estava acorrentado” (Simões, 1980: 321); Ricardo Reis “representando uma conquista substancial no caminho de uma personalidade que fará da simulação o seu processo normal de realização literária” (ibidem: 321); e Álvaro de Campos, “o discípulo que se aproveita das liberalidades que a rebeldia do primeiro favorece” (ibidem: 321), moldam como que um triângulo sem ângulos, partes de um todo como órgãos de um corpo, onde cada um deles converge do mesmo modo para a unificação, para ressurgir num Pessoa que se desintegra, reparte continuamente em cada um deles, escravo como é da multiplicidade de si próprio.
Na pintura, linha e cor unem as suas linguagens para nos devolver as figuras e o branco que a todos pertence não esgota em si a tonalidade semelhante da cor da pele que Almada Negreiros lhes veste. A camisa branca que lhes é comum, tal como o lenço que a lapela alberga, é uma das particularidades que os reconhece como únicos, unos, numa unidade essencial que se adivinha em afinidades, identificando-os na multiplicidade como indivisíveis na sua divisibilidade: “o mundo dos heterónimos constitui de facto um universo” (Coelho, 1949: 193).
Contudo, na semelhança reside a diferença, pois o branco que partilham, tal como a transparência que o traço, que lhes é comum, delimita, não deixa de ser aqui fator de desagregação, uma vez que a cor que descuida a camisa de um suposto Reis é a mesma que, pelo contrário, coloca no bolso de Álvaro de Campos um lenço dobrado meticulosamente, brindando-nos claramente com a diversidade na individualidade. Tornam-se entes diferentes do criador, filhos mentais com qualidades herdadas, mas com a diferença de serem outros. Outros distintos, marcadamente distintos.
Nesta oscilação entre semelhanças e diferenças, movimenta-se a linguagem de Almada, numa linha que demarca mais do que confunde, acentuando a lógica de um todo, as formas estruturais de um conjunto, de onde sobressai a interioridade das personagens. A arte de ser de Caeiro, a arte de sentir de Campos e a arte de viver de Reis consubstanciam-se no pincel de Almada e metamorfoseiam-se cada qual na sua máscara. “... quanto aos figurantes que as ostentam, eles dão-nos, ao mesmo tempo, a sensação de falar cada um para seu lado e de estarem continuamente a responder uns aos outros. São como personagens de uma peça monumental, na aparência toda construída em monólogos – os quais, todavia, se articulam num diálogo ininterrupto, estabelecido a uma zona mais profunda.” (Pessoa, 1978: 15).
Esta interpretação de possível caricatura que vemos pede-nos, obriga-nos à questão: para onde se dirigem Caeiro, Campos e Reis? O que pretendem encontrar? Quem pretendem encontrar? Ou será que devíamos perguntar-nos, pelo contrário, de quem pretendem fugir? Ou, ainda, de quem pretende fugir Almada quando teatraliza a fuga dos heterónimos pessoanos? Por que motivo fugirá Almada através deles?
A diversidade da personalidade artística de Almada, expressa, neste caso, através da pintura e representação, configura uma genuína teatralidade subjacente a todo o trabalho criativo do pintor. Deste modo, as diversas personagens, socorrendo-se de máscaras distintas, percorrem, não apenas o caminho que pelo poeta foi traçado, mas dramatizam a diversidade de caminhos que a obra do pintor percorreu. Personagens estas que instituem, afinal, uma obra, uma unidade, talvez um único ato, que o intérprete, ficcionista, dramaturgo, desenhista, despersonalizando-se, põe em ação, “da luta contra a histeria pela criação literária; do esforço do intelecto para expulsar a angústia; de como, despersonalizando-se, o autor se projeta no drama que compõe.” (Coelho, 1949: 164). Ou seja, as faces de Pessoa interagem, reagem umas às outras, comunicam, dialogam para que, através delas, por elas e nelas este possa encontrar caminhos possíveis, saídas para outros universos, para os universos da sua evasão.
    Os caminhos que percorrem, quando se encontram longe de si próprios para a si poderem regressar, são caminhos de procura, de rutura, de despersonalização. “É certo que Campos, algumas vezes perplexo (...) buscou evadir-se (...) por um certo ato de vontade delirante. E Reis, por seu turno, procurou o lenitivo do epicurismo. Deste modo, em face da situação que lhes é imposta, os discípulos de Caeiro tentam diferentes caminhos: a fuga pela alienação do mundo concreto, pela embriaguês da imaginação sensorial (Campos Whitmaniano), a criação por um esforço racional de um modus vivendi que reduza ao mínimo o sofrimento (Reis), ou a simples expressão da ansiedade, da angústia, da melancolia, do tédio (Campos, Pessoa ortónimo)” (ibidem: 190).
    Em Almada, a conquista da unidade passa pela noção da desconstrução do indivíduo coletivo. “Há uma abstração do «eu» concreto em proveito de um «eu» máscara, e, em Pessoa há uma abstração do «eu» concreto em proveito de outros «eus». Assim, Pessoa evolui num teatro feito daquilo que os sonhos são feitos, enquanto Almada traz a memória e o desejo da voz sonora, da fala como ato, na página como no palco.” (Martins, 1996: 312). Consciente da alteridade dos corpos, Almada reconstitui-se em novos fundamentos, anteriores ao encontro do “eu” consigo.
No retorno não encontra dentro de si o mesmo. Personalidade outra que pertence agora à própria Terra, à parte do mundo em que cada homem está. Dando voz a Almada, “O Homem não é um homem. O Homem somos nós todos e cada um de nós.” (Lambert, 1996: 148). Do mesmo modo, o que caracteriza a vida é a procura, não o encontro. É na procura que as vozes se cruzam e tecem. Tecido e o tear fundem- -se, confundem-se, acabando, finalmente, por ser o mesmo.
Almada Negreiros tenta restituir o segredo dos corpos, propiciar-lhes a existência através do mistério da linha, na essência plástica e anímica que os envolve. Agarrando os contornos do triângulo, na mesma linha fez eclodir a luz dos corpos, dos rostos, dos olhares, em semelhanças e contrastes de ligeiros traços e curvas difusas. É a linha que sobressai, que adquire o poder extraordinário de depurar as formas, de as reduzir a uma essência, ao próprio movimento e ao drama de ao corpo se unir e apagar a fronteira entre os dois mundos, unificando-os, eternizando-os, libertando-os ao encontro dessa essência, de uma genuinidade que a palavra manifestou e que Almada (trans)figurou.
O corpo é, assim, uma linha sem começo nem fim, triangular, que sugere o infinito, materializado a partir do universo escrito que funcionou como pretexto para a eclosão, para o preenchimento das formas a que as almas pertencem. A imaginação contaminou o universo ficcionado, realizando-o, encenando-o e dando-lhe um ou diversos sentidos. Sentidos estes que se ocultam no segredo da linha e lá permanecem, onde subsiste o drama em gente que o próprio Almada, porque toda a arte é uma forma de despersonalização, simulação e, simultaneamente, de espelho, completou.

 
Autoria:
 
Revista da Faculdade de Letras — Línguas e Literaturas,
II Série, vol. XXIII, Porto, 2006 [2008], pp. 233-249
 

sábado, 20 de janeiro de 2024

Análise do poema “Presságio” ou “O amor, quando se revela”

    O poema “Presságio” foi escrito por Fernando Pessoa em 24 de abril de 1928, já na fase final da sua vida (13 de junho de 1888 – 30 de novembro de 1935).

    O tema da composição poética é o amor, mais concretamente a dificuldade em o revelar à pessoa amada (em última análise a impossibilidade de viver um amor correspondido), abordado em cinco quadras de redondilha maior (bem ao gosto popular), com rima cruzada, segundo o esquema rimático ABAB.

    Na primeira quadra, o sujeito poético apresenta o mote do texto, isto é, o tema que vai ser desenvolvido, bem como o seu posicionamento face...


    Podes encontrar a análise completa do poema aqui: análise-do-poema-presságio.

domingo, 10 de dezembro de 2023

Análise do poema "A novela inacabada", de Fernando Pessoa


    Este poema de Fernando Pessoa é constituído por três quadras de versos de redondilha maior, com rima cruzada, de acordo com o esquema rimático ABAB.

    Na primeira quadra, o sujeito poético usa a metáfora nos dois versos iniciais para representar a sua vida como uma “novela inacabada”. Ora, sabendo que uma novela é um texto narrativo envolvente e complexo, cheio de situações variadas e complexas, com múltiplas reviravoltas, podemos inferir que o verso 1 remete para uma vida repleta de eventos intensos e emotivos. Por outro lado, a referida metáfora sugere que a vida do «eu» lírico, sendo uma novela e inacabada, não consegue realizar-se no seu dia a dia, no seu quotidiano. Deste modo, ele procura sentido... [continuação da análise 👉 análise-de-a-novela-inacabada].

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Análise do poema "Em Horas inda Louras, Lindas", de Fernando Pessoa

    Este poema é constituído por três sextilhas (isto é, três estrofes constituídas por seis versos), com rima cruzada, de acordo com o esquema ABABAB, ritmo regular e versos decassílabos.
    O tema do texto é a nostalgia da infância. Por outro lado, a composição poética constitui um exemplo da vertente simbolista da obra de Fernando Pessoa, como se pode verificar pelo recurso a imagens sensoriais, diversas sonoridades, aliterações e assonâncias, bem como de sugestões de significados ocultos.
    A infância que o sujeito poético recorda é representada pelas figuras femininas de Clorindas e Belindas, que brincam no...

 

 Continuação da análise aqui → Análise do poema "Em Horas inda Louras, Lindas".

sexta-feira, 12 de março de 2021

Análise de "D. Dinis"

 D. Dinis e o pinhal de Leiria
 
            Tradicionalmente, o rei D. Dinis (1261-1325), o sexto de Portugal, foi cognominado de o Lavrador, pois fomentou o desenvolvimento da agricultura (distribuiu terras, promoveu a agricultura, mandou plantar o pinhal de Leiria, embora atualmente se pense que a iniciativa terásido obra de Afonso III ou até de D. Sancho II).
            Independentemente de quem tenha sido, na verdade, o monarca que o mandou plantar, D. Dinis teve um papel fundamental no reforço da área do pinhal, do qual foram extraídos a madeira e o pez (alcatrão de origem vegetal) necessários, respetivamente, à construção e calafetagem das naus dos Descobrimentos.
 
 
 
1.ª parte (1.ª estrofe) – O sonho visionário de D. Dinis.
 
▪ Nos dois primeiros versos é apontada a dupla faceta de D. Dinis: o poeta – o trovador (que compôs cantigas de amigo) e o lavrador, o responsável pela plantação do pinhal de Leiria, cuja madeira foi fundamental para a construção das naus dos Descobrimentos (“O plantador de naus a haver” – metáfora – v. 2). Ambas as atividades se referem a atos criadores.
 
▪ O cantar de amigo é escrito durante a noite. Por um lado, a noite é um tempo de silêncio, solidão e calma, ambiente propício à reflexão, à inspiração e à escrita. Por outro lado, a noite é o tempo da germinação, no qual se prepara o tempo futuro, ou seja, é um período de preparação para o dia que há de nascer. É por isso que D. Dinis é apresentado escrevendo de noite: o monarca representou (à luz da conceção providencialista da História presente em Mensagem) a preparação dos Descobrimentos e a origem da literatura portuguesa (que está associada ao Quinto Império, na sua vertente cultural). Além disso, a noite é o momento de fecundação do sonho, ao qual sucede o dia, o nascimento do império.
 
▪ A metáfora e a metonímia “O plantador de naus a haver” remetem para os pinheiros mandados plantar pelo rei, que são virtualmente as naus das Descobertas, pois foram eles que forneceram a madeira para construir as naus usadas nas Descobertas. Projeta-se em D. Dinis o sonho de navegações futuras, realizadas em naus construídas com a madeira dessas árvores, iniciando-se assim a criação de um mito em torno da figura do rei, que, involuntariamente, preparou o futuro.
 
▪ Com efeito, os três versos iniciais do poema apresentam-nos D. Dinis como um visionário, um homem de génio que tem a capacidade de antever o futuro.
 
▪ O oxímoro do verso 3 sugere que o som que D. Dinis ouve (que, na realidade, não existe) é uma prefiguração do futuro: é o som produzido por um pinhal que, futuramente, será extenso e de um mar que será dominado graças à madeira dele extraída. Ou seja, realça a atitude meditativa do rei, que, ao compor o seu cantar, profetiza já a epopeia das Descobertas.
 
▪ A comparação e a metáfora dos versos 4 e 5 sugerem que dos pinhais sairá a madeira para a construção das naus, que permitirão a construção de um império, isto é, que possibilitarão a expansão, que trará riqueza suficiente (trigo) para todos os portugueses. Estes recursos permitem-nos visionar uma imensa seara cujos frutos constituirão o alimento, o suporte de um movimento expansionista do qual emergirá um império. O trigo é o símbolo de alimento, de poder económico, pois as searas de trigo, de cor que lembra o ouro, são a promessa de riqueza para o país. Note-se a presença, no verso 4, do eco da cantiga de amigo “Ai flores, ai flores do verde pino”.
 
▪ Por outro lado, sugere que a génese, a origem do futuro teve início em terra. Tal como o trigo é a base do pão que alimenta os povos, também os pinheiros serão a base da construção dos barcos que alimentarão as Descobertas. O trigo «ondula» ao sabor do vento, as naus ao sabor das naus Estes recursos aproximam os pinhais semeados por D. Dinis de uma sementeira de trigo, que germinará e dará o pão que são as naus que contribuirão para a descoberta e construção do Império futuro.
 
▪ Tal como o trigo é o ingrediente principal do pão, também a madeira fornecida pelos pinhais constitui a matéria-prima que permitiu saciar a «fome de Império» dos portugueses.
 
▪ Por outro lado, a forma verbal «ondulam» associa o movimento dos pinhais e do trigo (impulsionados pelo vento) ao das ondas do mar, ou seja, sugere o movimento das ondas que, no futuro, serão atravessadas pelas naus portuguesas.
 
▪ A expressão “sem se poder ver” (v. 5 – metonímia) associa a D. Dinis um dos traços característicos do herói: é um ser excecional, singular, dado que consegue percecionar, antecipar o futuro – a aventura marítima e a construção de um império.
 
▪ O recurso ao presente do indicativo contribui para a mitificação do herói, mostrando que, no seu tempo, foi a sua ação que preparou involuntariamente o futuro dos Descobrimentos, tornando o seu contributo intemporal.
 
2.ª parte (2.ª estrofe) – A concretização do sonho.
 
▪ O sujeito poético associa o cantar de amigo que D. Dinis está a escrever a um regato, que, como um pequeno fio de água, corre para o mar. Esta metáfora significa que o rei, além de precursor dos Descobrimentos (enquanto responsável pela plantação do pinhal de Leiria), também é um precursor de toda a literatura portuguesa, visto que as cantigas de amigo que escreveu se contam entre as primeiras composições poéticas da língua e literatura portuguesas. O «oceano por achar» pode constituir uma referência à epopeia portuguesa, escrita por Camões, sobre os Descobrimentos: Os Lusíadas.
 
▪ Pode igualmente significar uma visão metafórica de Portugal (uma nação «jovem» – porque recém-formada – e «pura» – porque ainda não contaminada pela ganância e pelo materialismo trazidos pelos Descobrimentos) como um «arroio», ou seja, um pequeno curso de água (uma pequena nação) que corre, mal nasce, em direção ao oceano. O cantar é, em suma, jovem, inocente e puro, e procura, de forma persistente, determinada e contínua o «oceano por achar» (vv. 6-7).
 
▪ A personificação do verso 8 (“a fala dos pinhais, marulho obscuro”) sugere o caráter mítico de D. Dinis, uma espécie de intérprete de uma vontade superior, que anunciava aos ouvidos do rei um novo ciclo de conquistas. O som dos pinhais que D. Dinis imaginava ouvir era um prenúncio secreto (“obscuro”) do ruído da epopeia marítima dos portugueses.
 
▪ O mar a cumprir no futuro já pode ser adivinhado no rumor dos pinhais: “E a fala dos pinhais, marulho obscuro, / É o som presente desse mar futuro” (paradoxo e personificação – vv. 8-9). A fala dos pinhais manifesta o seu desejo de serem navios e de atingirem o mar, mas, nos últimos três versos, é a terra que anseia pelo mar. Trata-se da atração que o oceano sempre exerceu um povo que se distinguiu como uma nação de navegadores. Por outro lado, o último verso do poema traduz a ideia de união, isto é, a ideia de que o mar, após a sua conquista no futuro pelos portugueses, já não separará, antes ligará povos, culturas, civilizações.
 
▪ Os dois últimos versos da segunda estrofe indiciam os dois ciclos da História de Portugal: numa primeira fase, a expansão por terra, mais tarde o domínio do mar. D. Dinis mandou plantar o pinhal de Leiria para impedir que as terras à beira-mar fossem destruídas pela ação da areia do mar e do vento, no entanto, anos mais tarde, a madeira por ele produzida seria utilizada para construir as naus em que partiram os navegadores portugueses. A terra é, por isso, a voz presente que chama pelo futuro, o mar.

D. Dinis
 
 

Trovador
 
Plantador
 
 

Poeta: criador de poesia

 
Plantador do pinhal de Leiria: criador

 
 
 
Autor de cantigas de amigo (e de amor)

 
“é som presente desse mar futuro”

 
 
 
 
Prenúncio dos Descobrimentos: “o oceano por achar”

 
 
Integração do poema na estrutura de Mensagem
 
            “D. Dinis” faz parte de “Brasão”, a primeira parte de Mensagem, sendo o sexto poema da secção “Os Castelos”.
            D. Dinis foi o sexto rei de Portugal e antecede o ciclo das Descobertas. Trata-se do monarca de preparar o futuro, criando, no [seu] presente, condições para a construção do Império, que será cantado na segunda parte da obra.
 
 
Valor simbólico de D. Dinis
 
            D. Dinis é o herói apresentado como um instrumento de uma vontade transcendente que está ao serviço da missão que Portugal tem a cumprir: a construção de um império cultural, o Quinto Império.
            O rei foi um trovador, porque compôs poemas (cantigas de amigo e de amor), alguns dos quais tinham como cenário o mar.
            Foi o Lavrador, visto que desenvolveu a agricultura, dado que muitas terras tinham sido abandonadas e era necessário fomentar o setor, para alimentar a população.
            Foi ainda o plantador, isto porque mandou plantar o pinhal de Leiria, cuja madeira foi utilizada, posteriormente, para construir as naus das Descobertas.
 
 
Recursos poético-estilísticos
 
            A nível fónico, o poema é constituído por duas quintilhas. Os versos são irregulares quanto à métrica e ao ritmo. O segundo verso de cada estrofe possui 8 sílabas, enquanto os restantes são decassílabos.
            A rima é cruzada, emparelhada e interpolada, segundo o esquema ABAAB; é consoante (“amigo”/”consigo”), pobre (“haver”/”ver”) e rica (“amigo”/”consigo”), grave (“amigo”/”consigo”) e aguda (“haver”/”ver”).
            O verso decassílabo, de ritmo largo, é próprio para a expressão de uma mensagem que traduz o meditar repousado de um poeta que é rei e vai ao leme de um povo que quer ser grande.
            No poema convivem os sons fechados e semifechados, que remetem para o sonho e para o impossível, e o som aberto [a], que remete para a expansão, para a realização do sonho.
            O poema é ainda rico em aliterações (“na noite”) e em assonâncias e onomatopeias, sugerindo o ruído do rio ou da água que corre: “E o rumor dos pinhais – marulho obscuro”.
 
            A nível morfossintático, são de destacar os seguintes recursos:
. Verbos:
- As formas verbais evocam o movimento, a flexibilidade sugerida na imagem da espiga de trigo ao vento, numa união entre o movimento e o sonho, como constatação de um destino que, numa primeira fase, é dado de uma forma indistinta.
- O “rumor dos pinhais”, o som, reaparece no último verso do poema, na expressão “a voz da terra”. A terra, por seu lado, é símbolo de fecundidade – é como se a ação de D. Dinis, cujas consequências se desconheciam ainda, se anunciasse no som indistinto.
- O mar funciona como o elemento fecundador do elemento feminino: a terra.
- Os verbos encontram-se no presente do indicativo, não apenas o presente histórico ou narrativo, mas sobretudo o presente de aspeto durativo. As formas verbais (“escreve”, “ouve”, “busca”) traduzem ações que perduram, que se prolongam no tempo.
   Por outro lado, fazem a interseção temporal passado/presente. De facto, o presente, no modo indicativo, aponta, ao nível mítico, para o futuro; ou seja, não só a época dos Descobrimentos surge como um tempo futuro em relação ao momento em que viveu D. Dinis, mas a própria dimensão do seu ato, que se projetará ainda num período que está para vir, que a expressão “mar futuro” anuncia. Para Pessoa, o ato criador do passado é a promessa de um futuro grandioso que se cumprirá sob a égide de Portugal.
 
. Nomes:
- O ato criador de D. Dinis é apresentado de forma analógica, constituindo-se em unidades duplas:
. cantar (de amigo) / arroio;
. plantador / Império;
. pinhais / trigo;
. terra / mar: remete para a ideia de união.
- O nome “noite”, no início do poema, encontra o seu duplo na totalidade do discurso, ou seja, o dia, cuja luz é o momento da própria fecundação, que dá origem ao nascimento do Império (quer no período dos Descobrimentos quer na era que, segundo Pessoa, constituirá o Quinto Império).
. Os adjetivos, sobretudo presentes na segunda estrofe, unem os princípios passividade/atividade, assim como dois momentos temporais distintos, que apontam para um tempo posterior às épocas referidas no poema.
 
            A nível semântico, deparamos com:
. Metáforas:
- “O plantador de naus a haver” (v. 2) – também metonímia, pois as naus são construídas com a madeira do pinhal, isto é, tomou-se o produto pela matéria de que é feito: sugerem a preparação longínqua da matéria-prima de que se fabricariam as naus para a epopeia marítima dos portugueses;
- “É o rumor dos pinhais...”: o rumor dos pinhais (ainda confuso como um marulhar) é já a semente de algo que frutificará, graças às possibilidades materiais (a madeira com que serão construídas as naus) e às capacidades psicológicas dos portugueses que sonharam sulcar os oceanos desconhecidos e conseguiram construir o nosso império ultramarino. A ação dinâmica do sonho da demanda do oceano reforça-se com a visão e audição do mar que nos chama para a nossa grande aventura épica e nos sagrará como heróis míticos. A nossa identidade nacional afirmou-se pela importância concedida ao sonho, à poesia e ao mar;
- “Arroio, esse cantar, jovem e puro, / Busca o oceano por achar...”:
. exprime a forma como os portugueses, começando quase do nada (“arroio”), foram engrossando o caudal das suas forças, até conquistarem o mar;
. por outro lado, a associação do canto a um rio, cuja água corre, simboliza que a ação de D. Dinis se perpetuará no tempo, ecoando no futuro.
            O poema referencia duas fases da nossa história: o ciclo da terra (“plantador de naus”, “pinhais”, “trigo”) e o ciclo do mar (“arroio”, “naus”, “mar”). A terra e o mar são dois pólos entre os quais se balouçou continuamente o povo português, sem nunca ter encontrado uma distância equilibrada entre esses dois pólos, de acordo com o ditado “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”.
. Oxímoro: “... ouve um silêncio murmuro consigo” ® realça a atitude meditativa de D. Dinis que, como um mago rei-poeta, ao escrever o seu cantar de amigo, estava já a profetizar a epopeia marítima dos portugueses.
. Personificações:
- “É o rumor dos pinhais como um Trigo / De Império” (também comparação). porquê os pinhais, trigo de Império? O trigo (o pão) não é só a base da alimentação, é também o símbolo dos alimentos (ganhar o pão de cada dia é ganhar todos os alimentos). Por outro lado, não há império sem poder económico: o trigo é a promessa da riqueza de um país. Daí a ligação “pinhais” “Trigo de Império”. Os pinhais contribuíram para a expansão portuguesa e esta criará a riqueza do nosso império; a palavra trigo pode ter o sentido de abundância, ausência de fome, riqueza, sobrevivência, alargamento do território, construção do Império.
- “E a fala dos pinhais...”          e
- “É a voz da terra ansiando pelo mar”: os pinhais parecem falar e inspiram o próprio cantar do rei-poeta, porque anunciam qualquer coisa de grandioso, ainda envolvida em mistério.
. Conjunto de expressões que se congregam para dar a sugestão de um mistério do domínio futuro dos mares: “Na noite...”, “... silêncio murmuro...”, “... rumor dos pinhais...”, “... marulho obscuro...”.
 
            Este poema, como todos os de Mensagem, está imbuído de sensibilidade épica. A grandeza dos feitos de Portugal é inseparável da sua grandeza literária: o cantar nascido do marulhar dos pinheiros prenuncia a grandeza épica de Portugal. Não nos esqueçamos que Fernando Pessoa concebeu na Mensagem um super-Portugal de que ele seria o super-Poeta.


A organização da mensagem no plano espácio-temporal
 
            O sujeito poético imagina D. Dinis, “O plantador de naus a haver” (seria dos pinhais semeados por este rei que viria a madeira para os navios das descobertas), a compor uma cantiga de amigo, inspirado pelo rumor dos pinhais. O poeta recua no tempo até ao presente de D. Dinis (passado para o poeta) e escuta, com o rei, “a fala dos pinhais... o som presente desse mar futuro”. Assim, o poeta recorre ao presente, enquanto no poema “D. Sebastião” utiliza o passado. Neste caso, é Pessoa quem traz D. Sebastião para o seu tempo, isto porque este rei é uma figura lendária que está fora do seu tempo, porque é simultaneamente uma figura do passado, do presente e do futuro (sebastianismo).
            Por outro lado, notemos que a mensagem de "D. Dinis" está basicamente centrada no futuro, dado que, se a perspetiva temporal do poeta é a de D. Dinis e este rei preparava as glórias futuras da sua pátria, é óbvio que a mensagem se centra sobretudo no futuro: "O plantador de naus a haver...", "...É o som presente desse mar futuro...".
            No que diz respeito à questão espacial, há um conjunto de expressões que remetem claramente para a época anterior aos Descobrimentos: "O plantador de naus...", "... o rumor dos pinhais...", "É o som presente desse mar futuro...". Mas, por outro lado, surgem outras expressões que projetam Portugal através do mundo: "... como um Trigo / De Império...", "Busca o oceano por achar...", "... desse mar futuro...", "... ansiando pelo mar...".
            Se relacionarmos o espaço com o tempo, constatamos que ao futuro corresponde a projeção de Portugal através dos mares.
 
 
Conclusões
 
            1.ª) D. Dinis aparece caracterizado pelo cantar de amigo (o poeta) e como o plantador de naus (o lavrador). Assim, conciliam-se na sua personalidade poética o sonho providencialista de um império que se estenderá por longes terras e mares desconhecidos.
            O primeiro elemento caracterizador reporta-se ao rei trovador / poeta que compôs cantigas de amigo e de amor, na época trovadoresca. Ligado ao segundo, mostra como a poesia tem forte importância na construção do mundo. Como poeta, D. Dinis foi capaz de revelar estados psicológicos gerados pelo amor ausente, mas o seu poder criador consumou-se também no feito político de ter mandado plantar o pinhal de Leiria, lançando assim a semente das navegações e descobertas portuguesas. Portanto, de noite e no meio do seu próprio silêncio, o rei trovador percepcionou no rumor dos pinhais a nossa aventura oceânica.
 
            2.ª) De facto, Pessoa aponta D. Dinis não só como o rei trovador, mas também como o criador “genético” dos Descobrimentos. Se, por um lado, foi conhecido como o “Lavrador”, seu cognome, pela plantação do pinhal de Leiria, por outro lado, ele foi o grande responsável pela abundância de matéria-prima que proporcionou aos portugueses a expansão e a construção de um vastíssimo império, que se concretizou com o sonho do Infante D. Henrique.
 
            3.ª) São também evidentes no poema os elementos que evidenciam o destino mítico de Portugal:
. os pinhais plantados por D. Dinis;
. o rumor dos pinhais;
. esse cantar;
. o som presente;
. a voz da terra.
            Os pinhais plantados por D. Dinis, agitados pelo vento, prefiguram o marulho das ondas que as “naus a haver” hão de sulcar. O destino de Portugal cumpriu-se, porque este poeta / trovador pressentiu, a seu tempo, a nossa ânsia de perscrutar o desconhecido e distante, criando as condições favoráveis para o lançamento dessa aventura.
 
            4.ª) Em suma, D. Dinis é retratado como o rei capaz de antever futuros, justamente porque poeta visionário, em cujo cantar de amigo se fundam o rumor – a “fala dos pinhais” – e o mar futuro. Por isso ele é visto como “plantador de naus a haver”, as naus / cantar de amigo que desvendarão, no futuro que ele sonha, o “oceano por achar”. No poema, os pinhais plantados pelo rei-poeta-visionário são “um trigo de império” e “ondulam sem se poder ver” (porque futuros – só acessíveis aos sonhadores).
            Foi ele quem lançou a semente das navegações e dos Descobrimentos.
 
            5.ª) O poema insere-se na primeira parte de Mensagem, intitulada «Brasão», alusiva à constituição da nação. Remete, assim, para um tempo longínquo, que funciona como paradigma da construção do reino. Trata-se, porém, agora, de um reino espiritual, do Quinto Império, uma época de fraternidade universal, sem fronteiras definidas no espaço, sob a hegemonia dos portugueses.
 
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