Português: Jorge de Sena
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segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Análise de "Quem a tem", de Jorge de Sena

             Este poema, constituído por um dístico e duas sextilhas, foi datado de 9 de dezembro de 1956, quando Jorge de Sena acabara de completar 37 anos, vivia ainda em Lisboa como engenheiro e se preparava, a convite do British Council, para se deslocar para Inglaterra, para um estágio sobre betão armado.

            O título do poema (“Quem a tem”) é constituído por uma frase incompleta com uma referência não concretizada. Tendo em conta que o pronome pessoal «a» se refere à liberdade, essa frase reticente deixa por saber quem é que possui liberdade ou o que faz quem a tem.

            No dístico, o sujeito poético manifesta o desejo de não morrer sem assistir à chegada da liberdade, isto é, de a ver chegar ao seu país. Tendo o poema sido escrito em 1956, facilmente se conclui que a ausência de liberdade referida é a que se vivia em Portugal durante o Estado Novo, o regime salazarista. Por outro lado, este dístico repete-se como os dois versos finais da última estrofe. Esta repetição traduz a convicção do sujeito lírico na crença de que um dia verá a liberdade chegar ao seu país. Essa convicção é tal que ele está determinado a viver o tempo que for necessário para que o desejo/a situação se concretize. Neste contexto, há também a destacar o recurso à metáfora, ao atribuir-se à liberdade uma cor. Esta estrofe inicial indicia um profundo sentimento de esperança na humanidade e no movimento de mudança próprio da História. Os versos inscrevem-se em duas realidades distintas: a realidade da censura que se vivia em Portugal na época de escrita do texto; a presentificação de um futuro assente na certeza de que a liberdade haverá de chegar, mais tarde ou mais cedo.

            No início da segunda estrofe afirma a impossibilidade de, sendo português, não poder ser outra coisa que não português, ainda que possa viver noutros espaços (por exemplo, de exílio), na ânsia de viver em plena liberdade. A pertença a uma pátria específica torna plena a consciência de que, apesar de ser um cidadão do mundo, é e será sempre português. Há aqui, nomeadamente nos versos 3 a 5, a noção de uma pertença dupla ao mundo e a Portugal.

            No verso 7, o sujeito poético questiona-se acerca da verdade da liberdade, isto é, como ela será quando chegar a Portugal? Já o verso 9 (“Trocaram tudo em maldade”) coloca-nos perante outro traço do regime salazarista: a denúncia e a difamação.

            Os versos 11 e 12, pontuados pela metáfora, denunciam a ocultação de informação e da realidade que o Estado Novo cultiva (aparentemente Portugal era um paraíso, um mundo perfeito), bem como a política de manter os portugueses na ignorância e de desencorajar a intervenção pública e as limitações à liberdade de expressão (“mudo”).

            O estado de espírito do sujeito poético é caracterizado pela tristeza e ansiedade, mas temperado pela esperança na chegada da liberdade. O seu tom ao longo do poema é marcado pela melancolia e pela especulação, associado a um certo desânimo e à ansiedade do «eu», mas também à tal esperança que tem na mudança deste estado de coisas.

 

segunda-feira, 11 de julho de 2011

"A Canalha", Jorge de Sena

              Como esta gente odeia, como espuma
          por entre os dentes podres a sua baba
          de tudo sujo nem sequer prazer!
          Como se querem reles e mesquinhos,
          piolhosos, fétidos e promíscuos
          na sarna vergonhosa e pustulenta!
          Como se rabialçam de importantes,
          fingindo-se de vítimas, vestais,
          piedosas prostitutas delicadas!
          Como se querem torpes e venais
          palhaços pagos da miséria rasca
          de seus cafés, popós e brilhantinas!
          Há que esmagar a DDT, penicilina
          e pau pelos costados tal canalha
          de coxos, vesgos, e ladrões e pulhas,
          tratá-los como lixo de oito séculos
          de um povo que merece melhor gente
          para salvá-lo de si mesmo e de outrem.

                                        Jorge de Sena, 07/12/1971

sexta-feira, 27 de maio de 2011

"Este descaso de assassinos", Jorge de Sena

Chega-se a um momento na vida
(e por coincidência a um momento do mundo
que seja por linguagem o nosso)
em que o poeta se interroga antes de escrever:
porquê, e para quê, e para quem?
De nós mesmos falar não é possível:
seria necessário que houvesse humano respeito,
delicadeza humana, e não este descaso
de assassinos que se pisam sem desculpas.
Falar do que vai por este beco do universo
onde as comadres se acotovelam para levantar a saia
no escuro dos portais? Seria preciso
que a tristeza e a amargura e a visão do abismo
fossem partilhadas mais a fundo que a retórica
de serem tão infelizes no conforto
do piolhoso que vê mais dois piolhos na cabeça do outro.
Pensar em melhores mundos? Haverá,
mas não aqui. Aqui é o fim da festa,
o fechar das luzes do último dia
da Exposição dos Centenários, o arriar das bandeiras,
o apodrecer dos barcos pela praia.
Aqui só há lugar para metáforas,
óbvios símbolos, jogos de prendas poéticas,
para a droga de um sexo reduzido a palavras.
Cantem a beleza que se esvai, da juventude
que se perde, dos prados e das árvores,
com doce melancolia. O leitor tremula,
sente-se irmão, enfia
sorrateiramente a mão no bolso das calças,
apalpa-se e fecha os olhos, que está salva a pátria.

                                             Jorge de Sena (30.08.1973)

quarta-feira, 30 de março de 2011

"A Portugal", Jorge de Sena

                    Esta é a ditosa pátria minha amada
                    Não, nem é ditosa porque o não merece,
                    nem minha amada, porque é só madrasta
                    nem pátria amada, porque eu não mereço
                    a pouca sorte de ter nascido nela.
                    Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
                    Quanto esse arroto de passadas glórias.
                    Amigos meus mais caros tenho nela
                    Saudosamente nela,
                    Mas amigos são por serem meus amigos
                    e mais nada.
                    Torpe dejecto de romano império,
                    Babugem de invasões,
                    Salsujem porca de esgoto atlântico,
                    Irrisória face de lama, de cobiça e de vileza,
                    De mesquinhez, de fátua ignorância.
                    Terra de escravos, de cu para o ar,
                    Ouvindo ranger no nevoeiro a nau do Encoberto.
                    Terra de funcionários e de prostitutas,
                    Devotos todos do Milagre,
                    Castos nas horas vagas, de doença oculta.
                    Terra de heróis a peso de ouro e sangue,
                    E santos com balcão de secos e molhados,
                    No fundo da virtude.
                    Terra triste à luz do Sol caiada,
                    Arrebicada, pulha,
                    Cheia de afáveis para os estrangeiros,
                    Que deixam moedas e transportam pulgas
                    (Oh!, pulgas lusitanas!) pela Europa
                    Terra de monumentos
                    em que o povo assina a merda
                    o seu anonimato.
                    Terra-museu em que se vive ainda
                    com porcos pela rua em casas celtiberas.
                    Terra de poetas tão sentimentais
                    Que o cheiro de um sovaco os põe em transe.
                    Terra de pedras esburgadas,
                    Secas como esses sentimentos,
                    De oito séculos de roubos e patrões,
                    Barões ou condes.
                    Oh! Terra de ninguém, ninguém, ninguém!
                    Eu te pertenço.
                    És cabra! És badalhoca!
                    És mais que cachorra pelo cio!
                    És peste e fome, e guerra e dor de coração!
                    Eu te pertenço!
                    Mas seres minha, não!
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