Português: Ricardo Reis
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quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Análise do poema "Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia", de Ricardo Reis

    O poema encontra-se organizado no respeito pelo processo usado em determinadas odes de Horácio; quer dizer, constitui-se como um símile de valor parenético (ou seja, que encerra uma moralidade), tomando por base um exemplum.


    Relativamente à estrutura interna, o poema divide-se (pelo que acima foi referido) em duas partes: o exemplum (vv. 1 a 64) e a moralidade (vv. 65 a 105).


  
         1.ª parte: Exemplum (vv. 1 - 64)

    Embora seja um texto em verso (decassílabos e hexassílabos brancos), por isso com características evidentes do género lírico, é possível também detetar no poema alguns aspetos característicos do género narrativo, concretamente a presença de uma ação, narrador, tempo, espaço e personagens.

    A história (ação) narrada no texto prende-se com factos ocorridos durante a invasão de uma cidade da Pérsia. Tais factos, apesar da sua brutalidade e sanguinolência, foram incapazes de, por mais do que um leve e passageiro instante, desviar a atenção de dois jogadores de xadrez que, indiferentes a tudo o que os rodeava, prosseguiram serenamente o seu jogo.

    O narrador é o próprio...


    A análise completa do poema pode ser encontrada aqui: análise-de-ouvir-contar-que-outrora.

 

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Análise do poema "A abelha que, voando, freme sobre", de Ricardo Reis


    Nesta ode, Ricardo Reis socorre-se de um inseto, uma abelha, para demonstrar o contraste entre a mudança que ocorre na vida do ser humano e a imutabilidade da Natureza.
    Assim, neste poema de três quadras, o «eu» começa por descrever uma situação em que uma abelha, ao aproximar-se de uma flor e ao pousar nela, se confunde com esta aos olhos de quem não presta atenção, “À vista que não olha”. A ideia expressa na primeira quadra apenas se conclui no primeiro verso da segunda (transporte): a abelha não mudou desde a Antiguidade, representada por Cecrops, o lendário fundador e rei de Atenas (entre 1558 e 1508 a.C.), que ensinou aos gregos a leitura, a escrita, o casamento e o cerimonial do sepultamento.
    Pelo contrário, o “ser que se conhece”, isto é, o ser humano, que tem consciência de si mesmo e da sua individualidade, ao contrário do que sucede com os elementos da Natureza, envelhece de forma distinta dos outros membros da sua espécie. Dito de outra forma, o ser humano tem consciência de que envelhece, é diferente dos outros seres e vai morrer, ou seja, conhece-se.
    A «abelha» é a mesma que outra que não ela.”, isto é, é igual a qualquer outra abelha, de qualquer época, sem diferença ou individualidade, ao contrário dos seres humanos, que, marcados pelo tempo, pela alma, pela vida e pela morte (atente-se na enumeração e sucessão de apóstrofes), «compram» (metáfora) “Ter mais vida que a vida”, ou seja, procuram algo mais do que a vida naturalmente lhes oferece (sonhos, desejos, arte, cultura, etc.). Essa demanda é, todavia, mortal, já que implica sofrimento e dor, desde logo porque o Homem está condenado à morte, que tudo reduz a pó. Mas não é esse, afinal, o desejo do ser humano, isto é, ser diferentes dos demais animais e não se limita a viver? “Ter mais do que a vida”.
    Assim, neste poeta, o «eu» poético estabelece o contraste entre o ser humano, a única entidade que é consciente de si mesma, e os outros animais, representados aqui pela abelha, que são iguais e imutáveis. Além disso, o ser humano envelhece e morre de forma diferente dos outros animais, exatamente porque é um ser consciente, desde logo de si, e, por isso, sabe que envelhece e morre e esta consciência, este saber que, provocando-lhe dor, angústia, sofrimento. Enquanto ser irracional, a abelha de nada tem consciência, daí que não sofra, por exemplo, com a passagem do tempo, o envelhecimento e a morte. A abelha é a mesma desde a Antiguidade, o ser humano envelhece e diferencia-se dos outros elementos da sua espécie, é único e mortal.
    Em suma, para Ricardo Reis, a questão que diferencia o ser humano e os animais é a mortalidade do primeiro e a imortalidade dos segundos, neste caso não em sentido literal, mas figurado, ou seja, a abelha, o exemplo de que se socorreu o poeta, é tomada como um elemento de uma espécie [morre uma abelha, nasce(m) outra e assim sucessivamente]. Pelo contrário, o Homem é encarado, não em termos de espécie, mas como ser individual.

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Análise do poema "Pois que nada que dure ou que durando"


                 Esta ode de Ricardo Reis é composta por três quadras de versos decassilábicos (os três iniciais) e hexassilábicos (o quarto), com rima irregular: toante na primeira quadra (“durando” / “obramos”), consoante interpolada na segunda entre o primeiro e o quarto versos e cruzada entre o terceiro e o primeiro da seguinte (“presente” / “somente”); versos brancos ou soltos (vv. 1, 3, 4, 6, 10, 11 e 12).

                O tema da composição poética é a transitoriedade e a precariedade da vida, bem como o valor dos atos que nela são praticados. Tudo passa, nada dura, ou, se dura, é breve, e o valor do presente, que é hipotecado ao futuro, é igualmente precário. Será que o próprio instante, dado que pode ser o derradeiro daquilo que julgamos ser, é apenas nosso?

                A composição poética pode ser dividida em três momentos: a primeira quadra compreende a justificação daquilo que se afirma no segundo momento; na segunda quadra e na primeira frase da terceira, o sujeito poético defende a superioridade do momento presente em relação ao futuro, visto que este (“amanhã”) não existe, pelo que a procura (“cura”) do futuro é absurdo, já que priva o ser humano do bem presente; o terceiro momento (de “Meu somente…” até ao final) é constituído por uma interrogação retórica, por meio da qual se questiona se o instante presente será apenas seu, o que indicia que o ser humano não controla o seu destino.

                A mensagem do poema é clara: nada que o ser humano faz no mundo é duradouro, ou, sendo-o, não tem valor, e até as coisas que lhe são úteis rapidamente ele perde, por isso deve preferir o prazer do momento presente à procura insensata do futuro, pois este exige o mal do presente em troca do seu bem. Mas surge a dúvida: será esse momento apenas do ser humano? Será o indivíduo apenas quem existe nesse instante que pode ser o último daquele que finge ser? Atente-se na referência ao fingimento, uma temática tão do agrado de Pessoa ortónimo, por exemplo, em “Autopsicografia” e “Isto”.

                A musicalidade do poema assenta na aliteração (em /t/: “existe / Neste instante” e /d/: “pode o derradeiro”) e no jogo das homónimas «ser» (“… que pode o derradeiro / Ser de quem finjo ser?”). Além disso, o encavalgamento ou transporte percorre, praticamente, todo o poema.

                No que diz respeito às formas verbais, predominam as que se encontram no presente do indicativo, sugerindo a ideia de continuidade, e no presente do conjuntivo, remetendo para o campo da possibilidade (“Pois que nada dure ou que durando / Valha…”) ou exprimindo um desejo (“O prazer do momento anteponhamos”). Por outro lado, nas duas primeiras quadras, é usada a primeira pessoa do plural, enquanto na última ocorre a primeira do singular, o que confere à interrogação final um acentuado grau de subjetividade, com a focalização no «eu» daquilo que, anteriormente, tinha sido enunciado como próprio do coletivo, do ser humano em geral. Por seu turno, a reiteração do vocábulo «cedo» (verso 4) realça a ideia de efemeridade da vida.

                É curioso notar que, na prática, o poema é constituído somente por três frases: uma inicial de tipo declarativo, que abrange as duas primeiras quadras; uma segunda, igualmente declarativa, mas bastante mais curta (“Amanhã não existe”), e uma terceira, de tipo interrogativo, que finaliza o poema.

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Análise do poema "Quando, Lídia, vier o nosso outono", de Ricardo Reis


Quando, Lídia, vier o nosso outono
Com o inverno que há nele, reservemos
Um pensamento, não para a futura
                      Primavera, que é de outrem,
Nem para o estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa –
O amarelo atual que as folhas vivem
                      E as torna diferentes
 
                Esta ode surgiu na revista Presença em 16 de março de 1930.

                Ao gosto horaciano, Ricardo Reis usa o plural «nosso» e o vocativo para se dirigir a uma interlocutora presente em vários dos seus poemas, a sua amada Lídia. O outono que se aproxima, com tudo o que transporta já de inverno, e esquecido já do verão, indicia o acentuar da decadência e a proximidade da morte, em decorrência da passagem inexorável do tempo.

                Deste modo, o amarelecer das folhas tem ainda o tom dourado da vida; já é já o estio, mas também não é ainda o inverno, a morte. Neste contexto, é preciso aproveitar cada momento (carpe diem), mesmo que seja o último. O outono simboliza a decadência, a velhice; o inverno, a morte, e a primavera, o recomeço ou a renovação. Como esta última já passou, logo não lhe pertence (“… é de outrem” – v. 4), e o inverno (a morte) se aproxima, o sujeito poético assume que é necessário que tanto ele como a sua amada reservem “um pensamento (…) para o que fica do que passa – o amarelo atual”. É visível aqui o autodomínio, a contenção, o contentamento com o prazer relativo tão característicos da poesia de Ricardo Reis.

                No fundo, a mensagem do poema pode resumir-se a uma única frase: é preciso usufruir de cada momento que passa, sem lamentar o passado e sem se inquietar com o futuro. A transmissão desta mensagem é feita através de uma linguagem sóbria e um discurso lógico, no qual o pensamento prevalece sobre a forma, e assenta na simbologia das estações do ano e no predomínio do verso decassílabo (apenas os quarto e oitavo versos são hexassílabos), bem como no encavalgamento e no uso cuidado da pontuação, nomeadamente da vírgula e do travessão.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Reflexão existencial: a consciência e encenação da mortalidade

 
• Consciência da efemeridade da vida, da inexorabilidade do Tempo e da inevitabilidade da Morte.

                Reis tem uma consciência aguda de que a vida é efémera e transitória, de que o Tempo passa de forma célere e de que qualquer ato humano é pequeno e infrutífero perante estas realidades. Receia a velhice e a morte, que é inevitável.

                Além disso, está consciente de que o Homem é débil perante forças maiores que o oprimem.

                Assim, angustiado por tudo isto e pela noção de um Destino inexorável, procura na sabedoria dos antigos um remédio para os seus males, nomeadamente para a dor da caducidade e o peso da Moira cruel. Que remédio é esse? Trata-se da aceitação com altivez do Destino que lhe é imposto e que lhe proporcione a indiferença face à morte. Reconhecendo que a vida de cada um, não obstante ser instável e contingente, é o único bem em que podemos, até certo ponto, firmar-nos, souberam construir a partir dele uma felicidade relativa, encarando com lucidez o mundo.

 
• Tragicidade da vida humana.

                O ser humano é uma vítima indefesa do Destino e está sujeito à passagem do Tempo, que inevitavelmente traz o envelhecimento, a doença e a morte a uma vida que é efémera. Consciente de que qualquer esforço é inútil, renuncia e busca a aceitação calma do Destino.

                Em suma, a vida é fugaz, a morte é certa, o Destino comanda-nos, daí que devamos recusar compromissos afetivos (“Desenlacemos as mãos”) e sociais (“Antes magnólias amo / Que a glória e a virtude”) para chegar à morte de mãos vazias e sem dor.

 

• A vida como «encenação» da hora fatal (previsão e preparação da morte): despojamento de bens materiais, negação de sentimentos excessivos e de compromissos.

                Reis, consciente do fluir inexorável do tempo, aceita a efemeridade da vida, bem como a inevitabilidade da morte. Numa atitude epicurista e estoica do equilíbrio interior pela busca de um prazer relativo, o poeta sustenta que a própria vida deve ser encarada como encenação da morte, através da autodisciplina, da abdicação, da renúncia a compromissos afetivos e sociais, da aceitação calma e serena da vida, da submissão ao Destino e da aceitação da inevitabilidade da Morte.

 

• Intelectualização de emoções e contenção de impulsos.

                A filosofia de Reis resume-se num epicurismo triste. Para ele, cada indivíduo deve viver a sua própria vida, isolando-se dos outros e procurando apenas o que lhe agrada e apraz. Deve renunciar às emoções violentas: o poeta racionaliza as emoções e recusa o seu valor, face à realidade que descobre, através do pensamento.

                O Homem deve buscar o mínimo de dor e, sobretudo, a calma e a tranquilidade, abstendo-se de esforços e da atividade útil. Deve procurar dar-se a ilusão da calma, da liberdade e da felicidade, coisas inatingíveis, pois, quanto à liberdade, os próprios deuses – também eles comandados pelo Destino – não a têm; quanto à felicidade, não a pode viver quem está exilado da sua fé e do meio onde a sua alma devia viver; e quanto à calma, quem vive angustiado, sempre à espera da morte, dificilmente pode fingir-se calmo. A obra de Reis, profundamente triste, é um esforço lúcido e disciplina para obter uma calma qualquer.

                Epicurista, o homem de sabedoria conquista a autonomia interior na estrita área de liberdade que lhe restou. Essa conquista começa por um ato de abdicação, por uma atitude de autodisciplina. O primeiro objetivo é submeter-se voluntariamente ao Destino, que deste modo cumprimos altivamente, sem um queixume. O homem sábio chega mesmo a antecipar-se ao próprio Destino, aceitando livremente a morte. O segundo objetivo é depurar a alma de instintos e paixões que nos prendem ao transitório, alienando a nossa vida. A ataraxia, note-se, não implica para Epicuro ausência de prazer, mas indiferença perante todo o prazer que nos compromete, colocando-nos na dependência dos outros ou das coisas. Além disso, os prazeres epicuristas são tipicamente espirituais, como a leve recordação melancólica dos bons momentos do passado.

 

• Vivência moderada do momento (o presente como único tempo que nos é concedido).

                Na esteira da Antiguidade clássica, Reis confessa a Lídia que prefere o presente precário a um futuro que teme porque o desconhece. A sabedoria consiste precisamente em gozar o presente (carpe diem) de forma moderada, pois o futuro é uma incógnita e a vida é efémera.

 

• Preocupação excessiva com a passagem do Tempo e com a inelutável Morte (apesar do esforço empreendido na construção da máscara poética).

                Reis é um epicurista triste: faz a apologia do gozo comedido, do carpe diem e da suprema indiferença, de acordo com o Epicurismo. Por outro lado, apela à fortaleza de ânimo para enfrentar o fatalismo da morte e a dor de viver, segundo o Estoicismo. Estes princípios têm como finalidade atingir a (pouca) felicidade que é permitida aos seres humanos: viver «sem desassossegos grandes», aceitando as leis do Destino, e aguardar a morte de forma serena e digna. A efemeridade da vida e a inevitabilidade da morte são temáticas obsessivas e geradoras de grande angústia que o poeta procura superar através do domínio da emoção pela razão, isto é, pela intelectualização das emoções.

                É uma lição de não-vida: não amar para não sofrer, não desejar para não ser desiludido, não questionar para não encontra o vazio.

 

O fingimento poético: Ricardo Reis, o poeta «clássico»

 
Neoclassicismo: revivalismo da cultura da Antiguidade Clássica (sobretudo, a grega).

 
▪ Influência greco-latina: de acordo com a sua biografia, Ricardo Reis foi educado num colégio de jesuítas, onde recebeu profundas influências da cultura greco-latina, daí poder afirmar-se que se trata de um poeta clássico, um helenista e latinista.

 
▪ Nos seus poemas, transmite ensinamentos (uma filosofia de vida) para os indivíduos saberem enfrentar as adversidades da vida e do mundo.

 
▪ Entre essas adversidades contam-se a fugacidade do tempo e da vida, a velhice, a doença, a certeza da morte, a ação inexorável do Destino (Fado) e outras situações que acarretam o sofrimento e a dor.

 
▪ Assim, Reis procura a sabedoria dos antigos (gregos e latinos) para resolver os seus problemas e evitar a dor e o sofrimento, sendo influenciado por duas escolas filosóficas gregas (o Estoicismo e o Epicurismo) e pelo poeta latino Horácio.

 
Neopaganismo:

▪ reaparecimento dos antigos deuses na arte ou na literatura – adoção de uma visão pagã do mundo, em que o Homem vive em comunhão com a Natureza e em que existem deuses, uma mitologia e o Fado/Destino e aqueles estão presentes no seio da Natureza;

▪ renascimento da essência pagã, pela eliminação da racionalidade abstrata e pela rejeição da metafísica ocidental;

▪ cosmovisão hierarquizada e ascendente dos seres: animais, homens, deuses e Fado, que a todos preside

 
Epicurismo:

▪ procura da felicidade e do prazer relativos;

▪ atitude imperturbável e de distanciação face aos males que atormentam a existência humana (passagem do tempo, morte, etc.): ataraxia – ausência de perturbação ou inquietação;

▪ altivez e indiferença (egoísmo epicurista) – abdicação voluntária;

▪ fruição tranquila do momento presente (carpe diem), de uma felicidade suave e tranquila dos prazeres serenos e moderados;

▪ aceitação de uma vida simples, sem grandes ambições e em contacto com a Natureza – aurea mediocritas;

▪ aceitação do Destino, da morte e das contrariedades da vida;

▪ perceção direta da realidade e do ciclo da Natureza.

 
Estoicismo:

▪ aceitação racional das leis do Tempo e do Destino;

▪ resignação perante a frágil condição humana e o sofrimento;

▪ culto da contenção, da autodisciplina, do autodomínio na vida e na escrita e despojamento dos bens materiais;

▪ culto da abdicação voluntária e da indiferença perante as paixões e os sentimentos intensos e compromissos, como forma de evitar ceder à força dos impulsos;

▪ busca da apatia (a = ausência de + pathos = sofrimento), um estado de indiferença e de ausência de sofrimento e dor como forma de o indivíduo enfrentar com determinação as contrariedades, a doença e a morte;

▪ procura, também, da ataraxia.

 
Horacianismo:

▪ visão estoico-epicurista da existência;

▪ perceção aguda da transitoriedade do tempo, da brevidade da vida e da inevitabilidade da morte e do Destino;

▪ inutilidade do esforço e da indagação sobre o futuro;

carpe diem: fruição moderada do momento e entrega moderada ao prazer;

▪ culto da aurea mediocritas (preferência por uma vivência calma num local recatado, em contacto com a Natureza);

▪ presença do locus amoenus (lugar aprazível);

▪ autodomínio que evita as paixões e aceitação voluntária do Destino.

 
• Contemplação da Natureza e desejo de com ela aprender a viver; afastamento social e rejeição da práxis (proatividade).

 
• Classicismo como máscara poética.

 

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Análise de "Antes de nós nos mesmos arvoredos"

 ● Tema: o destino humano.

 
 
1.ª estrofe

 
O plural «nós» representa todos os seres humanos.

 
Os arvoredos configuram um elemento intemporal: antes de o ser humano existir, eles já existiam. E antes dessa existência, o vento passava e criava ruído nas folhas, ruído esse que é personificado na fala das mesmas folhas.

 
A Natureza, representada pelos arvoredos, assiste impassível à passagem dos homens, havendo como que uma permanência que se opõe à transitoriedade da vida humana. Aquela é permanente, enquanto o ser humano é transitório (verso 1).

 
Em suma, o sujeito poético esclarece que, antes de o ser humano existir, a Natureza comportava-se da mesma forma que se comporta no presente: os arvoredos são os mesmos, o vento passou neles e as falhas falavam do mesmo modo que hoje. As leis da Natureza e do Universo são sempre constantes.

 
 
2.ª estrofe
 
O sujeito poético afirma que o Homem passa pelo mundo e se agita em vão. Ele tem consciência da passagem do tempo, bem como da inutilidade (v. 5) do seu esforço, enquanto os elementos naturais permanecem passivos e sem esta consciência.

 
A ação do ser humano não deixa qualquer marca no mundo e é tão insignificante como o ruído das folhas e da passagem do vento. Ou seja, as marcas deixadas pelo Homem e a sua agitação são tão insignificantes e inúteis como o barulho das folhas das árvores e da passagem do vento. Note-se que este representa a instabilidade e a inconstância (ora sopra, ora não sopra; ora sopra da esquerda, ora sopra da direita, etc.).

 
Nas duas primeiras estrofes:

- a Natureza e o «nós» fazem parte da mesma realidade perene e estão sujeitos às mesmas condições, neste caso, à passagem do tempo e do vento (vv. 1 a 4);

- neste caso, há uma relação de semelhança entre o Homem e a Natureza (vv. 6 a 8);

- no entanto, há uma diferença: a passagem do tempo faz parte do ciclo habitual da Natureza, que dela não tem consciência; já para o Homem, porque é consciente da passagem do tempo, é motivo de agitação e perturbação – ou seja, ele é caracterizado pela constatação da finitude e da transitoriedade, bem como pela consciência do tempo (“Passamos” – v. 5) e da inutilidade do esforço humano (“agitamo-nos debalde” – v. 5).

 
 
3.ª estrofe
 
O sujeito poético exorta à fruição calma do momento («carpe diem») e à serenidade epicurista do contacto com a Natureza (“Tentemos pois com abandono assíduo / Entregar nosso esforço à Natureza” – vv. 9-10).

 
Por outro lado, exprime o desejo único de identificação e comunhão com a Natureza (“E não querer mais vida / Que a das árvores verdes.” – vv. 11-12).

 
Além disso, aconselha a aceitação voluntária (“abandono assíduo” – v. 9) do tempo de vida que nos é concedido e a aceitação passiva da ordem das coisas, das leis que regem o Universo (“Tentemos pois com abandono assíduo / Entregar nosso esforço à Natureza”); ou seja, sugere que abandonemos definitivamente (“assíduo” = constante, que não acaba) o que nos agita / perturba e que passemos a apreciar a Natureza, a desfrutar calmamente o que ela tem para nos oferecer.

 
O sujeito poético aspira à indiferença (próxima da da Natureza) face à perturbação causada pela ameaça do Destino, não querendo “mais vida / Que a das árvores verdes” (vv. 11-12), alheio à agitação do mundo, e à tranquilidade (ataraxia).

 
 
4.ª estrofe
 
O sujeito lírico defende uma atitude de abnegação face ao fatalismo da vida: “Inutilmente parecemos grandes”.

 
A ideia de grandeza que o Homem tem de si é inútil. O advérbio «inutilmente» sugere que, apesar dos seus feitos e da imagem que tem de si mesmo, ele estará sempre sujeito às leis do Destino.

 
Além disso, nada na Natureza está submetido ao ser humano, mesmo que este assim pense: “(…) nada pelo mundo fora / Nos saúda a grandeza / Nem sem querer nos serve.”.

 
 
5.ª estrofe
 
Na quinta estrofe, é usada a primeira pessoa do singular, enquanto nas quatro anteriores fora usada a primeira do plural. A que se deve esta mudança?

 
Em primeiro lugar, nas primeiras quatro estrofes, o sujeito poético apresenta uma reflexão filosófica sobre o tempo e os efeitos da sua passagem, sobre um Destino comum a todos os seres humanos. Assim sendo, o recurso à primeira pessoa do plural justifica-se, pois as conclusões e as recomendações que o sujeito poético rira e faz são globais e aplicam-se a todos os seres humanos, incluindo o sujeito poético (“nós”, “Passamos”, “agitamo-nos”, etc.).

 
Em segundo lugar, na última estrofe, o sujeito poético volta.se para si mesmo, dando o seu exemplo pessoal e refletindo sobre a fugacidade da vida, a passagem inexorável do Tempo e a pequenez dos atos humanos (vv. 17-18), reforçando a ideia de que o Homem é débil perante forças maiores (vv. 19-20).

 
Esta estrofe é toda ela uma interrogação retórica, através da qual o sujeito lírico reflete sobre o valor da vida humana perante o poder do Tempo.

 
Assim, tal como as pegadas deixadas (pelo sujeito poético) na areia são facilmente apagadas pelas ondas (“Se aqui, à beira-mar, o meu indício / Na areia o mar com ondas três o apaga” – vv. 19-20), a existência humana será sempre apagada pela passagem do Tempo (“Que fará na alta praia / em que o mar é o Tempo?” – vv. 19-20). Por outro lado, quer as pegadas quer a existência humana se revelam transitórias e sujeitas ao poder de forças que lhes são superiores.

 
Desta forma, a interrogação retórica estabelece um contraste entre a pequenez do Homem e a força grandiosa e inexorável que é o Tempo.

 
A presença do número 3 é bastante expressiva:

- associa-se ao destino do Homem e ao mito das três parcas, as irmãs que determinam o destino dos deuses e dos seres humanos: Cloto segura e tece o fio da vida – é a deusa dos partos e nascimentos; Láquesis fia (a vida do Homem na Terra); Átropos corta o fio da vida (momento que equivale à morte);

- relaciona-se também às nereidas, deusas filhas do Oceano, que personificavam as ondas e que fiavam, teciam e cantavam;

- liga-se, igualmente, às três fases da vida do Homem: nascimento, vida e morte.

 
Em suma, na última estrofe, o sujeito poético reflete sobre:

- a brevidade da vida;

- a passagem do Tempo;

- a consciência da morte;

- o contraste entre a fragilidade do ser humano e a grandiosidade do Tempo.

 
Resumindo: ao longo do poema, o sujeito lírico propõe uma visão pagã da existência e defende a comunhão do Homem com a Natureza, ao constatar a brevidade e a efemeridade da vida humana. A única atitude a adotar no sentido de tudo isto encarar de forma tranquila, sem perturbação, passa pela renúncia à ação, ao esforço, pelo reconhecimento da sua inutilidade. Por outro lado, o ser humano é inserido num mundo uno, situando-se ao mesmo nível que os elementos da Natureza, aparecendo como parcela finita do infinito que é o Ser – Deus ter-se-ia materializado nos diferentes objetos criados e não apenas no ser humano.

 
 
Recursos expressivos
 
Nomes:

- “ruído” e “vento” sintetizam a ideia central do poema: o Homem não constrói o seu destino, antes cumpre um que lhe é imposto;

- “ruído” representa a palavra humana, por oposição à do Fado / Destino;

- “vento”: por um lado, associa-se ao Homem, remetendo para a efemeridade que caracteriza a sua vida; por outro, remete para o sopro divino, com significado oposto;

- “areia”: representa o mundo da aparência, que é uma cópia do mundo da Essência;

- “[alta] praia”: representa o mundo da Essência. Estes elementos (areia e praia) remetem para a conceção platónica da existência humana, através da oposição entre a “areia” que o sujeito poético vê e a “alta praia”.

 
Verbos nos modos imperativo e conjuntivo (com valor de imperativo): traduzem a assunção de uma atitude filosófica como forma de obter a tranquilidade e o bem-estar.

 
Advérbios de modo:

- “debalde”: traduz a inutilidade do desejo humano, pois o Destino é inexorável e nada escapa à sua lei;

- “inutilmente”: traduz a oposição entre a imagem que o Homem criou de si mesmo e a função real que ele desempenha no Todo universal, pois terá sempre de se submeter a uma vontade que lhe é superior, daí a inutilidade do seu esforço.

 

Análise de "Mestre, são plácidas"

 Assunto
 
            O sujeito poético dirige-se ao seu Mestre, Alberto Caeiro, expondo-lhe a aprendizagem que fez, e produz uma série de conselhos destinados a um «nós», no qual ele se inclui, bem como um conjunto de máximas, que contêm ensinamentos de vida e configuram uma proposta de uma filosofia de vida.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª estrofe) – O sujeito poético constata a fugacidade do tempo e sugere como deve ser vivido.
 
2.ª parte (estr. 2 a 4) – O sujeito lírico aconselha o seu interlocutor a conformar-se com a sua condição de ser humano.
 
3.ª parte (estr. 5 e 6) – O sujeito poético justifica o conselho dado: a vida é breve e a morte chegará, inevitavelmente.
 
4.ª parte (estr. 7 e 8) – O sujeito poético apresenta a solução para o(s) problema(s) em debate: uma atitude imperturbável para encarar o sofrimento e a morte.
 
 
Análise do poema
 
▪ O poema é antecedido de uma dedicatória a Alberto Caeiro, que o sujeito poético assume como seu «mestre», no primeiro verso do texto.
 
▪ O sujeito poético, através de uma apóstrofe, dirige-se ao seu Mestre (Alberto Caeiro), ao qual apresenta o resultado de uma reflexão que levou a uma aprendizagem, isto é, ao qual dá conta do que aprendeu. Assim sendo, Alberto Caeiro será o destinatário do discurso do sujeito poético, sendo o propósito desse discurso explicar como se deve viver.
 
▪ O sujeito poético terá descoberto a solução para os problemas que atormentam ambos: o tempo que vai passando até à morte (“Todas as horas que nós perdemos”) será vivido de forma plácida, calma, não angustiada se (oração subordinada adverbial condicional) vivermos a vida de forma moderada, se a encararmos de forma leve.
 
▪ A comparação dos versos 5 e 6 sugere exatamente essa defesa do prazer moderado, de viver a passagem do tempo de forma não angustiada: as flores postas numa jarra simbolizam a beleza da Natureza, beleza essa, no entanto, que é efémera, pois irá murchar (ou seja, morrer). Assim, as flores remetem para a efemeridade da vida, a qual torna inútil qualquer ação. Por outro lado, as jarras são recipientes que podem ser preenchidos ou não; neste poema, configuram uma metáfora para as horas. “Preencher as horas de coisas belas como as flores é um ato estético que contrabalança a sua perda” (GARCEZ, Maria Helena Nery).
 
▪ Na segunda sextilha, o sujeito poético defende que devemos manter uma atitude de indiferença perante as paixões e os sentimentos intensos: “Não há tristezas / Nem alegrias / Na nossa vida”. Pelo contrário, sustenta a abdicação e o manter-se afastado das perturbações do quotidiano. . Se soubermos não viver a vida, mas apenas assistir à mesma, não teremos alegrias nem tristezas.
 
▪ De seguida, defende a sabedoria do sábio incauto, despreocupado, ou seja, que não devemos viver a vida. Note-se como valoriza, neste passo, o ato de pensar e o saber. A forma verbal «decorrê-la» (v. 13) significa deixar que a vida passe, não a vivendo intensamente, com preocupações e ilusões e sem estar consciente de que a morte é uma realidade certa. É uma atitude cerebral, calculada, pensada, adquirida através de um processo mental de autodisciplina.
 
▪ Pelo contrário, a vida deve ser vivida de forma tranquila e plácida, “Tendo as crianças / Por nossas mestras”. As crianças, símbolo da sabedoria e da inocência, da existência tranquila, ensinam-nos a inocência e a simplicidade. Elas vivem sem preocupações, sem consciência da passagem do tempo e da certeza da morte.
 
▪ Além disso, a vida deve ser vivida contemplando a Natureza e bebendo a sabedoria que advém dessa atitude: “E os olhos cheios / de Natureza” (vv. 17-18). É a defesa do bucolismo, que relembra a poesia de Caeiro.
 
▪ Em suma, na segunda e terceira sextilhas, o sujeito poético sugere que a melhor forma de evitar o sofrimento e as preocupações da vida passa por abdicar de uma existência intensa e optar por uma atitude imperturbável face às adversidades.
 
▪ Na quarta estrofe, evocando o bucolismo da Natureza, sugere que nos devemos deixar levar pela vida, que deve ser vivida de forma despreocupada, sem esforço ou agitação, «Conforme calha» (v. 21), usufruindo dela enquanto dura, fruindo de forma tranquila o presente (vv. 22-23) e agindo de modo a que se prolongue (“estar vivendo” – est. 4: o gerúndio remete para uma ação em curso). Daí a utilização das expressões «à beira-rio» e «à beira-estrada», que apontam para a ideia de nos mantermos à margem da vida, não mergulhando nela de cabeça, nem seguindo na estrada com metas ou objetivos.
 
▪ A quinta estrofe centra-se no Tempo:

• habitualmente, na poesia, o Tempo constitui uma metáfora do saber, do amadurecimento, da experiência;

• neste texto, o Tempo tem uma conotação negativa: passa, destrói, produz o envelhecimento;

• o tempo passa e a vida é breve, por isso há que desvalorizar a sua passagem, dado que é esta que nos atormenta;

• por isso ainda, há que aceitar a efemeridade da vida e a inevitabilidade da morte;

• deste modo, o sujeito poético aceita a passagem do tempo, o envelhecimento e a morte de forma voluntária, porque não vale a pena combater o inevitável.

 
▪ A aceitação das circunstâncias que o rodeiam por parte do Homem, sem preocupações, é a melhor forma de as enfrentar. Assim sendo, devemos deixar-nos ir, caminhando para a morte, como se tal nos fosse indiferente. Maliciosos, de modo calculista, devemos aceitar o Destino, como se fosse voluntário, como se fôssemos nós a conduzi-lo.
 
▪ Na estrofe seguinte, o sujeito poético afirma a inutilidade de qualquer esforço: «Não vale a pena / Fazer um gesto.» (vv. 31-32).
 
▪ Que justificação existe para essa afirmação? É impossível escapar à ação cruel do Tempo, que tudo destrói: “Não se resiste / Ao deus atroz / Que os próprios filhos / Devora sempre.” Ou seja, não vale a pena resistirmos à passagem do tempo e à morte; nada podemos fazer para a evitar.
 
▪ O deus atroz é Cronos (ou Saturno para os romanos), a divindade que simboliza o tempo (é daquele termo que derivam palavras atuais que remetem para o tempo, como, por exemplo, «cronómetro», «cronometragem», etc.) e que devorou cinco dos seus seis filhos mal eles nasceram (tinha-lhe sido profetizado que um deles o derrubaria do trono). O sexto, Zeus (ou Júpiter entre os romanos) escapou (graças à ação da mãe, que deu a comer ao esposo uma pedra) e, de facto, acabou por destronar o pai. Assinale-se a presença, nestes versos, da perífrase e do disfemismo.
 
▪ Nas últimas duas sextilhas, o sujeito poético apresenta a solução: “Colhamos flores. / Molhemos leves / As nossas mãos / Nos rios calmos” (vv. 37 a 40). Aproximando-se de Caeiro e do seu sensacionismo, Ricardo Reis sugere que devemos viver o momento presente, de forma moderada e calma, na esteira do carpe diem de Horácio.
 
▪ Os «rios calmos» simbolizam a passagem do tempo (em direção à morte), um movimento constante, aqui associado à ideia da serenidade. Dito de outra forma, há que aceitar tranquila e imperturbavelmente que as coisas são assim. É a aproximação do ideal da ataraxia.
 
▪ As imagens dos versos 43 e 44 sugere que devemos seguir o ritmo e o curso da Natureza e das suas leis. As referências aos «girassóis», às «flores» e aos «rios» apresentam a Natureza como a realidade com que o «nós» se identifica e simbolizam a transitoriedade da vida.
 
▪ Se assim fizermos, encararemos o momento da morte de forma tranquila e viveremos a vida sem sensação de culpa: “Da vida iremos / Tranquilos, tendo / Nem o remorso / De ter vivido.” (note-se o recurso habitual ao eufemismo).
 

Características clássicas do poema

▪ o uso da ode;

▪ o bucolismo: “À beira-rio”, “Colhamos flores”;

▪ a “aurea mediocritas”: “Molhemos leves / As nossas mãos / Nos rios calmos”;

▪ o paganismo: a referência aos deuses greco-latinos;

▪ a aceitação do Tempo e do Destino;

▪ a consciência da vida e da inevitabilidade da morte;

▪ a vivência moderada do momento: “Para aprendermos / Calma também”;

▪ o uso dos modos imperativo e conjuntivo com valor exortativo.

 
 
Dupla mensagem
 
            Nesta ode, há uma dupla mensagem: uma dirige-se ao «Mestre», transmitindo-lhe a aprendizagem de uma determinada filosofia de vida; a outra é destinada ao leitor, que deve aprender uma lição, que consiste num misto de estoicismo e de epicurismo: “a elegância e o prazer sereno que a Natureza nos oferece é a forma de aceitarmos, com disciplina estoica, a certeza da morte.” (Carlos Reis, p. 87).
 
 
Relação entre o «nós» e o Tempo
 
            A questão do Tempo no poema relaciona-se com a figura mitológica de Cronos, a divindade que devorava os filhos com receio de que estes o apeassem do trono.
            Deste modo, o Tempo é uma espécie de pai e, simultaneamente, o devorador/aniquilador do «nós».
            A consciência da inevitabilidade deste facto, ou seja, da passagem do tempo e da morte, exige que o «nós» aprenda a aceitar esse facto, de modo a conformar-se às leis do Tempo.
 
 
Filosofia de vida
 
            O sujeito poético defende uma vida sem envolvimento emocional com o presente e sem expectativas de futuro, de modo a chegar à morte sem preocupações e com o mínimo de sofrimento (“Não a viver”, “tendo / Nem o remorso / De ter vivido”):
            Por outro lado, o sujeito poético aspira a “decorrer” a vida, ou seja, a aceitar voluntariamente o seu destino, aprendendo a viver em conformidade com as leis da Natureza, com calma e lucidez, a relatividade e a fugacidade de todas as coisas, recusando emoções intensas (“tristezas” e “alegrias”), na busca da indiferença à dor, ao sofrimento, em suma, a qualquer sentimento ou emoção intensos.
            Em conclusão, devemos aproveitar a vida enquanto dura, abdicando de sentimentos ou emoções que criem uma ligação mais profunda com o mundo.
 
 
Semelhanças com a poesia de Alberto Caeiro

▪ Palavras que se inscrevem no campo lexical de Natureza (“flores”, “girassóis”, “rio”, “Sol”).

▪ A «aurea mediocritas».

▪ A referência às crianças como modelo de existência tranquila a seguir.

▪ A atitude de contemplação da Natureza.

▪ A atitude panteísta de identificação com os elementos da Natureza.

 

domingo, 10 de janeiro de 2021

Horácio

            Horácio (Quintus Horatius Flaccus) foi um poeta latino, nascido em Venusa, em 65 a. C., e falecido em Roma, de forma súbita, em 8 a. C., do período do imperador Augusto.
            Entre 41 e 30 a. C., compôs Epodes (uma obra do género satírico) e Sátiras. A partir de 30 escreveu quatro livros de Odes, tendo sido os três primeiros publicados em 23 e o último depois do ano 13. Escreveu também dois livros de Epístolas, o primeiro publicado no ano 20; do segundo, que contém três epístolas, não se sabe ao certo a data da publicação, mas contém provavelmente as últimas obras de Horácio. A terceira destas epístolas, a Epístola aos Pisões, é a mais célebre e geralmente conhecida por Arte Poética, onde discorre sobre questões literárias. As Sátiras e as Epístolas são designadas por Sermones.
            Na sua obra, revela a influência da filosofia epicurista, o que se torna visível nas odes que glosam temas como o carpe diem (o aproveitamento do dia, do momento). Na esteira de Epicuro, Horácio canta a ideia de que a vida é efémera, o tempo passa e o indivíduo acabará por se debater com problemas e com o sofrimento: a velhice, a doença, a morte de alguém próximo, o fim do amor ou outras adversidades. Cada a cada pessoa libertar-se dos medos e abraçar um estado de ausência de perturbações (ataraxia) para viver serena e conformadamente, sem ambições, junto da natureza (aurea mediocritas).
            Horácio influenciará a poesia de Ricardo Reis no plano da cosmovisão e da filosofia epicurista, mas também no plano da forma, pelo uso da ode.
  

Estoicismo

 
            O nome Estoicismo provém da designação do lugar de Atenas – Stoa poikilé (pórtico ornado com as pinturas de Polignoto) – onde ensinaram Zenão e os primeiros estoicos.
            Zenão de Cítio (336 a.C. – 264 a.C.) foi o fundador desta escola de filosofia. No Estoicismo, conjugam-se uma doutrina tecnicamente elaborada e um estilo de vida perfeitamente identificável.
            A ética estoica encontra-se fundada no eudemonismo, a busca da felicidade; porém, a felicidade não consiste no prazer, mas no exercício constante da virtude, na própria autossuficiência que permite ao homem alhear-se dos bens extrínsecos.
            A ética estoica estendia a primazia do logos ao domínio da conduta humana. É uma filosofia da resignação e da aceitação, mas que luta contra uma atitude de demissão prática ou de irresponsabilidade moral, pretensamente justificadas pela fatalidade do destino: os estoicos atribuem um lugar especial à liberdade humana e ao juízo moral, através dos quais o Homem pode vir a cooperara com a ordem racional do mundo, a identificar-se mais plenamente com a sinfonia universal das causas – é, por isso, uma ética essencialmente racionalista, na linha de grande parte da ética grega.
            A sabedoria consiste no acordo com a natureza, prolongando-a e completando-a, encontrando nela a matriz da inspiração; o Homem é o ser no qual a racionalidade da natureza se revela e se reconhece e no qual o agir se adequa conscientemente a ela. «Viver em harmonia», «viver de acordo com a razão», «viver de acordo com a natureza» são princípios que possuem conteúdos idênticos.
            A virtude é o único bem que vale por si mesmo; a ação honesta possui em si mesma a sua recompensa, ela basta à felicidade; por oposição, o mal absoluto é o vício. A virtude consiste na perfeição da natureza individual, é duplamente disposição da natureza e também conhecimento. A principal tarefa ética consiste essencialmente numa disciplina fortalecida por meio da sabedoria ou pelo reto conhecimento, conduzindo o Homem a um recolhimento na contemplação do logos. O Homem nasce bom e é a sociedade que o torna mau. O pecado tem a sua origem fora do homem individual. Os estoicos distinguem dois tipos de homens: os sábios e os néscios.
 
ANTÓNIO Martins, «Epicuro» (texto adaptado)
 

Epicurismo

 
            Epicuro foi um filósofo grego (nascido em Samos, em 341 a.C. e falecido em Atenas, em 271 a.C.).
            Após uma breve passagem por Atenas e Cólofon, criou um círculo de amigos em Mitilene (ilha de Lesbos) e em Lâmpsaco. Terá sido neste círculo que amadureceram as ideias que caracterizam a sua filosofia.
            Segundo o Epicurismo (a escola de filosofia fundada por Epicuro), a felicidade do Homem reside no prazer, sendo que este reconhecimento do valor insubstituível do prazer é independente e anterior a qualquer processo de justificação racional. O prazer está intimamente ligado à perceção e define-se como a ausência da dor em alguém que vive conscientemente.
            O prazer só pode aumentar até ao momento em que a dor é completamente afastada. A partir daí não há possibilidade de progressão. Quem assim vive pode conquistar a verdadeira independência e, através dela, a ataraxia ou estado de confiança proporcionado pelo gozo do prazer e ausência de dor e de qualquer perturbação. De entre os sentimentos humanos defendia que se deveria cultivar em especial a amizade.
            Epicuro e os seus discípulos enfatizaram a necessidade de eliminar dois fatores que estavam na origem de muitas perturbações não corporais: o medo dos deuses e o medo da morte. Os deuses não interferem nem se interessam pelos destinos dos homens. De resto, a física iria ensinar as leis básicas das coisas e dos acontecimentos. O medo da morte é igualmente infundado, dado que a alma é constituída por átomos muito finos, que se dispersarão quando, na morte, o invólucro do corpo deixar de os manter unidos. Assim, deixará de haver sensações e, portanto, prazer ou dor. Deste modo, a morte não deve ser temida, até porque, em rigor, não é um estado de nós mesmos.
 
ANTÓNIO Martins, «Epicuro» (texto adaptado)
 

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

"Cada um cumpre o destino que lhe cumpre"

     Este poema é constituído por três quadras, correspondendo cada a uma parte do texto.
     Assim, na primeira estrofe, a primeira parte, o sujeito poético tece um conjunto de considerações gerais acerca do destino e da sua aceitação por parte do Homem. Desde logo, há que destacar a repetição da forma verbal "cumpre" (quatro vezes), com significados diferentes: por um lado, significa "completar", "executar" ("Cada um cumpre"); por outro, quer dizer "caber", "pertencer" ("o destino que lhe cumpre"). Igualmente repetida quatro vezes é a forma verbal "deseja". Da conjugação destas duas repetições resulta uma relação de oposição que domina esta parte do texto, concretamente entre a vontade do ser humano e aquilo que o destino lhe impõe. Deste modo, nos dois versos iniciais, o sujeito poético constata que "Cada um" cumpre somente o destino que lhe está reservado, não alcançando o que deseja nem desejando, afinal, o  destino que cumpre ou vive. Quer isto dizer que o ser humano não tem poder e liberdade de escolher o seu destino; pelo contrário, este é uma força superior que o oprime e decide por si, limitando-se ele a cumprir a vontade do Fado. O Homem é, portanto, um ser permanentemente insatisfeito e frustrado, visto que não vive o que deseja, não alcança a vida que pretende ou sonha, mas também não se satisfaz com o destino que lhe coube. Qual é a resposta a este estado de coisas? A resistência e consequente insatisfação e a frustração? Ou a aceitação voluntária do que lhe é imposto?

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

"O deus Pã não morreu"

            Antes de iniciar a análise propriamente dita do texto convém esclarecer quem são as entidades mitológicas nele referidas.
            Assim, era o deus dos pastores da região da Arcádia (região central do Peloponeso) e representava o poder e a fecundidade da natureza selvagem, com fortes implicações sexuais. Era representado com orelhas, chifres e pernas de bode. Além disso, como era amante da música, transportava consigo sempre uma flauta. Por sua vez, os Romanos identificaram-no como o deus itálico Fauno. Uma lenda conta que, no reinado do imperador romano Tibério (século I d. C.), o piloto de um navio ouviu uma voz que lhe ordenou que anunciasse a seguinte mensagem: «o Grande Pã está morto». Quando o marinheiro obedeceu, toda a natureza começou a gemer. Frequentemente, é associado à palavra grega “pan”, que significa “tudo”, uma associação errada, no entanto deu origem à ideia de que Pã simbolizava «o Grande Todo», ou seja, o poder universal da vida.
            Por seu turno, Apolo era o deus do sol e da música, irmão gémeo de Artemis, deusa da lua e da caça, filho de Zeus e da ninfa Leto. Por outro lado, Apolo amava a música, tendo sido presenteado com uma lira por parte de Hermes, feita a partir da carapaça de uma tartaruga e de tripas de gado.
            Quanto a Ceres, era, entre os romanos, a deusa das colheiras e do cereal, o equivalente a Deméter entre os gregos.

            O deus Pã simboliza o neoplatonismo para os neoplatónicos e para os cristãos, daí a sua «adoção» por parte de Ricardo Reis, em cuja filosofia existencial – a do paganismo da decadência ‑ se inscreve a ideia da sobrevivência dos deuses pagãos (“O deus Pã não morreu” – v. 1), bem como no programa do neopaganismo (de Fernando Pessoa ele mesmo e dos seus heterónimos Alberto Caeiro, Ricardo Reis e António Mora).
            O neopaganismo sustentava o reatar da alma grega na arte, na religião e nas instituições políticas, ao considerar que nada, depois dos gregos clássicos, pode igualar a sua civilização. Neste sentido, o cristianismo é visto como um retrocesso, um atraso civilizacional.
            Neste poema, Cristo é apresentado num plano de igualdade com os deuses pagãos referidos. Ele não “matou outros deuses”, é apenas “um deus a mais, / Talvez um que faltava”, o que indicia que é um deus dispensável, pois é “apenas mais um”. Assim, a noção do Cristianismo segundo a qual Cristo seria o único e verdadeiro deus é implicitamente rejeitada, afirmando-se, pelo contrário, que todos os deuses pagãos antigos permanecem. Cristo, de facto, “não matou outros deuses”, é apenas “ Quanto ao ser humano, falta-lhe reconhecer essa permanência dos deuses pagãos.
            A relação entre o ser humano e os deuses carateriza-se pela distância e pela indiferença, dado que estes estão “Cheios de eternidade / E desprezo por nós” (vv- 18 e 19).
            O perfil dos deuses é traçado com clareza: são “claros e calmos” (v. 17), eternos / imortais, regem o mundo (“Trazendo dia e a noite / E as colheitas douradas”), mas não por causa dos seres humanos (“Sem ser para nos dar / O dia e a noite e o trigo”, antes por razões que não estão ao alcance da compreensão humana e alheias à sua vontade (“por outro e divino / Propósito casual” – vv. 24-25).

sábado, 24 de novembro de 2012

"Cada um cumpre o destino que lhe coube"

            Esta ode refere-se a um tema central da poesia de Ricardo Reis: o Destino.
            De acordo com os dois versos iniciais do poema, cada ser humano cumpre um destino (“cumpre o destino”) que lhe está de antemão reservado (“que lhe cumpre”). O ser humano não cumpre o que deseja, isto é, não alcança o que deseja, nem deseja o que cumpre, visto que é o Destino que decide por ele, que se limita a cumprir a sua (do Destino) vontade. Atente-se no jogo de palavras em torno do vocábulo homónimo “cumpre”. A primeira forma verbal tem o significado de “executar”, “desempenhar”, “completar”, enquanto a segunda significa “caber”, “pertencer”.
            Nos versos 3 e 4, há a destacar a presença do quiasmo, que destaca o facto de o destino que o ser humano “cumpre” nem sempre ser o que ambiciona, daí resultando uma natural insatisfação. O «eu» defende, pois, a inerte aceitação do Destino, dado que nada podemos contra ele – o que devemos fazer é aceitar as leias da vida em vez de tentar modifica-la.
            Por sua vez, a comparação dos versos 5 e 6 entre o ser humano e “as pedras na orla dos canteiros” acentua a imobilidade e a impossibilidade de resistir e contrariar o destino. Essa comparação é explicada (“que” – conjunção subordinativa causal) nos dois versos seguintes: a “Sorte” / o Destino coloca onde quer ou onde deve cada um de nós, sem que haja (tal como sucede com as pedras) a possibilidade de mudar de posição.
            Nos últimos quatro versos, o sujeito poético evidencia a sua resignação ao aceitar o poder do Destino. Assim, cada ser humano deve desistir de ter “melhor conhecimento” do que lhe calhou em sorte na vida e deve limitar-se a consentir o que lhe coube. A procura de desejos frívolos é encarada como a principal barreira para se poder atingir o conhecimento: “Não tenhamos melhor conhecimento / Do que nos coube que de que nos coube”.
            Os dois versos finais (duas frases declarativas) confirmam a abdicação do sujeito poético e a sua anuência voluntária ao Destino, pois este é inexorável, na permite e é impossível resistir-lhe.

            Note-se como, ao longo do poema, a pessoa verbal evolui da terceira do singular (“cumpre”) para a primeira do plural, a partir do verso 6, um «nós» que reflete sobre o destino comum e a condição análoga de todos os humanos sujeitos à ditadura do Destino.

            O sujeito poético defende, em suma, uma filosofia de vida que assenta na aceitação voluntária e tranquila do Destino, sem o tentar combater ou fugir-lhe, pois todos esses esforços serão inúteis. Deste modo, o «eu» revela o seu conformismo face ao Destino, numa atitude estoica de nada desejar e de aceitar com dignidade o que lhe é imposto. De facto, de acordo com o Estoicismo, o homem não deve lutar contra o Destino, antes cumpri-lo sem o questionar ou se lhe opor.
            A conceção de vida segundo Reis é marcada por uma profunda simplicidade, por uma intensa serenidade na aceitação da relatividade das coisas.
            Contrariamente a Alberto Caeiro, Ricardo Reis, prosseguindo na esteira do Estoicismo, “prefere” a prevalência da cognição face às emoções.
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