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sábado, 27 de agosto de 2022

Conto «Asclépio, o "Caçador de Eclipses"», de Pedro Teixeira Neves

        Asclépio Euclides, especialista em eclipses, lunares e solares, embora graduado com distinção nestes últimos, tentava acalmar a sua audiência quanto aos efeitos nefastos do fenómeno solar que se previa para os dias seguintes, um eclipse solar a oitenta por cento! “Poderão, de qualquer modo, e se assim o entenderem – isto é, se o medo for muito… –, ir rezar umas ave-marias e uns pai-nossos para a igreja. O Padre Santinho por certo vos acolherá dizendo que ‘a luz de Deus, essa, jamais se apagará aos fiéis!’”. E sorriu, tirando os óculos ao mesmo tempo que passava a palavra à sua colega de bancada, a Dr.ª Letícia Catarata. Que usou da dita nestes termos: “O Doutor Euclides brinca. Nada receiem. Uma certeza, porém! Não deverão jamais olhar diretamente para p Sol. Os eclipses são fenómenos perfeitamente naturais e não só nunca fizeram mal a ninguém como nunca farão.” Certo, muito certo, mas a Dr.ª Catarata enganava-se. Tão rotundamente como a note que daí a três dias, em pleno meio-dia, engoliria a quase totalidade da luz solar. Estava-se em 1968, o país tratava-se de razões com o segundo grande eclipse solar do século e o professor Asclépio Euclides, malgrado toda a sua experiência na matéria, que inclusive lhe valera o cognome de “caçador de eclipses”, teria ainda muito com que se espantar.
Pio, como desde petiz era conhecido entre familiares e amigos, começou a interessar-se por acontecimentos raros, fenómenos científicos e afins, teria aí os seus cinco, seis anos. Com os pais e as suas sete irmãs, vivia nesses tempos do princípio do século em Moçambique, próximo da exuberante Foz do Rovuma. O Doutor Lupino, tio de Asclépio, morava também, havia meia-dúzia de anos, com a prestigiada família Euclides Semedo e fora ele o “culpado” da verdadeira paixão do sobrinho pelas “coisas da ciência”, como às apetências da criança sempre se referia, em conversas com amigos, o pai do pequeno Pio, Thomás Euclides Semedo, desse modo como que dizendo esperar que fossem aquilo apenas “manias da idade”. Que não eram, como se verá.
O tio Lupino servira em Lourenço Marques durante largos anos, mas depois de uma aparatosa operação de salvamento em que se tinha envolvido, a um corneteiro da rainha que caíra às revoltas águas de um rio, Lupino, batendo com a cabeça num tronco de +arvore, passara a sofrer de uma progressiva “falta de memória”, como vaticinaram diplomaticamente os dois médicos chamados a opinar sobre o caso. Acontecera isso em 1902 e logo delicadamente foi Lupino convencido, ou, melhor, convidado a antecipar a reforma da sua valorosa carreira militar. Não lhe fizeram a coisa sem mais nem menos, pois sempre se tratava de um Comandante. Para que não fizesse muitas ondas, lavraram-lhe então um louvor em que se elencavam todos os seus feitos em cumprimentos de missão, documento esse que a própria Rainha se encarregou de assinar. Nos seguintes termos constava e o mesmo Lupino, aos olhos de quantos visitavam a fazenda Semedo, fazia questão de dar a conhecer:
 

“Louvor ao Comandante Euclides Semedo,

 
Em virtude de: 1.º No decorrer da expedição aos Grandes Lagos, em 1879, ter salvo a golpe de espada, e com risco da própria vida, um seu subordinado que se vira atacado por um feroz leão; 2.º Aquando da expedição a Inhambane, em 1893, ter providenciado e comandado de forma pronta e célere o combate às chamas que haviam deflagrado no acampamento do corpo expedicionário; 3.º Ter participado, em 1895, com brio e valentia insuperáveis, nas campanhas de pacificação de Moçambique comandadas pelo excelentíssimo Capitão Mouzinho de Albuquerque; 4.º Ter, em 1902, e enquanto Comandante da Coluna do Barué, em operações por Manica, ajudado ao salvamento do corneteiro da Rainha n.º 6/199 da segunda companhia que por accidente cahiu ao rio Inhamucarara; ter ainda participado nas seguintes ações: Combate de Xoarira, Ataque e tomada da Denga de Ranguand, Escaramuça ao norte do monte Nhangara, Recontro de Bexinga, todos estes atos em 1902.
Por, em todas estas ocasiões, ter dado bastas provas da sua louvável filantropia, recomenda o Excelentíssimo General Seraphim Ferreira Júnior que individualmente se louve o Comandante Lupino Euclides Semedo.
 
Lourenço Marques, 25 d’agosto de 1902
 
o General Seraphim F. Júnior
a Rainha
(assinaturas irreconhecíveis)”
 
Solteirão dos quatro costados, o Comandante Lupino decidiu-se, pois, em virtude do acidente acima descrito, a ir morar com o irmão, à data Governador-Geral de Colónia, posto cimeiro na hierarquia da administração colonial em Moçambique. E era um pequeno génio o homem que desde então passou a fazer companhia ao jovem Asclépio – filho nunca tido embora sempre desejado –, povoando-lhe a infância de descobertas e sensações que jamais esqueceria. Enquanto as sete manas se entretinham com a mãe e duas precetoras a aprender as graças e predicados de boas fadas do lar, e, nos intervalos da culinária e dos lavabos, a dedilhar intermináveis escalas no velho piano de cauda, Asclépio, ou Pio, embrenhava-se com Lupino pelas matas circundantes à casa da fazenda em autênticas expedições científicas ao melhor estilo de um Serpa Pinto, que não muito antes se embrenhara com sucesso pelos intestinos africanos, aventurando-se por terras e horizontes onde até então só bicharada existia – pelo menos na imaginação e conhecimento dos ocidentais, cujos mapas da época, de resto, isso mesmo comprovavam apresentando ferozes e coloridos animais no interior do Continente Negro; foi assim até finais do século XIX. Mas juntos, dizia-se, como se duas crianças, que um era, o outro já nem por isso, sobrinho e tio demoravam-se horas após horas, tardes após tardes, dias após dias, meses e anos por fim, inventariando fauna e flora que lhes aparecessem pela frente. E não era tão pouca quanto isso! No velho barracão por detrás das cavalariças, entretinham-se depois de cada investida prospetiva, até que os chamassem para o jantar, a catalogar os espécimes apanhados, constituindo aquilo que na família já se dizia ser um “Museu de História Natural”. Na verdade, não seria muito mais do que um interesse gabinete de curiosidades. Mas foram anos passados naquela vida, investidos em verdadeiros cientistas, biólogos, botânicos, geógrafos, geólogos e até astrónomos, num crescendo de aprendizagem “in loco” que teve um dos seus pontos altos no ano de 1919, quando se deu o primeiro eclipse total do Sol em terras de Moçambique.
 O fenómeno dos eclipses foi, na realidade, de tudo quanto lhe aguçou a curiosidade do tio Lupino, o que mais entusiasmou o pequeno Asclépio. E quantas noites não demorou ele a adormecer esforçando-se por compreender, como vira nas páginas de um magnífico livro ilustrado inglês, tamanho mistério da natureza. E assistir a um desses milagres d ao vivo!? Não seria fantástico!? – Mas quando, Tio Lupino, quando?, perguntava-lhe amiúde todo ansiedade. Na verdade, de por via da raridade de tais acontecimentos, o jovem Pio só aos dezanove anos pôde pela primeira vez testemunhar um eclipse solar, e logo um eclipse total! Foi isso a 29 de maio de 1919, dia em que na generalidade do território moçambicano, mas com especial incidência ou privilégio de primeira plateia para as populações da Foz do Rovuma, todos os olhos, muito brancos e arregalados, se voltaram desprevenidos e temerosos para o Astro-Rei. Reza a história – e muito rezou o padre local, o pároco Maciel Vinhas, para que as populações se acalmassem e a vida voltasse à normalidade! – que foi naquelas terras um desatino de primeira grandeza. Uma coisa assim nunca vista, com gentes de todas as idades disparando para debaixo de tudo quanto fosse sítio ou toca, gritando ais e ajudas, socorros e clemências aos mais dignos e mesmo aos mais indignos deuses que se conheciam ou conheceram por tais bandas. Para que se tenha uma ideia do pandemónio que três minutos de Sol encoberto criaram, diga-se tão-só que nunca como naquele santo dia o Padre Maciel vira a sua igreja tão cheia de ovelhas – claro está que para ele era um regalo! De plantão, nas semanas seguintes, ficaram igualmente, e como se compreende, todos os curas, curandeiros, adivinhos e sibilas da terra. Kalunga, Deus do Mar, foi um dos mais requisitados, e entre feitiços, idolatrizações, amuletos e talismãs, havia para todos os gostos. Ao invés, contentes da vida e alheios a toda esta parafernália de medos e crendices, na sua fazenda, em posto de observação eleito, Lupino e Pio deslumbravam-se com o fenómeno.
Foi esse dia o espoletar de uma paixão arrebatadora em Asclépio. Embrenhou-se nos manuais, cresceu a pedir ao Tio Lupino que mandasse vir da Metrópole e do estrangeiro literatura sobre o assunto, e quando chegou à idade universitária, já em Coimbra, perdeu-se em bibliotecas estudando tudo o que alguma vez fora estudado e posto em papel sobre Eclipses. A coisa foi a tal ponto que Asclépio só aguentou os grossos volumes e legislações de Direito em que o pai insistira que cursasse. As ciências eram o seu futuro. E foram, tendo Asclépio vindo a formar-se em Ciências Astronómicas com vinte valores, especializando-se e discutindo teses versando os eclipses solares. Terminado o curso, o então já Doutor Asclépio percorreu o mundo numa verdadeira caçada aos eclipses, desse modo aprofundando os seus conhecimentos. Um dia, em entrevista a um programa de rádio, chegou a confidenciar ter perdido a conta ao número de eclipses testemunhados – o entrevistador, um radiofonista de nome Igrejas qualquer coisa, espantou-se numa voz de tom afetado e ondulante, perguntando depois pela “querida mãezinha do Doutor Asclépio”.
Em Moçambique, onde regressava regularmente, passou a ser conhecido como “o caçador de eclipses”. Era um homem querido pelas populações, um homem da terra cuja bonomia e ciência cativavam o mais relutante espírito, e que por isso mesmo, no ano de 1968, por via da aproximação do segundo eclipse solar no território, convidado a fazer um esclarecimento geral sobre eclipses, congregou em palestra um vasto auditório de negros e brancos. Um facto de monta, tanto mais que nessa altura o povo moçambicano, a exemplo das demais colónias portuguesas, encontrava-se em guerra contra a Metrópole num processo de conquista e independência então ao rubro. “Nada temam”, disse a Dr.ª Letícia Catarata secundando as palavras e a boa disposição do Professor Asclépio Euclides. As pessoas saíram confiantes, gargalhando os medos e os temores. Três dias depois se veria, afinal, o que era aquilo de um eclipse total, ou quase, e que efeitos na realidade teria.
No dia do eclipse, a calma, na medida do possível, reinava em Lourenço Marques. Na praça central da cidade, com as esplanadas cheias e todas as janelas abertas em sentinela para o céu, Asclépio encontrava-se rodeado de pessoas que, sabe-se lá por que razão, talvez pelo currículo do professor, junto dele mais seguras se sentiam. Aguardavam expectantes, e quando o Sol começou a vestir-se de negro uma onda de suspiros ressoou no silêncio instalado. E foram três minutos de bocas abertas e olhos apontados às alturas numa tal concentração que ninguém reparou que ali mesmo, pés bem assentes no chão, um outro fenómeno decorria. Foi um grito estridente da Dr.ª Catarata, seguido de desmaio, que deu o alerta: “Professooooooooor!!!” Meteu medo! Então, clareando de novo o dia, puderam todos aperceber-se do sucedido, fenómeno esse, sim, digno do maior espanto e respeito. Ali, no meio da praça, o próprio Professor Asclépio começando por ver-se assolado, dos pés para a cabeça, por uma densa sombra negra, acabou, primeiro por ficar negro como um tição, e logo depois, num estalar de dedos, por desaparecer como se por magia. Esfumando-se, nem mais nem menos. Um “Ahhhhhhhhhh” de espanto ainda maior que o antecedente varreu a praça. Claro está, foi de novo um corrupio a lembrar o de 1919 e, como setenta e duas horas antes vaticinara no seu discurso o Doutor Asclépio, mesmo se brincando, o Padre Santinho não teve mãos a medir.
Com o tempo o povo e as autoridades aceitaram o sucedido. Explicações, houve quem as tentasse, mas sem sucesso. A Dr.ª Catarata, coitada, acabou os seus dias num hospital psiquiátrico e os políticos logo, logo aproveitaram para encomendar mais uma estatuazita. Sempre daria para mais uma tesourada e alguns aplausos que devidamente contabilizados poderiam ajudar nas eleições. A coisa fez-se, sob assinatura de um escultor da terra que de forma curiosa e interessante trabalhou a sua homenagem ao extinto ou eclipsado Professor Asclépio. No sítio exato onde se esvanecera surgiu, passados alguns meses, uma estátua negra, de formas arredondadas, que tinha a particularidade de à luz do Sol escurecer e à noite, como se por magia, emanar uma estranha luz. A conselho do velho Tio Lupino, que já passara os cem anos, podia ler-se, em epitáfio, lembrando famosa sentença de Hermes: “Grande milagre, ó Asclépio, é o homem”.
 
Pedro Teixeira Neves, “Asclépio, o ‘Caçador de Eclipses’”, in Mealibra


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    👉 Questionário.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Conto "Corpos incompletos", de Mário de Carvalho


     Restaurada de fresco, a estátua do marechal Saldanha, na praça do mesmo nome, começou logo a sentir melhorias de vista. Distinguia pormenores muito afastados e considerou que tinha valido a pena aquela maçadoria de tapumes, andaimes, lixívias, abrasivos, químicos fedorentos. Um arrumador de automóveis recolhia uma moeda ao pé do centro comercial e, cá de longe, a estátua lia perfeitamente: "República Portuguesa, Cem Escudos".
    Nesse estado de deslumbramento, interessou-se por um jovem que dentro de um autocarro lia um livro. Eram contos do catalão Pere Calders, sobre personagens que habitavam as próprias estátuas e à noite saíam para arejar. O engarrafamento foi tão demorado que deu para a réplica do marechal ler o texto completo, ler e indignar-se. Era como se as estátuas fossem invólucro ou repositório e não tivessem de próprio nem vontade nem alma. E deliberou manifestar-se.
    Como toda a gente sabe, as estátuas de Lisboa comunicam facilmente umas com as outras. Um não sei que fluido, transportado em bicos de pássaros, em rumorejo de folhas, em volutas de metano, em brisas atlânticas, mantém entre elas uma conversação satisfatória. O Adamastor, ali a Santa Catarina, não tardou, e resmungava: "lá está o Saldanha com as dele" e o leão do Marquês emitiu um subtil rugido. O cavalo de D. José piscou mais uma víbora e o monarca, frívolo como era, sorriu-lhe a ideia do movimento. Mas todas as estátuas de Lisboa aguardaram a pronúncia sábia e feroz do rei fundador, muito hirto, lá nas alturas do castelo. D. Afonso Henriques sopesou os inconvenientes de acartar com o peso de escudo, espada e malha de ferro. Mas lembrou-se, ao fim dumas horas, de que era um rei enérgico. E proferiu: "Sus, sus!" Era o que todas as estátuas queriam ouvir, para abandonar os pedestais. A noite já ia adiantada.
    "Meu chefe, meu chefe!". O jovem soldado da GNR, Malaquias de Sousa, entrava esbaforido no gabinete do superior, na casa da guarda da Assembleia da República. O sargento, e outros, não correram, voaram para ver. Todo aquele largo era um mar de estátuas paradas fitando o edifício, algumas em pose ameaçadora. A espada de Saldanha muito nervosa parecia pronta a trucidar. A Maria da Fonte sorria, sinistra, de pistolas ao léu. E as figuras da guerra peninsular arrastavam um canhão basto suspeito. O pior é que os dois leões das escadarias andavam por ali à solta e deitavam olhares rancorosos para o leão do Marquês de Pombal. "Passe aí o telemóvel", ordenou o sargento em voz trémula. Era uma situação que exigia consulta aos superiores.
    Ainda Eça de Queirós, na cauda da manifestação, tagarelava com Camilo Castelo Branco, na presença da Nudez Forte da Verdade, quando um frémito percorreu o arvoredo da Estefânia. Não chegou a turbilhão, mas foi suficientemente sensível para que um sujeito que comia um bife na Portugália exclamasse: "Ena, pá!" O busto de Cesário Verde convocava o de Guerra Junqueiro e desafiava-o para um desfile. E de busto em busto se transmitiu que não era justo que as estátuas em corpo inteiro se manifestassem e que os bustos se ficassem. Afinal, se nos bustos havia um corpo incompleto, a verdade é que exibiam "mais concentração do espírito". A frase foi do busto de um poeta, mas não me parece que tenha sido Junqueiro ou Verde. E, alinhados na Alameda de D. Afonso Henriques, os bustos de Lisboa vieram todos avenida abaixo, aos saltinhos, muito alegretes. Aquilo ressoava alto, e houve moradores que telefonaram para a polícia a protestar. Alguns agentes ainda estão hoje a consultar legislação e regulamentos camarários. Mas é duvidoso que encontrem qualquer disposição legal que proíba um busto ou uma estátua de circular pela cidade por seu próprio pé, base ou coto.
    A notícia chegou a altas instâncias e ao governo. O ministro competente, farto de chamadas, ia dizendo: "deixem lá, isso passa!". E tinha razão. As estátuas cansaram-se de estar para ali, a olhar. Nem sequer chegou a haver bulha de leões porque o Marquês deitou-lhes cá um olhar que eles sentaram-se logo, muito domésticos.
    Quando os bustos, rua de S. Bento afora, chegaram à Assembleia da República, numa revoada de clipocloques, as estátuas decidiram retirar-se, com dignidade. Não queriam aquela companhia, nada de misturas. Os bustos, desacompanhados, deram umas voltas, provocaram os leões com assobiadelas e voltaram para os seus pedestais. A manhã foi encontrar estátuas e bustos voltados para o lado oposto ao do costume. Não se tratou de combinação prévia. Foi uma convergência objetiva.
    Houve em Lisboa quem se interessasse pelo assunto. A própria comunicação social chegou a ter informação e preparou-se para noticiar: "Insegurança: vandalismo generalizado desloca monumentos". No entanto, nessa noite, um jogador de bola agrediu a própria mãe, ceguinha, e mobilizou as parangonas.
    Quando, um mês depois, estátuas e bustos se preparavam nova manifestação foram surpreendidos por uma diretiva comunitária proposta por Portugal e aceite por unanimidade. Todos os bustos de estátuas da Europa passaram a ser obrigatoriamente amarrados com cabos de aço.
    A alguns formadores de opinião a medida pareceu pateta e, sobre isso, dispendiosa. Mas talvez tivesse valido a pena, pelos desassossegos que se pouparam.

In Mealibra

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Conto "As mãos dos pretos"


     Já não sei a que propósito é que isso vinha, mas o Senhor Professor disse um dia que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o resto do corpo. Lembrei-me disso quando Senhor Padre, depois de dizer na catequese que nós não prestávamos mesmo para nada e que até os pretos eram melhores do que nós, voltou a falar nisso de as mãos deles serem mais claras, dizendo que isso era assim porque eles, às escondidas, andavam sempre de mãos postas, a rezar.
    Eu achei um piadão tal a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que agora é ver-me a não largar sejam quem for enquanto não me disser por que é que eles têm as palmas das mãos assim mais claras. A Dona Dores, por exemplo, disse-me que Deus fez-lhes as mãos assim mais claras para não sujarem a comida que fazem para os seus patrões ou qualquer outra coisa que lhes mandem fazem e que não deva ficar senão limpa.
    O Senhor Antunes da Coca-Cola, que só aparece na vila de vez em quando, quando as coca-colas das cantinas já tenham sido todas vendidas, disse que tudo o que me tinham contado era aldrabice. Claro que não sei se realmente era, mas ele garantiu-me que era. Depois de eu lhe dizer que sim, que era aldrabice, ele contou então o que sabia desta coisa das mãos dos pretos. Assim:
    "Antigamente, há muitos anos, Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria, São Pedro, muitos outros santos, todos os anjos que nessa altura estavam no céu e algumas pessoas que tinham morrido e ido para o céu, fizeram uma reunião e resolveram fazer pretos. Sabes como? Pegaram em barro, enfiaram-no em moldes usados e para cozer o barro das criaturas levaram-nas para os fornos celestes; como tinham pressa e não houvesse lugar nenhum, ao pé do brasido, penduraram-nas nas chaminés. Fumo, fumo, fumo e aí os tens escurinhos como carvões. E tu agora queres saber por que é que as mãos deles ficaram brancas? Pois então se eles tiveram de se agarrar enquanto o barro deles cozia?!".
    Depois de contar isto o Senhor Antunes e os outros Senhores que estavam à minha volta desataram a rir, todos satisfeitos.
    Nesse mesmo dia, o Senhor Frias chamou-me, depois de o Senhor Antunes se ter ido embora, e disse-me que tudo o que eu tinha estado para ali a ouvir de boca aberta era uma grandessíssima peta. Coisa certa e certinha sobre isso das mãos dos pretos era o que ele sabia: que Deus acabava de fazer os homens e mandava-os tomar banho num lago do céu. Depois do banho as pessoas estavam branquinhas. Os pretos, como foram feitos de madrugada e a essa hora a água do lago estivesse  muito fria, só tinham molhado as palmas das mãos e as plantas dos pés, antes de se vestirem e virem para o mundo.
    Mas eu li num livro, que por acaso falava nisso, que os pretos têm as mãos assim mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Virgínia e de mais não sei aonde. Já se vê que a Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para ela é só por as mãos deles desbotarem à força de tão lavadas.
    Bem, eu não sei o que vá pensar disso tudo, mas a verdade é que ainda que calosas e gretadas, as mãos dum preto são sempre mais claras que todo o resto dele. Essa é que é essa!
    A minha mãe é a única que deve ter razão sobre essa questão de as mãos de um preto serem mais claras do que o resto do corpo. No dia em que falámos nisso, eu e ela, estava-lhe eu ainda a contar o que já sabia dessa questão e ela já estava farta de se rir. O que achei esquisito foi que ela não me dissesse logo o que pensava disso tudo, quando eu quiser saber, e só tivesse respondido depois de se fartar de ver que eu não me cansava de insistir sobre a coisa, e mesmo assim a chorar, agarrada à barriga como quem não pode mais de tanto rir. O que ela fosse foi mais ou menos isto:
    "Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho, Ele pensou que realmente tinha de os haver... Depois arrependeu-se de os ter feito porque os outros homens se riam deles e levavam-nos para as casas deles para os pôr a servir como escravos ou pouco mais. Mas como Ele já os não pudesse fazer ficar todos brancos porque os que já se tinham habituado a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles ficassem exatamente como as palmas das mãos dos outros homens. E sabes por que é que foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem é apenas obra dos homens... Que o que os homens fazem é feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juízo sabem que antes de serem qualquer coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão graças a Deus por não serem pretos".
    Depois de dizer isso tudo, a minha mãe beijou-me as mãos.
    Quando fugi para o quintal, para jogar à bola, ia a pensar que nunca tinha visto uma pessoa a chorar tanto sem que ninguém lhe tivesse batido.

in Nós Matámos o Cão Tinhoso

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sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

'A Literatura'

     «Não sei se já repararam nisso mas quando lemos - estou a falar para a ínfima minoria de espectadores que além de virem ao teatro ainda lêem... 2 ou 3 pessoas, hoje -, bom, mas quando lemos livros estrangeiros, raramente nos detemos nos nomes. Eu pelo menos faço isso. Mas eu tenho um desconto, que ainda por cima venho todos os dias ao teatro. É que um personagem dum romance russo, por exemplo, pode chamar-se Ievguénhi Ponomarev Tsugorski! E então estamos nós a ler: «O cavalo corria louco pela estepe, mas, de repente, estacou tão abruptamente que I-e-v-g aaa... Pino... Poni... Pinto... bom, Tsa... Tsu... chiça! foi cuspido violentamente e esmagou o crânio instantaneamente. Mas o bravo amigo... japonês... Os-ss-u-ga-ro- I-o-mi-akei, ok, Iomiakei Kawa-ka-ta-mi - fo-go! -, deitando-se sobre o corcel, consegue ainda apanhar o valioso documento que I... I-e-v-g-u pffff Pinto Tsar transportava tão ciosamente.. Osss.... u Io, io, io! Kawa... saki! Lançou-se a toda a brida.» Uff! «Mas o cruel mongol que os perseguia aproximava-se cada vez mais. Com efeito, Li-ao Tse Xi-ong» - e este é fácil! Eu já estou a simpatizar com o mau da fita... - «Liao Tse Xiong tinha prometido ao condutor de riquexó Sun Wang Ião (...) não só resgatar o valioso documento que tinha viajado pelo Japão e chegado à Sibéria trinta e seis anos depois» isto é fácil porque não está em numeração romana... «não só resgatar o trararara como também aniquilar... I-ev-g... Ivo Pinto Tsu e o nipónico Osso Io Kawasaki.»
     Eu compreendo que se leia cada vez menos. Literatura estrangeira, pelo menos... para mim tem o problema dos nomes.»
José Pedro Gomes, O País dos Jeitosos 

domingo, 28 de outubro de 2012

O Sentido dos Heterónimos

     "Custa-me imaginar que alguém possa um dia falar melhor de Fernando Pessoa que ele mesmo. Pela simples razão de que foi Pessoa quem descobriu o modo de falar de si tomando-se sempre por um outro. Quando encarnada em figuras que parecem vivas - e ele supunha mais vivas do que ele - essa descoberta de si como outro, convertida em jogo da sua verdade, chamou-se Heteronímia.
     O «mito-Pessoa», tanto em si como no seu estatuto poético de amplitude hoje universal, repousa essencialmente na encenação prodigiosa a que Pessoa submeteu o seu radical sentimento de inexistência. O célebre «drama-em-gente», a invenção dos Pessoa-outros destinados a cumprir pelo único que havia os sonhos de felicidade ou grandeza imaginárias que só de os pensar o destruíam, é o último ato do longo processo de dissolução do Eu inaugurado pelo Romantismo.
     A poesia de Caeiro, Reis e Campos não precisa de outro «sujeito» que o da voz «anónima», anónima como nenhuma outra da nossa tradição - por isso nos tocou tanto - que nele se fala e nos fala, tornando-nos imaginariamente felizes em Caeiro, indiferentes à felicidade ou infelicidade em Reis e impossivelmente felizes em Campos. A criação dos heterónimos é só ficção de interlúdio, maneira para Fernando Pessoa ter sido, num breve momento, futurista com Álvaro de Campos, romano e invulnerável à angústia com Ricardo Reis e divinamente grego, alegre ou triste como a natureza, com Alberto Caeiro. Tudo isto, para nos dizer, como ninguém o dissera antes, que Deus, o deus da nossa alma e da nossa cultura milenarmente cristãs, estava morto e, com ele, as crenças, os valores, as ilusões, a moral, a política de que era a suprema e materna sigla. Mas o que Pessoa compreendeu, antecipando-se a deduções futuras e óbvias, foi que essa morte de Deus era, ao mesmo tempo, morte do Homem, fim da ilusão humanista que imaginava ainda poder justificar, na perspetiva de uma ausência de Sentido transcendente para o universo e a História, os mesmos valores, as mesmas ilusões consoladoras, a mesma moral tranqulizante.
     Caeiro, Campos, Reis, não são mais que sonhos diversos, maneiras diferentes de fingir que é possível descobrir um sentido para a nossa existência, saber quem somos, imaginar que conhecemos o caminho e adivinhamos o destino que vida e História nos fabricam. Ter sonhado esses sonhos não libertou Pessoa da sua solidão e da sua tristeza. Mas ajudou-nos a perceber que somos, como ele, puros mutantes, descolando para formas inéditas de vida, para viagens ainda sem itinerários. Com Caeiro fingimos que somos eternos, com Campos regressamos dos impossíveis sonhos imperiais para a aventura labiríntica do quotidiano moderno, com Reis encolhemos os ombros diante do Destino, compreendemos que o Fado não é uma canção triste mas a Tristeza feita verbo."

Eduardo Lourenço, Fernando, Rei da nossa Baviera

A heteronímia

     "A palavra heterónimo deriva do grego e significa «outro nome». Pessoa usou este neologismo, o qual se distingue da palavra pseudónimo, pois esta é entendida como um nome suposto que substitui o nome próprio do autor, sem que isso altere a sua personalidade literária.
     O caso de Pessoa ganha um sentido muito especial, porque a heteronímia afeta o sentido mesmo da sua obra considerada na sua globalidade. Tendo em vista Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis, Pessoa procura ser «esses outros», que se constituem «não eus sintetizados num eu-postiço». Daí o ter considerado essas personagens autorais - para as quais elaborou biografias que, curiosamente, não fez em relação a si próprio - como sendo «minhamente alheias».
     O recurso aos heterónimos consiste, pois, numa passagem da expressão pessoal, isto é, de uma personalidade que seria a do autor, para uma personificação estética que é já a do texto ou da escrita. É com este sentido que Pessoa utilizou aquela expressão, de modo que a rotação que se faz da personalidade propriamente dita para a personificação estética implica múltiplas questões que foram abordadas pelo poeta ou estão implícitas em tal noção: o papel desempenhado pelo autor, a sinceridade ou autenticidade, o fingimento (expressão que se torna central na sua poética e que o início de um poema seu consagrou: «o poeta é um fingidor»), o caráter dramático da poesia, a redução da subjetividade, etc.
     Pessoa afirma, referindo-se aos heterónimos: «Não há que buscar em quaisquer deles ideias ou sentimentos meus, pois muitos deles exprimem ideias que não aceito, sentimentos que nunca tive. Há simplesmente que os ler como estão, que é aliás como se deve ler.». Passa-se, numa afirmação como esta, do plano da escrita poética para o da leitura, havendo nesta uma circularidade que a vai fixar, finalmente, na própria realidade textual; ler os heterónimos «como estão» circunscreve a sua realidade à do texto que, por sua vez, lhes confere a realidade que é a da própria escrita."

Fernando Guimarães, «Heteronímia - Poética»,
in Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Poetas-paranoicos

     Alguns rapazes, com muita mocidade e muito bom humor, publicaram, há dias, uma revista literária em Lisboa. Essa revista tinha apenas de notável a extravagância e a incoerência de algumas, senão de todas as suas composições. Como a recebeu a imprensa diária? Com o silêncio que merecia? Com as duas linhas indulgentes e discretas que é de uso consagrar às singularidades literárias de todos os moços? Não. A imprensa recebeu essa revista com artigos de duas colunas, - na primeira página. A imprensa fez a essa revista um tão extraordinário reclame, que a primeira edição esgotou-se e já se está a imprimir a segunda. Ora semelhante atitude está longe de ser inofensiva ou indiferente. Em primeiro lugar, consagra uma injustiça fundamental; em segundo lugar, favorece e prepara uma seleção invertida. Eu bem sei que o reclame a certas obras é às vezes feito à custa da veemente suspeita de alienação mental que pesa sobre os seus autores. Mas n'este caso, como em outros muitos, é justo confessar que os loucos não são precisamente os poetas, mais ou menos extravagantes, que querem ser lidos, discutidos e comprados; quem não tem juízo, é quem os lê, quem os discute e e quem os compra.


Dantas, Júlio, "Poetas-paranoicos", in Ilustração Portuguesa

"Orpheu" e o Primeiro Modernismo

     O primeiro número de Orpheu, publicado em fins de março de 1915, foi largamente noticiado na imprensa, servindo de saboroso tema aos humoristas e sendo alvo das troças do senso comum. "Maluqueira literária", "Os poetas do Orpheu e os alienistas" e "Orpheu dos Infernos" eram títulos que encabeçavam os artigos - dezenas delas - publicados na capital e na província. "Somos o assunto do dia em Lisboa", escreveu Pessoa ao amigo e colaborador Cortes-Rodrigues, então nos Açores, donde era originário. "O escândalo é enorme. Somos apontados na rua, e toda a gente - mesmo extraliterária - fala no Orpheu." Deste modo, a revista, comprada para ler ou para escarnecer, esgotou a sua tiragem de 450 exemplares.
     O segundo número saiu três meses depois, de acordo com o plano editorial anunciado, agora com Pessoa e Sá-Carneiro como codiretores. Não houve uma cisão entre ele e Montalvão, que colaborou no novo número com um poema, Narciso, dedicado a Pessoa, mas queriam garantir a orientação "intersecionista" da revista tão longamente planeada. A tiragem subiu para 600 e esgotou de novo, pois a imprensa voltou a destacar, chistosamente, os doidos "paúlicos", que facilitaram o trabalho aos jornalistas fornecendo-lhes provas da sua maluquice literária e até extraliterária. Com efeito, o número dois abria com poemas inéditos de Ângelo de Lima (1872 - 1921), então internado em Rilhafoles, onde viria a morrer seis anos mais tarde. (...)
     O Orpheu 2, à semelhança do número de estreia, contou com uma colaboração brasileira, de outro amigo de Montalvor. Em vez de uma ilustração na capa (a do primeiro número tinha um desenho de José Pacheco), optaram por inserir quatro hors-textes com "trabalhos futuristas" de Santa-Rita. Entre os restantes colaboradores do Orpheu incluíam-se, no primeiro número, Alfredo Guimarães e Almada Negreiros e, nos dois números, Cortes-Rodrigues e Sá-Carneiro. Mais de um terço de cada número era preenchido por obras - obras-primas, aliás - de Pessoa: O marinheiro, os seis poemas "intersecionistas" da Chuva Oblíqua, Opiário, Ode Triunfal e Ode Marítima. As três últimas foram assinadas por Álvaro de Campos, o heterónimo mais exuberante de Pessoa e o primeiro a ser revelado publicamente.
     (...)
     Pessoa, entretanto, procurava levar o projeto de Orpheu por diante. Em setembro de 1916, anuncia numa carta a Cortes-Rodrigues que Orpheu 3 "deve sair por fins do mês presente", com colaborações que incluem "dois poemas ingleses meus, muito indecentes", versos de Pessanha, poemas inéditos de Sá-Carneiro, A cena do Ódio de Almada Negreiros e quatro hors-textes "do mais célebre pintor avançado português - Amadeu de Souza-Cardoso". A revista não sai nem naquele mês nem nos meses seguintes, mas em julho de 1917, e com um conteúdo algo diferente, Orpheu 3 fica quase totalmente composto numa tipografia, faltando-lhe apenas a colaboração de Álvaro de Campos. O projeto entrará então, misteriosamente, numa dormência prolongada.

Richard Zenith, Fotobiografias Século XX, Fernando Pessoa

Novas tendências artísticas modernistas

     Um grupo de poetas  e literatos com afinidades muito especiais começou a definir-se em 1912: Pessoa, Mário de Sá-Carneiro (1890 - 1916), Luís da Silva Ramos (1891 - 1947) (condiscípulo de Sá-Carneiro no liceu e posteriormente conhecido como Luís de Montalvor), Armando Cortes-Rodrigues (1891 - 1971) e António Cobeira (1892 - 1959) (colegas do curso de Letras depois de Pessoa o ter abandonado), Alfredo Pedro Guisado (1891 - 1975) (filho do proprietário do restaurante Irmãos Unidos, um dos sítios onde os jovens se juntavam), Mário Beirão (1890 - 1965) e o ainda muito jovem António Ferro (1895 - 1956). Não é que formassem uma tertúlia propriamente dita, mas sentiam - no meio dos muitos outros habitués dos cafés - uma afinidade de gostos e um comum desejo de renovar e internacionalizar as letras portuguesas, a começar pelas suas próprias produções literárias.
     A Águia, revista saudosista ligada ao grupo Renascença Portuguesa, representava, para os jovens o que de mais novo e interessante havia em Portugal. Pessoa, porém, depressa superou a estética da "nova poesia portuguesa", tão longamente analisada e elogiada nos artigos por si publicados em A Águia, nos quais citava versos de Teixeira de Pascoaes e Beirão como modelos de "subtileza e complexidade ideativas" graças à sua maneira analítica de "desdobrar uma sensação em outras" e à sua feição espiritual de "encontrar em tudo um além".
     (...)
     [Pessoa] Chegou a definir o paulismo como "o culto da artificialidade", e preteriu-o em favor do "intersecionismo", que pretendia ser mais construtivista, uma espécie de cubismo aplicado à literatura - se bem que Pessoa, nas suas teorizações, imaginasse o novo "ismo" aplicado a todas as artes. À semelhança do movimento seu precursor, o intersecionismo (escreveu ele numa carta assinada por Álvaro de Campos em 4 de junho de 1915 e dirigida ao Diário de Notícias, embora provavelmente não enviada) caracterizava-se por uma "subjetividade excessiva" e um "exagero da atitude estática", mas procurava ser mais incisivo, justapondo, de forma bem nítida, diversos planos ou dimensões em simultâneo.
     Empenhados nestes esforços de inovação, Pessoa e os seus discípulos - pois ele, embora reservado por natureza, era o mestre incontestável que guiava os outros - estavam sozinhos, sem terem onde se inserir no meio literário português. Tornava-se urgente criar uma revista que lhe desse voz. A ideia nasceu, inevitavelmente, de um projeto de Pessoa. No início de 1913, ou talvez ainda em 1912, Pessoa elaborou planos para uma revista mensal intitulada Lusitânia, que se debruçaria principalmente sobre os problemas políticos que a jovem república enfrentava e o lugar por ela ocupado na cena internacional.
     (...)
     Se Pessoa, sem sair de Lisboa, se conseguia manter a par das últimas tendências nas artes e letras, e em particular das correntes vanguardistas, era em parte graças às viagens de alguns camaradas desse grupo. Em outubro de 1912, Sá-Carneiro fora para Paris, dando início a uma animada correspondência literária com Pessoa, e no final do mesmo ano Montalvor partiu para o Rio de Janeiro, a fim de trabalhar como secretário de Bernardino Machado, nomeado embaixador de Portugal.
     Em Paris, Sá-Carneiro convivia com Santa-Rita Pintor (1889 - 1918), um jovem artista português cheio de ideias e audácia mas de valor artístico controverso (a seu pedido, a família destruiu toda a sua obra quando morreu, em 1918). Em todo o caso, Santa-Rita conseguira impor-se ao ponto de Marinetti, que então vivia na capital francesa, o ter autorizado a traduzir e publicar manifestos futuristas em Portugal. Sá-Carneiro regressa a Lisboa em junho de 1913, volta para Paris um ano depois e regressa novamente no outono de 1914, altura em que a guerra também trouxe de volta Santa-Rita e o seu amigo Raul Leal, que, como ele, conhecera os futuristas. Os três estavam muito ao corrente das novidades artísticas (Picasso, o cubismo) e literárias (Max Jacob, Apollinaire) que se refletiam no modernismo português.

Richard Zenith, Fotobiografias Século XX, Fernando Pessoa

"Orpheu"

     Por diferentes que sejam entre si, as vozes poéticas do grupo Orpheu identificam-se por uma série de fatores comuns: a fragmentação ou multiplicação do Eu; a transgressão dos tabus éticos; a nova consciência do mundo provocada pela velocidade / poder da Máquina; o poder criador da Palavra, como concretizadora da Vida vivida; a recusa do código linguístico convencional e a descoberta da criação literária, como a grande aventura da Vida; a busca de uma obra poética que, a par de seu valor estético, apresentasse uma conceção filosófica do Ser, e fosse ela mesma um ato, um elemento criador da vida autêntica; a consciência heraclitiana de que a realidade não é um ser, mas um devir; não é um estado durativo e persistente, mas um ocorrer; e ligada a isso está a busca da «portucalidade», da essência da raça portuguesa; o repúdio pelas ideias feitas, pelo convencional, daí, nessa produção órfica, a presença constante da Locura, do clima onírico, da incoerência, etc....; a atração pelo Mistério, pelo Exótico, pelo Esteticismo (também como modo de ser, de existir), ou ainda pelos excessos de qualquer natureza; a análise, como processo criativo, e não mais a síntese que fora procurada pela literatura anterior; a predominância da perceção sensorial da realidade (nervos excitados pelas impressões recebidas do mundo exterior) (...).

Nelly Novaes Coelho, Escritores Portugueses do século XX

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

O Modernismo na literatura portuguesa

     Entende-se aqui por «Modernismo» um movimento estético, em que a literatura surge associada às artes plásticas e é por elas influenciadas, empreendido pela geração de Fernando Pessoa (n. 1888), Mário de Sá-Carneiro (n. 1890) e Almada Negreiros (n. 1893), em uníssono com a arte e a literatura mais avançadas na Europa, sem prejuízo, porém, da sua originalidade nacional. Trata-se, pois, de algo delimitado no tempo, algo sobre que temos já uma perspetiva histórica, embora seja lícito, não só descobrir-lhe precedentes na própria literatura portuguesa (sobretudo na geração de Eça de Queirós, autor das atrevidas Prosas Bárbaras e criador, com Antero, do poeta fictício, baudelairiano, Carlos Fradique Mendes; em Cesário Verde, em Eugénio de Castro, em Camilo Pessanha, em Patrício), mas ainda assinalar os seus prolongamentos até aos nossos dias, a sua ação decisiva na instauração entre nós do que consideramos agora a «modernidade». O modernismo assim definido tem consequências mais profundas do que o simbolismo-decadentismo de 1890, a que os Espanhóis chamam «Modernismo»: implica uma nova conceção da literatura como linguagem, põe em causa as relações tradicionais entre autor e obra, suscita uma exploração mais ampla dos poderes e limites do Homem, no momento em que defronta um mundo em crise, ou a crise de uma imagem congruente do Homem e do mundo.
     Foi por 1913, em Lisboa, que se constitui o núcleo do grupo modernista. Ao invés dos movimentos literários anteriores (Simbolismo, Saudosismo), o Modernismo seria basicamente lisboeta, apenas com algumas adesões de Coimbra (o poeta e ficcionista Albino de Meneses, etc.) e ecos vagos noutros pontos da província. Pessoa e Sá-Carneiro haviam colaborado n'A Águia, órgão do Saudosismo; mas iam agora realizar-se em oposição a este, desejosos como estavam de imprimir ao ambiente literário português o tom europeu, audaz e requintado, que faltava à poesia saudosista. Nesse ano de 1913 escreveu Sá-Carneiro, aplaudido pelo seu amigo F. Pessoa, os poemas de Dispersão; ambos nutriam o sonho de uma revista, significativamente intitulada Europa; F. Pessoa dava início a uma escola efémera compondo o poema «Paúis» (publicado em Renascença, fevereiro de 1914); Pessoa e Almada travavam relações, graças à primeira exposição (de caricaturas) por este efetuada, e criticada por aquele nas colunas d'A Águia (...). Em 1914 os nossos jovens modernistas, estimulados pela aragem de atualidade vinda de Paris com Sá-Carneiro e Santa-Rita Pintor, adepto do Futurismo, faziam seu o projeto que Luís da Silva Ramos (Luís de Montalvor) acabava de trazer do Brasil: o lançamento de uma revista luso-brasileira, Orpheu. Dessa revista saíram com efeito dois números (os únicos publicados) em 1915; incluíam a colaboração de Montalvor, Pessoa, Sá-Carneiro, Almada, Côrtes-Rodrigues, Alfredo Pedro Guisado e Raul Leal; dos brasileiros Ronald de Carvalho (que, regressado ao Brasil, serviria de traço de união entre o Modernismo brasileiro e o português) e Eduardo Guimarães; de Ângelo de Lima, internado no manicómio; de Álvaro de Campos, heterónimo de Pessoa. Feitos, em parte, para irritar o burguês, para escandalizar, estes dois números alcançaram o fim proposto, tornando-se alvo das troças dos jornais; mas a empresa não pôde prosseguir por falta de dinheiro. Em abril de 1916, o suicídio de Sá-Carneiro privou o grupo de um dos seus grandes valores. Entretanto, a geração modernista continuou a manifestar-se, quer em publicações individuais, quer através de outras revistas (...). A revista Presença, aparecida em 1927, não só deu a conhecer e valorizou criticamente as obras dos homens do Orpheu, como lhes herdou o espírito por intermédio de alguns dos presencistas, pertencentes já a uma segunda geração modernista. Nela colaborou Fernando Pessoa. Entretanto, em conjunto, representa um recuo: é um modernismo assagi (1), psicologista, um parcial regresso à eloquência neorromântica (Régio, Torga).


Jacinto do Prado Coelho, Dicionário de Literatura

(1) assagi: ajuizado

O Modernismo

     Numa perspetiva de largo alcance, pode dizer-se que o Modernismo se estende desde finais do século XIX (cerca de 1890, segundo alguns autores) até depois da Segunda Guerra Mundial, mesmo até ao final dos anos 50, quando vão aflorando teorias e práticas culturais classificadas como pós-modernistas; numa perspetiva mais restrita, o Modernismo estende-se das vésperas da Primeira Guerra Mundial até à Segunda Guerra Mundial, sendo que os anos 20 e 30 são o seu tempo mais fecundo. Em Portugal, o aparecimento e a maturação do Modernismo relacionam-se com a relevância cultural assumida por algumas revistas e naturalmente pelos autores que nelas colaboraram; os marcos decisivos da afirmação modernista são constituídos, em 1915, pelos dois números da revista Orpheu (um terceiro, já em provas, acabou por não vir a público). A par desta, outras revistas servem de lugar de manifestação literária e doutrinária do Modernismo português: Centauro e Exílio (1916), Contemporânea (1922-1926) e Athena (1924-1925); entre 1927 e 1940 publica-se a revista Presença, que não só faz ecoar o legado cultural da chamada Geração de Orpheu como, segundo alguns autores, pode ser considerada o órgão cultural de um segundo Modernismo português.
     Se é problemático estabelecer as balizas cronológicas que ficaram sugeridas, [...] um outro aspeto problemático da caraterização genérica do Modernismo tem que ver com a confluência, nesse tempo histórico-cultural, de múltiplos movimentos de uma forma ou de outra envolvidos na dinâmica modernista. Deparamos aqui com uma importante componente da herança finissecular que se prolonga no Modernismo; com efeito, se no final do século XIX se multiplicam os "ismos" - uma multiplicação que é evidência de grande efervescência cultural e, simultaneamente, de uma certa crise ideológica -, no tempo do Modernismo essa tendência chega a assumir contornos de paroxismo ou então de provocação deliberada. O Ultraísmo, o Criacionismo, o Imagismo, o Vorticismo, o Construtivismo, o Expressionismo, o Cubismo e ainda (no contexto do Modernismo português), o Sensacionismo, o Interseccionismo, um incipiente Paulismo, o Neopaganismo e o Futurismo [...] são alguns desses "ismos". Deles ficou, nalguns casos, testemunho notório da vocação inovadora e experimental do Modernismo [...].
     A complexa e diversificada produção cultural que, nos inícios do século XX, se projeta sobre o Modernismo, condicionando indiretamente as suas linguagens artísticas e os seus temas dominantes, envolve outros componentes, nalguns casos de recorte ideológico. Não pode ignorar-se, no contexto dessa produção cultural, a relevância da psicanálise freudiana e da psicologia de William James; se a primeira vem permitir o acesso a instâncias profundas da psique humana, a segunda estabelece e difunde o conceito de corrente de consciência, assim se favorecendo a tematização literária de universos psicológicos extremamente complexos, instáveis e evanescentes, tematização que, no caso específico do romance, permite falar numa verdadeira revolução romanesca.
     Ela verifica-se, contudo, porque, do ponto de vista ideológico, o Modernismo incorpora e potencia valores que estimulam a reinterpretação da pessoa feita personagem, tendo em atenção um estádio civilizacional exteriormente pujante e eufórico, mas atravessado, no seu interior, por tensões e excessos de muito problemática harmonização. Noutros termos, dir-se-á que o tempo histórico-civilizacional do Modernismo é o de uma época de acentuada industrialização e de intenso desenvolvimento das comunicações que anulam distâncias, tudo congraçado num conceito quase obsessivo, traduzido na palavra mágica que na época se impõe: a modernização, semanticamente relacionada com o termoconceito Modernismo.
     Que essa modernização - pela sua desmesura e pela sua desumana intensidade - suscita dúvidas e ansiedades, sabemo-lo, pela via das representações poéticas, pelo menos desde Baudelaire e, entre nós, desde Guilherme de Azevedo, Cesário e Gomes Leal; ou então, nos termos de uma ironia de sabor tipicamente finissecular, desde que Jacinto, n'A Cidade e as Serras, se cansa das maravilhas da Civilização e se refugia nas Serras [...].
     Diretamente correlacionadas com este tempo de convulsões sociais, de conflitos armados, de regimes políticos autoritários, [...] os temas dominantes do Modernismo aprofundam os sentidos nucleares que o constituem. A euforia do moderno é, naturalmente, um desses temas, um moderno que é o de realidades civilizacionais trepidamente novas e pujantes, celebradas à maneira de Walt Whitman; em muitos casos, contudo, essa euforia desliza rapidamente para o tédio, situado, conforme ficou referido, no estádio final de uma evolução que chega a desembocar na dissolução do sujeito ("Não sou nada. / Nunca serei nada", dizem os versos de abertura da "Tabacaria") e no suicídio [...]; o que vem a ser o desenlace patético de um esforço de autoconhecimento, desenvolvido (muitas vezes de uma forma obscura, interiorizada e desligada do social) pelo homem e pela personagem do Modernismo. De um modo geral, o que estes sentidos temáticos denunciam é uma aguda crise do sujeito, projetada em tópicos como a máscara ("Quando quis tirar a máscara, / Estava pegada à cara", diz Campos na "Tabacaria"), o retrato, o espelho [...] e a procura labiríntica do outro, em si mesmo.


REIS, Carlos, 2008, O Conhecimento da Literatura - Introdução aos Estudos Literários

"Orpheu"

     Revista lançada em 1915, cujos dois únicos números publicados, em abril e julho, marcam o início o modernismo em Portugal. Com direção, no n.º 1, de Fernando Pessoa e do brasileiro Ronald de Carvalho, e, no n.º 2, de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, o escândalo provocado pela publicação de Orpheu deveu-se, entre outros motivos, à apresentação de práticas de escrita e correntes artísticas vanguardistas (paulismo, intersecionismo, simultaneísmo, futurismo, sensacionismo), embora surjam na revista ainda compaginadas com leituras e práticas simbolistas e decadentistas.
     O n.º 1 foi preenchido com a seguinte colaboração: Luís de Montalvor, "Introdução"; Mário de Sá-Carneiro, "Para os Indícios de Oiro" (poemas); Ronald de Carvalho, "Poemas"; Fernando Pessoa, "O Marinheiro" (drama estático); Alfredo Pedro Guisado, "Treze Sonetos"; José de Almada-Negreiros, "Frizos" (prosas); Côrtes-Rodrigues, "Poemas", e Álvaro de Campos, "Opiário" e "Ode Triunfal".
     O número dois recebeu os seguintes autores: Ângelo Lima, "Poemas Inéditos"; Mário de Sá-Carneiro, "Poemas sem Suporte"; Eduardo Guimarães, "Poemas"; Raul Leal, "Atelier" (novela vertígica); Violante de Cisneiros, "Poemas"; Álvaro de Campos, "Ode Martítima"; Luís de Montalvor, "Narciso" (poema); Fernando Pessoa, "Chuva Oblíqua" (poemas intersecionistas); Santa-Rita Pintor, "Quatro Hors de texte duplos".
     Para o projetado número três - cuja publicação esteve prevista para 1916 mas que, por razões financeiras, não foi posto à venda - Orpheu contaria com os seguintes textos: Mário de Sá-Carneiro, "Poemas de Paris"; Albino de Meneses, "Após o Rapto"; Fernando Pessoa, "Gládio" e "Além-Deus" (poemas); Augusto Ferreira Gomes, "Por Esse Crepúsculo a Morte de um Fauno..."; José de Almada-Negreiros, "A Cena do Ódio"; D. Tomás de Almeida, "Olhos"; C. Pacheco, "Para Além doutro Oceano", e Castelo de Morais, "Névoa". Mais tarde, deste número do Orpheu, chegaram ainda a ser publicados poemas de Fernando Pessoa, assim como algumas notas em Inglês. A revista Orpheu foi considerada por Pessoa "a soma e a síntese de todos os movimentos literários modernos".

Fonte: Infopédia

Sobre o aparecimento da revista "Orpheu"

Sobre o aparecimento da revista Orpheu

     Quando falamos sobre a revista Orpheu temos de, julgo eu, dar primeiro que tudo voz àqueles que a fizeram e a sonharam. Por isso perante a pergunta "o que foi a revista Orpheu?" responderemos em primeira linha com partes da introdução de Luiz de Montalvor ao número n.º 1 da mesma: "O que é propriamente revista em sua essencia de vida e quotidiano, deixa-o de ser ORPHEU, para melhor se engalanar do seu titulo e propôr-se. E propondo-se, vincula o direito de em primeiro lugar se desassemelhar de outros meios, maneiras de formas de realisar arte, tendo por notavel nosso volume de Beleza não ser incaracteristico ou fragmentado, como literarias que são essas duas formas de fazer revista ou jornal. (...) Nossa pretenção é formar, em grupo ou ideia, um numero escolhido de revelações em pensamento ou arte, que sobre este principio aristocratico tenham em ORPHEU o seu ideal esotérico e bem nosso de nos sentirmos e conhecermo-nos."
     Projecto portanto aparentemente pessoal, de poder ser uma montra para o "sentir" e o "conhecer" dos seus autores. Mas também algo em "dessemelhança"; ou seja representativo de uma rutpura com o status quo literário.
     É nas palavras do próprio Pessoa que podemos revelar o processo da génese desta invulgar revista, que revolucionou a literatura Portuguesa no início do século XX: "- O que quer Orpheu? - Criar uma arte cosmopolita no tempo e no espaço. (...) a verdadeira arte moderna tem de ser desnacionalizada - acumular dentro de si todas as partes do mundo. (...) feita esta fusão espontaneamente, resultará uma arte-todas-as-artes, uma inspiração espontaneamente complexa".
     Mas como apareceu a revista?
     Pessoa responde, com um longo texto que só viu a luz do dia em 1968, pelas mãos do Pessoano Francois Castex e que resumimos de seguida:
     - A ideia da revista foi originalmente de Luis de Montalvor, em princípios de 1915, quando regressou do Brasil. Em Fevereiro, no café Montanha, reunido com Pessoa e Sá-Carneiro, ele lançou a ideia de uma revista trimestral. - O título "Orpheu" veio também de Luis de Montalvor (Orpheu é uma figura mitica que vai ao mundos dos mortos socorrer a sua mulher, sem nunca poder olhar para trás). - A ideia avançou inicialmente pelo entusiasmo dos 3 e das possibilidades económicas de Sá-Carneiro (que recorreu ao pai). - Estaria latente em todos a vontade de "reagir em Leonino contra o ambiente", nas palavras do próprio Pessoa. - Ficaram como directores Luís de Montalvor e um outro poeta brasileiro, Ronald de Carvalho, mas a direcção era realmente compartilhada com Pessoa e Sá-Carneiro, bem como com Alfredo Guisado. - A tríade contactou então Alfredo Guisado e Cortes-Rodrigues para obter originais, bem como Almada Negreiros. Depois Pessoa trabalhou no poema "Opiário", para o incluir também. Aqui Pessoa revela que "Opiário" foi escrito depois da "Ode Triunfal", embora tenha "fingido" a prioridade posteriormente. - Como editor foi o nome de António Ferro - estritamente uma ilegalidade, mas que muito divertiu Pessoa e Sá-Carneiro (que desconhecia que Ferro era ainda menor quando colocou o nome daquele na revista). Outra "mentira" foi a designação da empresa editora: Orpheu ltda. Na realidade não tinha sido constituída nenhuma empresa por quotas Orpheu, e a designação ficou por insistência de Sá-Carneiro, perante as reservas de Pessoa. - Pessoa parece passar a imagem da revista ter uma base de "blague", de brincadeira levada a sério. É bom pensar neste ponto: na realidade era preciso uma coragem de brincalhão para inovar assim, corajosamente, sem pensar nas consequências. - Pessoa não considerava a revista futurista. Futurista - diz ele - nessa altura, do n.º 1, era apenas Santa-Rita Pintor. - Pessoa recusa o epíteto de mestre na revista. Ele diz que tanto ele quanto Sá-Carneiro eram "individualistas absolutos". - A intenção da revista era provavelmente dar voz a uma geração, mas não uma voz clara e inequívoca: aliás é bem claro pelas palavras de Pessoa que tanto ele como Sá-Carneiro tinham uma certa noção de que não iriam ser compreendidos, e por isso insistiam mesmo numa certa opacidade das suas intenções.
     Claro que "Orpheu" acabou por ser decisiva, mesmo só com dois números, precisamente porque não foi entendida. O seu testemunho ficou duradouro. Nas palavras de Pessoa em Novembro de 1935: "Orpheu acabou. Orpheu continua". E o que continuou foi esse rompimento com o passado, romântico e simbolista. "Os de Orpheu" eram o retrato de uma geração nova que se afirmava e que, à boa maneira das novas gerações, recusava com prazer a herança dos seus pais.
     Mas quiçá aparecida noutra altura não tivesse o mesmo peso. A verdade é que em 1915 Pessoa está precisamente no ponto decisivo da sua vida - o dia triunfal tinha acontecido no ano anterior e a sua enorme energia criativa começava a dirigir-se para os seus novos heterónimos. Haveria Orpheu sem Campos? Talvez, mas é porventura Campos o motor da modernidade da revista e do subsequente escândalo que a mesma causou. E depois da ruptura, pouco mais haveria a fazer do que deixar a "fenda" alargar-se a todos os espectros sociais, começando nas artes. Como fenómeno explpsivo, bem se compreende que Orpheu não tenha tido a necessidade de ter mais do que apenas dois números (mesmo com um terceiro planeado mas nunca publicado).
Estava aberto o horizonte para uma nova literatura, uma nova maneira de pensar e agir. Os loucos haviam ocupado o manicómio.

Fonte: Um Fernando Pessoa.

domingo, 9 de setembro de 2012

Conformismo / Protesto


          Acho uma moral ruim
          trazer o vulgo enganado:
          mandarem fazer assim
          e eles fazerem assado.

          Sou um dos membros malditos
          dessa falsa sociedade
          que, baseada nos mitos,
          pode roubar à vontade.

          Esses por quem não te interessas
          produzem quanto consomes:
          vivem das tuas promessas
          ganhando o pão que tu comes.

          Não me deem mais desgostos
          porque sei raciocinar...
          Só os burros estão dispostos
          a sofrer sem protestar!

          Esta mascarada enorme
          com que o mundo nos aldraba,
          dura enquanto o povo dorme,
          quando ele acordar, acaba.

                                              António Aleixo

domingo, 4 de setembro de 2011

"Poeminha da Negação da Afirmação", Millôr Fernandes

          Sou um homem bem comum
          sem nenhuma aspiração.
          Não quero ser general
          e muito menos sultão.
          Sou moderado de gastos,
          de ambição reduzida,
          não sonho ser «big-shot»
          estou contente da vida.
          Nunca invejei o próximo
          nem lhe cobiço a mulher,
          pego o meu lugar na fila
          e seja o que Deus quiser.
          Não sou mau pai, nem mau esposo,
          grosseiro nem invejoso
          - só um pouco mentiroso.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Miguel Torga (Diário)

Miguel Torga - Diário XVI

Chaves, 30 de Agosto de 1990 - É escusado teimar. A ser banal, a dizer banalidades e a pensar banalidades é que o português é português.

domingo, 10 de julho de 2011

Eça, um homem actual

          Há 140 anos, isto é, em 1871, Eça de Queirós afirmou o seguinte:

«Estamos perdidos há muito tempo...
O país perdeu a inteligência e a consciência moral.
Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada.
Os caracteres corrompidos.
A prática da vida tem por única direcção a conveniência.
Não há princípio que não seja desmentido.
Não há instituição que não seja escarnecida.
Ninguém se respeita.
Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos.
Ninguém crê na honestidade dos homens públicos.
Alguns agiotas felizes exploram.
A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia.
O povo está na miséria.
Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente.
O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.
A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências.
Diz-se por toda a parte: "o país está perdido!"
Algum opositor do actual governo?... Não!»

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Epigramas de Marcial

          Caríssimos alunos, depois de iniciar a correcção dos vossos testes, fui obrigado a arejar. Recuperei, então, leituras de faculdade e decidi Marcial consultar para o cérebro, contundido, aliviar:


                    Homem belo e de valor
                    Queres, Cota, parecer.
                    Mas um homem, sendo belo,
                    De valor não pode ser.

                              ***

                    Se bem me lembro, Élia, tu tinhas quatro dentes;
                    Uma tosse cuspiu dois e outra tosse, mais dois.
                    Já tu podes sem susto os dias inteiros tossir,
                    Que uma terceira tosse o que tirar mais não tem...

                    Segura, noites e dias,
                    Podes tossir a fartar;
                    Podes, que tosse terceira
                    Já não tem que te levar.
                   
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