Português: Poesia
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quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Análise de "Retrato", de Cecília Meireles

                 Este poema de Cecília Meireles é constituído por três quadras de versos maioritariamente brancos ou soltos e nele é traçado o autorretrato do sujeito poético, daí o uso da primeira pessoa do singular.

                De facto, o título do texto remete exatamente para o traçar do próprio retrato, tanto físico (as feições do rosto e do corpo) como psicológico (do qual ressalta a angústia existencial interior, motivada pela consciência da passagem do tempo).

                O sujeito poético começa por constatar a mudança operada no seu rosto, graças à passagem do tempo: “Eu não tinha este rosto de hoje” – v. 1. No segundo verso, são enumeradas três características desse rosto: “calmo”, “triste” e “magro”. Destes traços ressalta a tristeza do «eu», originada talvez pela própria mudança e pela consciência tardia da transitoriedade da vida. O tom negativo do retrato é acentuado nos dois versos seguintes (anafóricos), que acrescentam mais duas características: os olhos vazios e o lábio amargo. Os olhos azuis parecem sugerir o vazio existencial que marca o presente do «eu», enquanto o lábio (note-se o uso do singular) evidencia a sua amargura e, por extensão, sugere a ausência do sorriso, motivados pela perda da beleza (do próprio «eu» e da vida).

                Deste modo, a primeira quadra destaca a preocupação, a tristeza, a amargura e a melancolia do sujeito poético por causa da passagem do tempo e do envelhecimento, bem evidentes nas mudanças que constata terem-se operado. Note-se, ainda, o facto de os elementos corporais servirem não tanto para a descrição de traços físicos, mas sim psicológicos. A única característica física que é associada ao rosto é a magreza e, ainda assim, serve como «justificação» para a sua tristeza.

                No verso inicial da terceira estrofe, o sujeito poético prossegue o seu autorretrato descrevendo as mãos, que representam, frequentemente, a força e o trabalho. No caso do poema, é destacada a sua fraqueza / fragilidade (“sem força” – v. 5) e, logo de seguida, são descritas como “Tão paradas e frias e mortas” (polissíndeto e tripla adjetivação), enfatizando a sua degradação e frieza. O terceiro verso foca-se no coração, que perdeu o seu vigor e os sentimentos, pois o «eu» observa-o e constata que está escondido: “Eu não tinha este coração / Que nem se mostra.”

                Na terceira quadra, o sujeito lírico revela que não se apercebeu da ocorrência da mudança ao longo dos anos: “Eu não dei por essa mudança”. Que mudança foi essa? “Tão simples, tão certa, tão fácil.”. A tripla adjetivação, a anáfora e a reiteração do advérbio «tão» reforçam o caráter da transitoriedade, que ocorreu tanto física quanto interiormente. A mudança ocorreu de forma rápida e cruel.

                Nos derradeiros dois versos, está presente uma metáfora e uma interrogação em forma de discurso direto, anunciado pelos dois pontos e pelo travessão: o espelho representa um tempo passado, onde as feições eram outras e marcavam uma outra idade, e a face é o reflexo da passagem do tempo e da velhice, em suma, do decurso da vida. O último verso sintetiza uma reflexão existencial profunda: onde foi que a essência do «eu» lírico se perdeu?

                Em suma, Cecília Meireles questiona, neste texto, a mudança na vida do ser humano decorrente da passagem do tempo no sentido do envelhecimento. Os anos passam, o aspeto físico das pessoas altera-se, as doenças surgem, as limitações físicas acentuam-se e tudo isso se reflete na parte psicológica.

                A velhice torna-se visível na degeneração do corpo, no sentido da vida para a morte: a mão que perde a força, se torna fria e morta.

 

domingo, 19 de abril de 2020

Análise de "Um adeus português"

Contextualização do poema

“Um adeus português” foi publicado originalmente em 1958, na obra No Reino da Dinamarca, e constitui uma crítica ao regime do Estado Novo r ao ambiente persecutório e controlador do Portugal dessa época.
A origem do poema foi explicada pelo próprio poeta. Assim, O’Neill ter-se-ia apaixonado por uma mulher francesa chamada Nora Mitrani e desejava ir a Paris encontrar-se com ela, porém elementos da sua família opunham-se à sua ida e meteram uma «cunha» junto da PIDE no sentido de lhe negarem o passaporte.
Deste modo, o poeta foi chamado à sede da polícia, onde o questionaram a propósito da razão da sua viagem a França e se conhecia a senhora Mitrani. O’Neill respondeu afirmativamente, tendo o inspetor que o interrogava retorquido o seguinte: “Se calhar V. quer ir, porque essa gaja lhe meteu alguma coisa na cachola.”. O poeta respondeu que Nora não era uma gaja e que não tinha cachola. Na sequência deste episódio, não conseguiu obter passaporte durante vários anos.
Quando Alexandre O’Neill pode, finalmente, ir ao seu encontro em Paris, já ela tinha falecido, vitimada pelo cancro, mas ficou a saber que Nora tinha lido o seu poema e ficado muito comovida com o mesmo.


Título

No título do poema, destacam-se duas palavras:
• o nome «adeus»: a despedida;
• o adjetivo «português»: o sentimento nacional.
O título anuncia o final de um amor e, em simultâneo, aponta para uma crítica ao modo de ser português.
De facto, não é a falta de amor que leva à separação dos apaixonados, mas a condição e a vivência no país.


Tema

O tema do poema é a inevitável despedida de dois amantes, de um amor que desde o início estava condenado à impossibilidade [é o tema do amor impossível ou impossibilitado], dado que os apaixonados pertencem a mundos diferentes e opostos – enquanto ela parte para longe, para a “cidade aventureira”, ele permanece limitado à pequenez burocrática e à “dorzinha quase vegetal” em que entretém a passagem do tempo.
Além do sofrimento motivado pela separação dos amantes, destaca-se o diagnóstico sobre Portugal e a maneira portuguesa de viver, resignada ao lento apodrecimento dos afetos, sob o efeito de um mal-estar quase nauseante que contagia, aliás, toda a visão que esta poesia tem do país.

Jornal Público

Além deste tema central, outros estão presentes na composição poética:
▪ o tema da separação e do adeus;
▪ o tema (da imagem) de Portugal;
▪ o tema da revolta e da denúncia;
▪ o tema de um país outro.


Estrutura interna

1.ª parte (vv. 1-4): O sujeito poético interpela o «tu» (a mulher amada), indiciando já a despedida e a separação iminentes entre ambos.

▪ O sujeito poético interpela, ao longo da composição, um «tu», como se pode comprovar pela ocorrência de formas de segunda pessoa:
» pronomes: «tu» (v. 5), «te» (v. 52), «ti» (v. 55);
» determinantes: «teus» (v. 1), «teu» (v. 51);
» formas verbais: «podias» (v. 5), «mereces» (v. 35), «és» (v. 41), etc.

▪ Apresentação do «tu» / da mulher:
» possui «olhos altamente perigosos»: olhar muito sedutor, daí perigoso;
» tem uma relação de amor com o sujeito poético (“vigora ainda o mais rigoroso amor”);
» esse amor e a mulher são puros, ainda que marcados pela sensualidade da «cama»;
» uma sombra ameaça esse amor, a de uma «angústia já purificada».
Esta mulher, o «tu» a quem os sujeito poético se dirige, é aquela que ele ama, mas vai partir de Portugal para outro país, pois não se enquadra no ambiente que se vive cá, marcado pela opressão e podridão, pela repressão policial, pela hipocrisia, pela mesquinhez. É alguém que não se identifica com a monotonia e a ausência de liberdade que asfixia.

▪ A primeira estrofe constitui, pois, a abertura do diálogo (simulado) entre o sujeito poético e o «tu», do qual sabemos muito pouco, além do atrás referido.

▪ A relação entre os dois é muito próxima, proximidade essa que é pontuada pelo uso recorrente de formas de segunda pessoa do singular. Sabemos também que é uma história de amor (“nos teus olhos (…) vigora ainda o mais rigoroso amor”) e que esse sentimento parece condenado à partida: o advérbio «assim» possui um valor temporal e aspetual que antecipa o fim da relação (na medida em que se institui a oposição entre «ainda» e «já não»). Por outro lado, a relação é intensa, mas acaba, inevitavelmente, com o afastamento e a despedida dos dois.

▪ No poema, está presente também um «nós», marcado pelas formas de 1.ª pessoa do plural («apodrecemos», «giramos», «nossa»). No entanto, o «nós» que surge no poema não é sempre o mesmo. Num caso, é o resultado do «eu» + o «tu»; no outro, é o resultado da junção do «eu» com ?.


2.ª parte (vv. 5-49): O sujeito poético apresenta as razões que impedem o amor entre si e a sua amada.

▪ As seis estrofes seguintes (2.ª à 7.ª) constituem um bloco único, ligado pela anáfora («Não») que inicia cada uma delas. O advérbio de negação contribui para a simulação do diálogo, nomeadamente nas segunda e sexta estrofes, em que se estabelece um jogo de polifonia: a ocorrência do advérbio faz ouvir a voz do «tu» simulado, como interrogação total a que responde(ria) o advérbio (em posição inicial), ou apenas como hipótese, quando a ocorrência do advérbio marca a asserção negativa (“tu não podias ficar presa comigo” e “tu não mereces esta cidade”). Esquematicamente:

[eu podia ficar contigo?]                 [tu podias ficar comigo]
                                                    
Não                                tu não podias ficar comigo

▪ A segunda estrofe clarifica que o «tu» é efetivamente uma mulher, a partir da forma feminina do adjetivo («presa»). Ela não se enquadra no conjunto de situações elencadas e, por isso, tem de partir. A anáfora (iniciada pelo advérbio de negação «Não») mostra precisamente os motivos que tornam impossível o amor entre o sujeito poético e a mulher representada por «tu».

▪ A primeira dessas situações surge precisamente na segunda estrofe: ela não poderia ficar presa como ele (mas ele fica). A quê?
» À roda em que ele apodrece: a roda equivale a um círculo fechado e surge associada à forma verbal «apodreço».
» À pata ensanguentada:
. a pata e outros elementos evocam as touradas: o animal avança pelo túnel, ferido («vacila»): a pata ensanguentada (o touro), mugindo (a vaca), sugerindo dor.

▪ A anteposição do adjetivo ao nome em “uma velha dor” sugere a transição da dor (motivada pelo ferimento) para a dor (simbólica) de uma tourada (simbólica) [numa arena que é o mundo, a vida?].

▪ Assim, a roda em que o sujeito apodrece pode ser interpretada como a arena de uma tourada (real e simbólica). Note-se que a forma verbal «apodrecemos» se encontra num plural, isto é, a podridão afeta um coletivo e não apenas o eu.

▪ Os primeiros versos da terceira estrofe indiciam uma vida rotineira e monótona, feita de burocracia.

▪ Os versos seguintes desnudam a miséria, uma “miséria que sobe aos olhos”, indiciando um movimento (ou sensação) de vómito sugerido(a) pelo movimento ascendente denunciado pelos predicados verbais (“sobe aos olhos”, “vem às mãos”).

▪ A enumeração dos elementos repulsivos, culminando com “o modo funcionário de viver”, evoca a tradição poética neorrealista, de que serão expoentes a figura ou a relação com o “patrão Vasques”, de Bernardo Soares, o Coro dos Empregados da Câmara e Mataram a Tuna, de Manuel da Fonseca.

▪ Esta enumeração gradativa evolui dos aspetos positivos para os negativos, realçando o caráter opressivo da cidade.

▪ Na quarta estrofe, a «cama» simboliza o amor, um amor sensual, erótico, mas também marcado pela perspetiva de fim ou morte (“trânsito mortal”).

▪ O dia é “sórdido / canino / policial” (tripla adjetivação): estes adjetivos, juntamente com «mortal», denunciam o clima de perseguição política e policial e de repressão vivido na cidade. Por sua vez, o adjetivo «puríssima» sugere o caráter positivo da mudança que é necessária.

▪ Por outro lado, o dia, que nasce da madrugada, simboliza, ordinariamente, a abertura, o nascimento, e estaria associado à promessa e à pureza, porém, neste caso, corresponde à noite, isto é, ao fecho, à morte.

▪ A quinta estrofe denuncia os brandos costumes que caracterizam a sociedade portuguesa da época, aos quais a mulher não poderia ficar presa.

▪ A imagem da dor trazida pela mão é bastante significativa e está associada à imagem de trazer pela tela, como um cão. Esta passagem possui um valor irónico-caricatural: trazer a dor docemente pela mão, dor à portuguesa (os brandos costumes).

▪ Outra das razões pelas quais o amor é impossível surge na sexta estrofe e tem a ver com o facto de a mulher não merecer aquela cidade, caracterizada pela náusea, pela idiotia, pela morte e pelo absurdo.

▪ A sétima estrofe apresenta duas imagens diferentes de cidade. A mulher «pertence» a uma cidade (quase) ideal, caracterizada pela aventura, pelo amor, pelo comércio puro, uma cidade, em suma, onde existe liberdade e modos de vida alternativos.

▪ Já o sujeito poético vive numa cidade que asfixia, que prende, que oprime, uma cidade onde existe “a moeda falsa do bem e do mal”. Esta representa, metonimicamente, Portugal, que contrasta com a imagem da cidade ideal apresentada anteriormente.

▪ Nesta estrofe, estão presentes temas surrealistas, como o encontro, o acaso, o amor louco.

▪ Em suma, deste bloco de seis estrofes, as cinco primeiras apresentam uma imagem não poética de Portugal, enquanto a sexta (no conjunto do poema, a sétima) retrata um outro lugar alternativo. Esta imagem remete para dois espaços que correspondem a duas identidades nacionais e/ou dois espaços simbólicos (política e culturalmente):

Lisboa                                                        Paris
                                                             
Portugal                                                    França
                                                             
ditadura                                                    liberdade
                                                             
brandos costumes                                     alternativa

▪ Não esqueçamos a origem do poema: Nora Mitrani, francesa surrealista que O’Neill conhecera e Lisboa e por quem se apaixonara, parte da França; o poeta é impedido de se lhe juntar, pois a PIDE confisca-lhe o passaporte e ele, impossibilitado de sair do país, nunca mais a volta a ver, pois, entretanto, ela falece de cancro. No entanto, o que é significativo no poema não é propriamente uma leitura biográfica, antes passa pelo saborear a sua mensagem: de amor, de dor, de revolta e de utopia.


3.ª parte (vv. 50-55): Na última estrofe, assistimos à despedida e separação entre o sujeito e a sua amada.

▪ O sujeito poético despede-se da mulher amada (“digo-te adeus”), que vai partir (“o teu desaparecimento”), despedida essa que é marcada, simultaneamente, pela ternura e pela dor (“Nesta curva [símbolo da mudança de direção da relação entre os dois, isto é, da sua separação] tão terna e lancinante”).

▪ A separação [e a dor que lhe está associada], embora não tenha sido ainda concretizada, é sentida já como tal: “que vai ser que já é” (v. 53).

▪ É o momento do desaparecimento irremediável do amor – marcado pela partida da mulher – para além da curva da vida, um momento de dor e de frustração, comparado a um tropeço de ternura de um adolescente.

▪ Há uma certa circularidade no poema, com marcas de narratividade, dado que a separação é anunciada na 1.ª estrofe e retomada na última.


Crítica

Em suma, o poeta critica, ao longo deste poema, o ambiente vivido na época em Portugal:
▪ compara-o a uma tourada, um espetáculo sangrento, de dor e morte;
▪ critica o povo português por se conformar com a vida que tem (vv. 31-35 e 38-40) – conformismo;
▪ critica a repressão política do Estado Novo, bem evidente na referência ao medo, nos versos 23 a 29;
▪ critica a miséria e a burocracia (vv. 12-21);
▪ critica a podridão e a sordidez;
▪ critica o medo, o desespero e o policiamento.


Análise de "Autorretrato", de Alexandre O'Neill

Tema: o autorretrato do sujeito poético.


Estrutura interna

1.ª parte (vv. 1-4): Retrato físico do sujeito poético.

• Características físicas:
» moreno;
» cabelo negro (“cabelo asa de corvo”: metáfora);
» nariz mal feito (“nariguete”) acima de uma ferida;
» olhar triste;
» testa “iluminada”.

• A descrição física do sujeito poético insinua, desde logo, diversas características psicológicas:
» a cara revela angústia;
» a ferida denota desdém – é uma atitude de superioridade e desdém – pelos outros ou pelo país – que não cessa;
» o olhar mostra tristeza.

• A ferida na cara, referida no verso 4, sugere uma atitude de superioridade e desdém – pelos outros ou pelo país –, por parte do sujeito poético, que não cura. De facto, o facto de não estar cicatrizada pode querer dizer que essa atitude desdenhosa não cessa.


2.ª parte (vv. 5-8): Retrato psicológico-moral.

• Neste momento do poema, há uma tentativa de esboço de um retrato «moral»: “o retrato moral também tem os seus quês” (v. 7).

• O verso 7 insinua que a sua vida não é exemplar, mas não chega a concretizar a que se refere e nada revela sobre si.

• O verso 8 pode ter um duplo entendimento [“(aqui, uma pequena frase censurada…)”]:
» autocensura por parte do poeta ou
» antecipação da censura por parte de outros (não podemos esquecer que o poema foi publicado em 1962, em plena vigência do Estado Novo): insinua que o que ia ser dito seria cortado pela censura salazarista.

• O retrato moral é breve, enigmático e pouco revelador sobre o “eu” poético, pois este apenas insinua que a sua vida não é exemplar: “o retrato moral também tem os seus quês” (v. 7). E, quando se preparava para revelar algo sobre si, autocensura-se ou antecipa a censura dos outros.

3.ª parte (vv. 9-4): Retrato ideológico-afetivo.

• O sujeito poético acredita no amor e envolve-se empenhadamente nele.

• A «ternura» que sente fá-lo sofrer (“Mas sofre de ternura” – antítese), ou seja, ele mostra ter uma grande sensibilidade e ser afetuoso com os outros, no entanto essa «ternura» e esse afeto trazem-lhe sofrimento.

• O sujeito poético bebe em demasia.

• Ri-se do autorretrato, riso esse que pode ter duas justificações:
» o autorretrato não corresponde totalmente à verdade e sugere, assim, ao leitor que não deve confiar completamente no que diz sobre si mesmo;
ou
» o autorretrato leva-o a rir-se de si próprio, o que configuraria uma autocrítica.


Tom caricatural do poema

Alexandre O’Neill ter-se-á “inspirado” num poema de Bocage (“Magro, de olhos azuis, carão moreno”) para a composição do seu autorretrato.
Por outro lado, diversas expressões da composição aproximam-ma da caricatura, dado o seu caráter humorístico e jocoso: “nariguete que sobrepuja de través / a ferida desdenhosa e não cicatrizada” (vv. 3-4); “o retrato moral também tem os seus quês” (v. 7).


Relação do poema com o soneto “Magro, de olhos azuis, carão moreno”

▪ Os dois poemas constituem um autorretrato dos respetivos autores.

▪ Os autorretratos apresentam três dimensões: a física, a psicológico-moral e a amorosa.

▪ Ambos os textos se referem aos mesmos órgãos do corpo: a cara, o nariz, a tez.

▪ Ambos afirmam que valorizam o amor e que se entregam a ele.

▪ Ambos os textos adotam uma atitude de crítica benevolente e autoirónica, não receando rir-se de si próprios.


sábado, 25 de janeiro de 2020

Análise de "Quadrilha", de Carlos Drummond de Andrade

Este poema foi publicado pela primeira vez em 1930, integrado na sua obra inicial: Alguma Poesia. É constituído por uma única estrofe de sete versos (sétima) livres e não rimados, que aborda o tema das dificuldades e os desencontros amorosos. Tal noutras poesias de Carlos Drummond de Andrade, o que está em equação nesta é a solidão do sujeito no mundo e a sua dificuldade em estabelecer laços com aqueles que o rodeiam, ou seja, os amores desencontrados.

Podemos dividir o poema em duas partes. Na primeira, constituída pelos três versos iniciais, são apresentadas várias paixões não correspondidas: todos os indivíduos, exceto Lili, amavam sem serem correspondidos. A confusão de sentimentos e os desencontros sucessivos caracterizam a história que o sujeito poético está a narrar, o que nos permite concluir que o amor não é fácil de encontrar e ainda menos de concretizar.
Na segunda parte, composta pelos quatro versos seguintes, o sujeito lírico dá-nos a conhecer o destino das personagens que conhecemos anteriormente: o exílio de João nos Estados Unidos, o recolhimento de Teresa no convento, o desastre que matou Raimundo, o título de tia (imposto?) a Maria, o suicídio de Joaquim e o casamento de Lili (que não amava ninguém) com J. Pinto Fernandes (que até aí nada tinha a ver com a história). Todos parecem ter ficado sozinhos ou deixado escapar o amor, seguindo os seus destinos direções diferentes. Atente-se na forma como o sujeito se refere ao marido: impessoal, sem nome próprio, sendo apresentadas apenas a inicial. Por outro lado, J. Pinto Fernandes parece mais uma designação comercial, que identifica, portanto, uma empresa ou um negócio, do que o nome de uma pessoa. Assim sendo, talvez seja uma forma de insinuar que o relacionamento entre o casal é distante, ou então é uma relação de interesse. Seja como for, Drummond de Andrade parece sugerir no poema a imprevisibilidade da vida e do próprio sentimento amoroso.

O título da composição constitui uma referência a uma contradança de origem holandesa que granjeou enorme sucesso na França, durante o século XVIII, onde recebeu o nome de “Neitherse”. No século XIX, tornou-se muito popular nos salões aristocráticos e burgueses em todo o mundo ocidental. De facto, no poema está presente a quadrilha francesa, que se tornou tradição nas festas juninas brasileiras e que consiste na evolução diversa dos pares, sendo aberta pelo noivo e pela noiva, pois a quadrilha representa o grande baile do casamento que, supostamente, se realizou, onde os casais formam pares que se entre dançam. Na composição, homens e mulheres desencadeiam desencontros amorosos e somente quem não amava ninguém (Lili) consegue encontrar o seu par. Metaforizado pela quadrilha, o amor surge como uma dança onde os pares estão trocados e os sentimentos não são correspondidos. Quase todos os indivíduos estão apaixonados e são alvo do amor de alguém, mas as linhas parecem estar cruzadas e nenhum relacionamento se concretiza. Aparentemente, o sujeito poético retrata o amor como algo absurdo, uma espécie de jogo de sorte que apenas alguns têm a oportunidade de vencer.
Assim sendo, de forma simples e recorrendo a exemplos concretos e do quotidiano, o texto ilustra o desespero daqueles para quem o amor verdadeiro parece ser impossível. A construção do poema assemelha-se a um ciclo vicioso: um ama outro, que ama outro, que ama outro e assim sucessivamente. No entanto, ao contrário do ciclo vicioso, em que seria expectável que o último indivíduo mencionado amasse o primeiro, este termina na última personagem apresentada: Lili.

O recurso a nomes de pessoas comuns significa que qualquer indivíduo pode ser vítima das frustrações do amor: João, frustrado com o desamor de Teresa, parte para os Estados Unidos; Teresa, desapontada com a não correspondência de Raimundo, procurou a clausura no convento para nunca ser de nenhum homem, entregando a sua vida somente a Deus; Raimundo, que amava Maria e que também não foi correspondido, morreu de desastre, talvez numa tentativa de fugir da vida ou de si mesmo; Maria, descontente com o seu destino, não se voltou a envolver com mais nenhum homem, além de Joaquim, que decidiu suicidar-se por causa de Lili, que não o amava nem a mais ninguém. De facto, esta última figura está ligada à tragicidade dos outros indivíduos, mas é a única que não estabelece qualquer vínculo afetivo com nenhum dos pares.

Note-se, por outro lado, que as personagens não possuem sobrenome, à exceção de J. Pinto Fernandes. Sem origem definida, parece simbolizar a perda da individualidade, o sentimento humano que luta para sair do isolamento, da solidão. Assim, a vida constitui uma experiência angustiante, na qual o convencionalismo e as aparências valem mais do que a essência. Tudo isto é agravado pelos desencontros amorosos.

O amor é apresentado como uma extensa cadeia de afetos, os quais se inscrevem num quotidiano centrado nas necessidades imediatas, porém num contexto de superficialidade sentimental. O amor é um sentimento mundano, temporal: João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili.
O poema é constituído por uma única estrofe, determinada pela musicalidade que embala a situação de cada personagem, cujo ritmo dos versos é um retrato cómico dos desencontros amorosos em que a dança, isto é, a quadrilha, é a mais célebre representação da condição trágica da carência, da desilusão do amor. No meio dos jogos de desencontros, a dança da quadrilha determina o destino das personagens.

Os nomes são repetidos, facilitando a identificação e memorização das personagens, visto que estão dispostos numa certa ordem nos três primeiros versos, que é repetida nos três últimos. A redundância é um traço modernista.

Na construção humorística e divertida da composição poética, a troca de pares e desencontros amorosos entre as personagens vai sendo apresentada em duplas ao leitor, como é característica das quadrilhas, onde os pares se situam frente a frente. No entanto, há uma alternância entre os pares, visível na presença do conectivo “que”, o qual separa e une os pares, ou seja, os casais mostram o “porquê” dos problemas que impede a união entre eles, isto é, da não conexão. Somente no último verso, que é marcado pela única união (entre Lili e J. Pinto Fernandes), esta é estabelecida através da conjunção coordenativa “e”, que evidencia a afinidade e a oposição estabelecida entre os dois pares, pois um, só com o apelido, Lili, e o outro, só com o sobrenome, J. Pinto Fernandes, atraíram-se, entrelaçando-se em matrimónio.

Um outro aspeto interessante reside no facto de apenas Lili, que não possui nome próprio, apenas apelido, e é a única personagem com essa característica, se ter casado. Ela representa o anonimato de qualquer um que poderia ter entrado na dança e ter-se dado bem, pois, além de se ter casado, foi a única a envolver-se com um homem possuidor de sobrenome, dando a ideia de ser um nobre, originário de uma classe alta, exatamente onde a quadrilha teve origem.

Todos os nomes das personagens, exceto o de Lili e do seu par, são nomes simples, comuns, do povo, ou seja, da plebe, que foi para onde a festa folclórica da nobreza se estendeu após ter descido as escadarias dos palácios franceses. O J. Pinto Gonçalves, que ainda não tinha entrado na história, e muito menos no baile, é uma representação da nobreza, da alta sociedade, expressas no seu sobrenome. O seu primeiro nome não é citado como o das demais personagens, está abreviado. Apenas o seu sobrenome importa, dado que o que é marcante no seio da alta sociedade não é o nome, mas o sobrenome. Ele representa a marca originária da família nobre à qual pertence. É curioso que não se sabe se Lili amava ou não J. Pinto Fernandes, ou se passou a amar ou pelo menos apaixonar pelo seu companheiro depois do enlace. Assim sendo, não se pode dizer que foi uma união perfeita, muito menos feliz.
Se ela não amava ninguém, nem mesmo J. Pinto Fernandes, podemos dizer que se pode ter casado simplesmente para não ter o mesmo destino das demais mulheres do poema, ou ainda, com ambições mais elevadas, pelo facto de querer sair do seu anonimato, por meio da aquisição de um sobrenome de nobreza. A composição poética, que seguia uma sequência de desencontros, foi alterada com a introdução de J. Pinto Fernandes, que «não tinha entrado na história», isto é, alguém que ignora tudo o que tinha havido anteriormente na vida dos outros pares e, principalmente, de Lili, a quem recebe como companheira independente dos seus sentimentos para com ele. Finalmente, quando o casal desconhecido se enlaça, ou se «enrola», não são somente a música ou a dança, mas a própria vida que para quando os caminhos de Lili e J. Pinto Fernandes se cruzaram. Podemos relacionar o poema com a dança da quadrilha, pois as modificações e evoluções acabaram por alterar os compassos da dança, da música e do amor.

Bibliografia:
. ANDRADE, Carlos Drummond. Alguma Poesia. 8.ª ed.- Rio de Janeiro: Record, 2007.
. CANDIDO, Antonio. “Literatura e cultura de 1900 a 1945: panorama para estrangeiros”. In: Literatura e sociedade. 8.ª ed., São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 2000. pp. 109-138
. Elenco de cronistas modernos por Carlos Drummond de Andrade [e outros] – 21.ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
. VILLAÇA, Alcides. Drummond: primeira poesia. USP.São Paulo: Editora 34, 2002.


terça-feira, 6 de agosto de 2019

Análise de "No meio do caminho", de Carlos Drummond de Andrade


            O poema “No meio do caminho”, composto por uma quadra e uma sextilha, num total de 10 versos, alternando versos rimados (ABAA) com brancos (o sexto, por exemplo), foi publicado pela primeira vez no número 3 da “Revista de Antropofagia”, em julho de 1928. Posteriormente, integrou o livro Alguma Poesia, datado de 1930.
            Começando pelo título, este remete para um espaço (“No meio do caminho”), antecipando o imprevisto: a pedra.
            O texto é caracterizado pela redundância e pela repetição. De facto, se as eliminássemos, a composição seria a seguinte: “No meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas”. As pedras simbolizam os obstáculos ou problemas com que as pessoas se confrontam durante a sua vida, descrita, metaforicamente, como um “caminho”. Por outro lado, as pedras, enquanto obstáculos, podem impedir o indivíduo de prosseguir o seu percurso, isto é, os problemas podem impedi-lo de avançar na vida.
            Os versos 5 e 6 transmitem uma sensação de cansaço por parte do sujeito poético e do acontecimento que ficará sempre na sua memória. Assim, as pedras também podem indicar um acontecimento relevante e marcante para a vida de uma pessoa.
            Há autores que fazem uma interpretação biográfica do poema, associando-a a um drama familiar do poeta. De facto, em 1927, Drummond de Andrade foi pai de um menino que sobreviveu apenas meia hora. Entre janeiro e fevereiro desse ano, foi-lhe encomendada a escrita de um poema para o número 1 da “Revista de Antropofagia”. Imerso na sua tragédia pessoal, o escritor enviou este poema.
            O crítico Gilberto Mendonça Teles sublinha o facto de a palavra “pedra” conter as mesmas letras do vocábulo “perda”, um fenómeno de hipértese. Mera coincidência ou recurso intencional?


quarta-feira, 31 de julho de 2019

"Fim", de Mário de Sá Carneiro

            Este poema, constituído por duas quadras de rima interpolada e emparelhada (abba / cddc), data de 1916 e foi escrito na capital francesa.

            O texto gira em torno de um tema que se pode sintetizar do seguinte modo: encontrar sentido apenas na morte e através dela. O sujeito poético confere à sua morte e ao seu funeral o tom grotesco que lhe rira a dignidade, como para mais achincalhar-se.

            Começando a análise pelo título, nota-se nele uma espécie de humor satânico que se estende a toda a composição. O sujeito poético expressa o desejo de o seu post-mortem, o seu funeral, a sua morte, ser celebrado com grande euforia e espetáculo: marcado pelo bater de latas, berros, pinotes e palhaços, desejo esse que sugere uma autorridicularização. É uma sugestão irreverente que deixa escapar um profundo autodesprezo. Por outro lado, a performance circense de palhaços e acrobatas conota uma alegria no encontro com a morte.

            As ideias de teatralidade e representação são conferidas pela presença precisamente dos palhaços e acrobatas, típicas figuras do espetáculo circense, que resume a faceta de clandestinidade, de transgressão incutida na excentricidade do último desejo, o de um funeral à moda andaluza. Esta arte de rua, marginal, constitui também o tema de “Partida de Emigrantes”, um triplico de Almada Negreiros. Num dos quadros, os saltimbancos de rua dominam a cena do cais representado. A sua presença representa a transgressão, a marginalidade que pode ser ignorada, desprezada e ostracizada, mas não suprimida, porque existe. No poema em análise, o sujeito lírico, na última jornada da sua existência, transforma o que deveria ser um cerimonial triste e pesaroso, de acordo com as convenções ocidentais, numa festa de rua, dominada pelo clima de festa, provocatória. O fim é celebrado e transformado numa comemoração de vida, a pretexto da morte, e acompanhado por artistas marginais com quem comunga o mesmo sentido transgressor. Isto significa que o conceito tradicional de funeral não é o enunciado no texto: um funeral é uma cerimónia caracterizada por uma atmosfera grave e de pesar, mas neste caso é manifesto o desejo do «eu» de que o seu seja um momento de festa e de folia.

            O ato caricato de transportar o caixão sobre um burro sugere a irreverência diante da morte e traduz também uma ideia de escárnio pelo próprio fim. Além disso, tem os enfeites à moda da Andaluzia, que devem ser vibrantes, vistosos.

            Quanto ao burro, no texto simboliza a obscuridade. Note-se que, na Índia, o animal serve de montaria para divindades funestas, como Nairrita, guardião da região dos mortos, o que só confirma a ideia de que o poema aponta para a figura do fim.

            A figura do palhaço, para Chevalier e Gheerbrant, é a representação do rei assassinado. Simboliza a inversão da compostura régia nas suas palavras e atitudes. A majestade é substituída pela irreverência; a soberania pela ausência de toda a autoridade; o temor pelo riso; a vitória pela derrota; as cerimónias sagradas pelo ridículo; a morte pela zombaria. O palhaço é como o reverso da medalha, o contrário da realeza, a paródia encarnada.

            Por um lado, a composição remete para um deboche numa ocasião cercada de solenidade; por outro, as atitudes a que ele incita traduzem uma celebração pela sua morte, como se se tratasse de um benefício para o mundo, talvez para si mesmo. O corolário do cortejo reside na sua exigência de que o caixão seja transportado sobre um burro, um claro menosprezo do seu próprio funeral, revelando, deste modo, a pouca importância atribuída a si mesmo e à sua vida. Deste modo, ele revela-se uma pessoa excêntrica, caprichosa e determinada, sendo que, no momento em que manifesta o seu desejo, o seu estado de espírito é exaltado e quase febril.

            Em suma, a estruturação mental do poema é clara. De facto, o sujeito poético deixa um conjunto de indicações bastante precisas sobre:
● o tipo de funeral: à andaluza;
● o meio de transporte para o levar à sua última morada: um burro;
● as ações a desempenhar pelos acompanhantes da sua cerimónia fúnebre: bater em latas, romper aos berros e aos pinotes, fazer estalar chicotes no ar;
● os participantes e responsáveis pela animação do evento: palhaços e acrobatas.

A nota final é clara: esta é a sua vontade expressa, pois a um morto nada se recusa.


Bibliografia:
- Neusa Sorrenti, “Mário de Sá Carneiro, poeta: um Narciso entre Eros e Tânatos”;
- Carlos Ferreira, Mário de Sá Carneiro: Do Percurso do Poeta às Práticas no Programa de Português do Ensino Secundário.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Análise de "José", de Carlos Drummond de Andrade

            “José” é um poema da autoria de Carlos Drummond de Andrade, escritor nascido a 31 de outubro de 1902 e falecido a 17 de agosto de 1987, um dos maiores vultos da segunda geração de modernistas brasileiros, considerado por muitos o maior poeta brasileiro do século XX.
            A composição em questão foi publicada pela primeira vez em 1942, integrada na obra Poesias. Nela, o autor aborda a temática da solidão e do abandono do indivíduo na cidade grande, bem como a desesperança e a sensação de estar perdido na vida, sem saber que rumo seguir.
            O texto abre com uma interrogação que se repete, anaforicamente, ao longo do mesmo, assumindo a forma de uma espécie de refrão: “E agora, José?”. Ou seja, agora que os bons momentos terminaram (“a festa acabou”, “a luz apagou”, “o povo sumiu”), o que resta? O que há a fazer?
            Por outro lado, a interrogação constitui o mote e o motor do poema: a procura de um caminho, de um sentido para a vida. José, tal como João ou António, é um nome muito comum na língua portuguesa, pelo que o seu uso neste texto pode ser entendido como um sujeito coletivo, uma metonímia. A sua substituição pelo pronome “você” significa que o sujeito poético se está a dirigir diretamente ao(s) leitor(es), comos e este(s) fosse(m) o(s) interlocutor(es).
            Esse “você” não tem nome, mas “faz versos”, “ama, protesta” e “zomba dos outros”. A sua característica de poeta pode ser interpretada como a sua identificação com o próprio Drummond de Andrade.
            A segunda estrofe reforça a ideia de vazio, de ausência e carência de tudo: está sem “mulher”, “discurso” e “carinho”. Além disso, já não pode “beber”, “fumar” e “cuspir” (atente-se na sucessão de anáforas); “a noite esfriou”, “o dia não veio”, tal como não veio “o bonde”, “o riso” e a “utopia”. Isto significa que todas as formas de contornar o vazio, a ausência, o desespero e a realidade não chegaram, nem mesmo o sonho (“a utopia”), nem a esperança de um recomeço, pois “tudo acabou”, “fugiu” e “mofou” (nova sucessão de anáforas), como se o tempo deteriorasse tudo aquilo que é bom.
            Na terceira estrofe, prosseguem as anáforas e as enumerações, nomeadamente das suas características imateriais (“sua doce palavra”, “seu instante de febre”), “sua gula e jejum”, “sua incoerência”, “seu tédio”), bem como daquilo que é material e palpável (“sua biblioteca”, “sua lavra de ouro”, “seu terno de vidro”). Ou seja, tudo desapareceu e nada restou, exceto a interrogação: “E agora, José?”.
            A quarta estrofe apresenta-nos um sujeito poético que não encontra saída/solução para a sua situação: “Com a chave na mão / quer abrir a porta, / não existe porta”. A própria morte enquanto derradeira solução também não é possível – “quer morrer no mar, / mas o mar secou – ideia que é reforçada mais adiante (José é obrigado a viver) –, tal como a possibilidade de um regresso às origens: “quer ir para Minas, / Minas não há mais”. Atente-se no facto de o poeta ser natural de Minas Gerais (Itabira), o que pode indiciar nova possível identificação entre Drummond de Andrade e José. Em suma, o passado também não constitui uma solução para o drama vivido pelo sujeito poético.
            A quinta estrofe contém uma anáfora constituída por várias orações subordinadas adverbiais condicionais, com as formas verbais no pretérito imperfeito do conjuntivo. Todos estes recursos remetem para um conjunto de possíveis escapatórias ou distrações que nunca se concretizam, são interrompidas, ficam em suspenso, ideia suscitada pelo recurso às reticências. O verso 7 desta estrofe destaca novamente a ideia de que a morte não é solução: “Mas você não morre”, pois “você é duro José!”. Estes dois versos sugerem que o sujeito lírico possui uma grande força, uma resiliência e capacidade de sobrevivência que constituem traços da sua personalidade, para quem desistir da vida não é uma opção.
            A última estrofe do texto salienta o seu isolamento total (“Sozinho no escuro / qual bicho-do-mato”), “sem teogonia” (não há Deus, não existe fé nem auxílio divino), “sem parede nua / para se encostar” (sem o apoio de nada nem de ninguém), “sem cavalo preto / que fuja a galope” (sem nenhum meio de fugir da situação em que se encontra).
            Ainda assim, “você marcha, José!”, mas para onde? Ou seja, o sujeito poético segue em frente, mesmo sem saber em que direção ou com que objetivo. O verbo “marchar” remete para um movimento repetitivo, quase automático. José é um homem preso à sua rotina, às suas obrigações, afogados em questões existenciais que o angustiam; faz parte da máquina, das engrenagens do sistema, por isso tem de manter o seu quotidiano.
            Não obstante, perante uma mundividência pessimista, de vazio existencial, os versos finais do poema parecem sugerir um raio de esperança: José não sabe para onde vai, qual é o seu destino ou lugar no mundo, mas “marcha”, prossegue, sobrevive, resiste.


quarta-feira, 26 de junho de 2019

"Presságio"

            O poema “Presságio” foi escrito por Fernando Pessoa em 24 de abril de 1928, já na fase final da sua vida (13 de junho de 1888 – 30 de novembro de 1935).
            O tema da composição poética é o amor, mais concretamente a dificuldade em o revelar à pessoa amada (em última análise a impossibilidade de viver um amor correspondido), abordado em cinco quadras de redondilha maior (bem ao gosto popular), com rima cruzada, segundo o esquema rimático ABAB.
            Na primeira quadra, o sujeito poético apresenta o mote do texto, isto é, o tema que vai ser desenvolvido, bem como o seu posicionamento face ao mesmo: quando o sentimento amoroso se revela, quando surge, não sabe como se revelar, como se confessar (note-se a antítese construída em torno da repetição de formas do verbo “revelar” nos dois versos iniciais: “revela” e “revelar”). Recorrendo à personificação, ele representa o amor como uma entidade autónoma, que age independentemente da vontade do sujeito. Assim, sem conseguir controlar aquilo que sente, apenas pode olhar a mulher amada, mas não consegue conversar com ela, não sabe o que dizer.
            Na segunda estrofe, o sujeito poético reforça a incapacidade de expressar devidamente o seu amor, parecendo acreditar que o sentimento não pode ser traduzido por palavras, pelo menos por ele: “Quem quer dizer o que sente / Não sabe o que há de dizer.”. O «eu» é um inadequado relativamente ao «outro» e tem dificuldade em comunicar com ele, a qual resulta na sensação de que está sempre fazendo algo de errado.
            A observação e a opinião dos outros restringem os seus sentimentos. O sujeito acredita que, se falar sobre eles, vai parecer que mente, mas, se os calar, vai ser julgado por deixar (a amada? O amor?) cair no esquecimento. Assim sendo, sente que não pode agir de nenhum modo.
            Na terceira estrofe, o sujeito lírico, triste e desalentado, lamenta-se e, socorrendo-se do pretérito imperfeito do conjuntivo (modo verbal do desejo) e de uma oração subordinada adverbial condicional, manifesta um desejo: que ela pudesse compreender o amor que sente através do olhar. Atente-se na sinestesia dos versos 9 e 10 (“Ah, mas se ela adivinhasse, / Se pudesse ouvir o olhar”), que exprime a crença do sujeito, segundo a qual o modo como olha a amada denuncia mais o seu sentimento do que qualquer declaração. O «eu» suspira (“Ah”), imaginando como seria se ela percebesse, sem que ele tivesse de dizer por palavras. Porém, a presença do conjuntivo (“adivinhasse”, “pudesse”) e da oração condicional nega desde logo a possibilidade de se concretizar essa vontade.
            Na estrofe seguinte, defende que “quem sente muito, cala”, ou seja, aqueles que estão realmente apaixonados calam o seu sentimento. Para ele, quem tenta expressar o seu amor “fica sem alma nem fala”, “fica só, inteiramente”. Falar do que sente irá sempre levá-lo ao vazio e à solidão absoluta. Assim, é como se assumir um amor fosse, automaticamente, uma sentença de morte para o sentimento, que passaria a estar condenado.
            A última quadra é passível de diferentes leituras:
a) Se o sujeito poético pudesse explicar à mulher a dificuldade que tem em exprimir o seu amor, não mais seria necessário fazê-lo, porque já se estava a declarar, mesmo que indiretamente. Porém, a realidade é que não consegue verbalizar o sentimento nem discutir essa sua inabilidade. Assim sendo, o relacionamento está condenado a não passar do plano platónico.
b) O texto é, na verdade, uma declaração de amor. Neste caso, o «eu» usa a poesia como forma de falar, de mostrar o que sente; o poema diz/fala aquilo que ele não consegue. Porém, para que esta forma de comunicação se concretizasse, seria necessário que ela lesse o poema e soubesse que lhe era dirigido. Como não o lê não sabe, o relacionamento também não se concretiza deste modo.
c) O verdadeiro amor é incomunicável, não pode ser expresso através de palavras, caso contrário desaparece. O sujeito poético conclui que só conseguiria declarar o seu amor, caso o sentimento não existisse mais.
            A conjunção coordenativa adversativa “mas” estabelece uma oposição entre aquilo que tinha sido dito antes e a quadra que encerra o poema. Embora lamente não poder expressar o seu sentimento, está conformado, pois sabe que não pode ser revelado, sob pena de desaparecer.
            Ao longo de todo o poema, transparece a atitude derrotista do sujeito poético face ao amor.



https://www.culturagenial.com/poema-pressagio-de-fernando-pessoa/

quinta-feira, 13 de junho de 2019

"Não sei se é sonho, se realidade"

            A composição poética, composta por quatro sextilhas de rima cruzada nos primeiros quatro versos e emparelhada nos dois últimos (ABABCC) e versos eneassílabos, aborda a temática da dicotomia entre o sonho e a realidade. Esta temática é consentânea com o conceito de arte que caracteriza o Modernismo, enquanto experimentação para recriar a vida, criando uma realidade nova.

 
            O assunto consiste na constatação, por parte do sujeito poético, de que a felicidade está presente no interior de cada um e não na nostalgia de um passado que se desvanece.

 
            O poema pode dividir-se em três partes.

            A primeira corresponde às duas primeiras estrofes, nas quais o sujeito poético, cheio de esperança, sugere a possibilidade (advérbio “talvez”) de alcançar a felicidade através do sonho, como se pode comprovar através das expressões que o caracterizam: “terra de suavidade” (v. 3), “ilha extrema do sul” (v. 4), “palmares” (v. 7). De facto, o sujeito poético imagina (sonha) uma ilha distante, serena e agradável (“suavidade”), repleta de árvores (como palmeiras), onde a felicidade, a juventude e o amor são possíveis. A antítese do verso 1 (“Não sei se é sonho, se realidade”) sugere a incapacidade de distinguir o sonho da realidade e exprime a oposição entre os dois elementos, entre o mundo imaginado e o mundo real. O «eu» procura a felicidade, recorrendo ao sonho como fuga à realidade.

            Este lugar é um misto de sonho e vida (v. 2), um espaço longínquo, exótico e indefinido, separado do mundo real, que acarreta sossego e calma, serenidade, juventude e alegria/sorriso, e representa a felicidade absoluta, tudo nele se opondo à realidade e ao quotidiano. De facto, aparentemente, esse espaço constitui a materialização do paraíso perdido que proporciona a felicidade e o amor, como se pode constatar pelas metáforas/imagens exóticas de “palmares” e “áleas longínquas”.

            Esta ideia é reforçada nos dois versos finais da primeira estrofe, os quais enfatizam a ideia de que é possível que exista uma ilha, situada entre o sonho e a realidade, na qual reina a felicidade. O adjetivo “jovem” e a forma verbal “sorri” associam-se à musicalidade sugerida pela repetição do advérbio locativo “ali”, reforçando as características paradisíacas e de exceção daquele espaço. A personificação do verso 6 (“A vida é jovem e o amor sorri.”) enfatiza o caráter idílico da ilha do sul, onde há juventude eterna e o amor acontece, contrariando a solidão, ilha essa esquecida entre o sonho e a realidade, na qual reina a felicidade. Em suma, a ilha simboliza o sonho, a felicidade, o paraíso desejado: terra de suavidade, com palmares, áleas, sombra e sossego, onde a “vida é jovem e o amor sorri”.

            No entanto, a segunda estrofe parece introduzir uma certa incerteza: será possível efetivamente concretizar o sonho, viver aquela forma de felicidade (atente-se na repetição do advérbio de dúvida “talvez”, que sugere essa mesma incerteza). Além de incerto, o ideal procurado afirma-se já como ilusório, ideia sugerida pelas metáforas “palmares inexistentes” (v. 7) e “Áleas longínquas sem poder ser” (v. 8) e confirmado pela interrogação do verso 11: “Felizes, nós?”. Estas duas metáforas e a do verso 4 (“ilha extrema do sul”), por um lado, simbolizam o sonho em busca da felicidade desejada, mas inacessível e, por outro, recriam o espaço de utopia, “a terra de suavidade”, produto da idealização.

            Nas duas primeiras estrofes, nota-se a alternância entre o uso da 1.ª pessoa do singular (“Não sei”), traduzindo a reflexão pessoal do sujeito poético, e do plural (“ansiamos”), que generaliza a reflexão a todos aqueles que sonham, incluindo o próprio sujeito poético.

            A terceira estrofe constitui o segundo momento do texto, que traduz o desalento provocado pela consciência da impossibilidade de alcançar a felicidade no sonho. A conjunção coordenativa adversativa “mas” que a inicia, que tem um valor de oposição ou contraste, contraria a noção de felicidade absoluta sugerida inicialmente, desfazendo a dúvida entretanto introduzida, o que deixa o sujeito poético desiludido, desanimado e desalentado ao constatar que é impossível vivenciar a felicidade no sonho, por causa do caráter efémero do bem (“não dura o bem” – v. 18), como consequência do pensamento. Assim, a incerteza que se foi instalando na segunda estrofe dá lugar à certeza da imperfeição que caracteriza aquele lugar idealizado pelo “eu” e a sua desilusão fica bem evidente com o recurso à interjeição do verso 17: “Ah”. De facto, “Sob os palmares” (v. 15) “Sente-se o frio” (v. 16).

            Por outro lado, o primeiro verso da terceira estrofe confirma que o sonho não é realizável, pois, assim que fosse concretizado, deixava de o ser, logo a concretização é falsa: “Mas já sonhada se desvirtua” – v. 13). Desiludido, o sujeito poético reconhece que o local também é marcado pelo “frio” e pelo mal, que não é um lugar perfeito. Atente-se na antítese “O mal não cessa, não dura o bem” (v. 18). O facto de pensar na ilha destrói o seu caráter idílico, pois o “mal” é permanente, não cessa, e o “bem” é efémero.

            A terceira parte compreende à quarta estrofe e nela encontramos as conclusões do sujeito poético, que veiculam uma ideia oposta à inicial: afinal, não é no sonho que podemos encontrar a felicidade, mas no interior, no íntimo de cada um de nós (“É em nós que é tudo” – v. 23). Deste modo, a felicidade deixa de fazer sentido num lugar exterior ao indivíduo ou na ilusão do sonho (enquanto fuga à realidade) para poder ser materializada no interior do ser humano. Só a nossa ação nos permitirá ser felizes.

            As metáforas dos versos 19 e 20 (“Não é com ilhas do fim do mundo, / Nem com palmares de sonho ou não”), associando a ilha ao sonho, dado que os locais exóticos são considerados espaços de evasão, de fuga à realidade, sugerem precisamente que não é no sonho que encontramos a felicidade: “Que cura a alma seu mal profundo, / Que o bem nos entra no coração” (vv. 21-22). A antítese presente nestes dois últimos versos realça a inoperância do sonho e a imposição do real sobre o imaginário.

            Onde reside então a felicidade? A felicidade está no íntimo de cada ser humano, está dentro de nós mesmos, não em sonhos distantes: “É em nós que é tudo.” (v. 23). Note-se que esta ideia remete para a procura de si mesmo. “É ali, ali, / Que a vida é jovem e o amor sorri.” (vv. 23-24): o sujeito poético começou por colocar a hipótese de encontrar o sonho e a felicidade na “ilha”; depois anulou essa possibilidade, considerando que, uma vez atingido, o sonho deixa de o ser (verso 13); por último, na derradeira estrofe, conclui que aquilo que procuramos se encontra em nós, no interior de cada pessoa, e no nosso mundo e não no sonho. Note-se a presença insistente do advérbio com valor locativo «ali» que, no verso 3, se refere à “terra de suavidade”, no 4, à “ilha extrema do sul”, e, na última estrofe, ao “nós”. Ou será que o poema apresenta uma estrutura circular e, no final, regressa ao ponto de partida e ao sonho?

            Para atingir o absoluto, a plenitude, o ser humano necessita de ultrapassar as suas próprias limitações, as quais geram o mal-estar, “assumindo a tensão produzida pelas contingências da vida. A dicotomia sonho-realidade é representada por dois mundos cujas fronteiras às vezes se tocam e o ser humano, na sua busca contínua pela felicidade absoluta, tem tendência a divagar entre os dois, oscilando entre as vivências vividas e as vivências sonhadas.”

 
(Resumos Clássicos, Conceição Coelho e Maria de Fátima Santos)
 
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