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segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Sebastianismo


     A derrota em Alcácer Quibir e o desaparecimento de D. Sebastião em Alcácer Quibir, em 1578, deixaram Portugal na orfandade e sob o domínio castelhano. Esta situação inspirou vários escritores que viram no acontecido o desfazer do sonho de um grande império. Só uma fé messiânica nos poderia salvar da degradante situação.
     Gonçalo Anes, de alcunha o Bandarra, sapateiro de Trancoso, inspirado na Bíblia, cantou em trovas um tempo novo simbolizado pelo rei D. Sebastião, o Encoberto, libertador da opressão e da miséria do povo e da "erronia" do mundo. Compostas entre 1530 e 1540, as Trovas de Bandarra resultariam na expressão mais relevante do messianismo anterior a D. Sebastião, com base no profetismo hebraico (crença na vinda do Messias), no mito peninsular do Encoberto e nas reminiscências das lendas do ciclo arturiano (o rei Artur desapareceu, está guardado numa ilha e regressará), dando origem a uma doutrina e a um mística: o SEBASTIANISMO, de que D. Sebastião permanecerá como símbolo por excelência.
     A sociedade não se reconhecia a si própria e nela confluíram antagonismos e projetos, em refletida crise de identidade nacional potenciada, a partir de meados do século XVI, pelas oscilações vitais na dinâmica estrutural do Império Português. Assim, sublimou em D. Sebastião a vontade de um povo no reforço e dilatação do Império e na reafirmação do seu papel de guardião da fé cristã, retratada nas obras de Camões, Diogo Bernardes e Pêro de Andrade Caminha, que a morte do rei, porém, tão abruptamente obliterou.  Durante o domínio filipino, sob um pulsar nacionalista, suceder-se-iam os episódios de aventureiros que, fazendo-se passar por D. Sebastião ou encarnando a esperança no Encoberto, insidiosa e teimosamente mantiveram vivo e consubstanciaram o desejo de libertação do jugo espanhol em Portugal.

Alcácer Quibir


     No Norte de África eram constantes as lutas entre várias fações marroquinas. O pretexto para a intervenção de D. Sebastião surgiu com a deposição, em 1576, do sultão Mulei Maamede pelo sultão Mulei Moluco, este auxiliado pelos Turcos. Ora, o auxílio dos Turcos era uma ameaça para a segurança das nossas costas e para o comércio com a Guiné, Brasil e Oriente. Por isso, D. Sebastião decidiu apoiar Mulei Maamede, que nos ofereceu Arzila, e procurou apoio de outros reis. Filipe II veio a retirar-se. Da Alemanha, Flandres e Itália vieram soldados mercenários e auxílio em armas e munições. Fez-se o recrutamento do exército português, mas verificou-se muita corrupção, o que fez com que o exército expedicionário, constituído por cerca de 15 000 homens, fosse pouco disciplinado, mal preparado, inexperiente e com pouca coesão.
     D. Sebastião partiu de Lisboa a 25 de Junho de 1578, passou por Tânger, onde estava Mulei Maamede, seguiu para Arzila e daqui para Larache, por terra, havendo quem preferisse que se fosse por mar, para permitir maior descanso às tropas. Seguiram depois a caminho de Alcácer Quibir, onde encontraram o exército de Mulei Moluco, muito superior em número. A 4 de Agosto de 1578, com o exército esgotado pela fome, pelo cansaço e pelo calor, deu-se a batalha. Nestas condições, o exército português, pesem alguns atos de grande bravura, foi completamente dizimado, sendo muitos os mortos, um dos quais o próprio rei D. Sebastião, que preferiu a morte à fuga, enquanto os sobreviventes foram feitos prisioneiros. Esta batalha é conhecida também pelo nome de "Batalha dos Três Reis", pois nela vieram a morrer, além de D. Sebastião, Mulei Maamede e Mulei Moluco.
     O resultado e as consequências desta batalha foram catastróficos para Portugal. Por um lado, morreu o rei, não deixando sucessor, o que levantou uma crise dinástica e ameaçou a independência de Portugal face a Castela, pois um dos candidatos à sucessão era Filipe II de Espanha. Filipe veio efetivamente a ascender ao trono em 1580, após a morte do Cardeal D. Henrique. Por outro, a maioria da nobreza portuguesa que participara na batalha ou morrera ou fora aprisionada. Por último, para apagar os elevados resgates exigidos pelos marroquinos, o país ficou enormemente endividado e depauperado nas suas finanças.

D. Sebastião

     Filho do príncipe D. João e de D. Joana de Áustria, e neto de D. João III, nasceu em Lisboa em 1554 e morreu em Alcácer Quibir em 1578. Décimo sexto rei de Portugal, ficou conhecido pelo cognome de O Desejado.
     D. Sebastião herdou o trono de seu avô, D. João III, porque, apesar de este ter tido vários descendentes, todos eles acabaram por falecer precocemente. Como era menor à data de ocupar o trono, ficou como regente sua avó D. Catarina, apesar de D. João III não ter deixado testamento, mas apenas uns apontamentos em que a indicava como regente. Sua mãe, D. Joana, de acordo com o contrato nupcial, teve de regressar a Castela após a morte do príncipe D. João.
     A regente, D. Catarina, por influência do cardeal D. Henrique, começou por pedir ao Papa a fundação da Universidade de Évora, que entregou aos Jesuítas. Continuou a política de D. João III quanto ao Norte de África, querendo abandonar Mazagão, que, entretanto, teve de defender dos ataques mouros. Acusada de sofrer influências da corte espanhola, pediu a demissão de regente nas Cortes de Lisboa de 1562, continuando, no entanto, como tutora de D. Sebastião. Foi eleito como regente, nessa altura, o cardeal D. Henrique, tio de D. Sebastião. Nestas cortes, o povo manifestou a sua apreensão quanto à educação do rei, sobre a questão da sucessão e sobre a inalienabilidade de todo o território nacional, aspetos que D. Henrique vai ter em conta durante a sua regência, até D. Sebastião completar catorze anos.

Presságios

  • A leitura que D. Madalena realiza do episódio de Inês de Castro, incluso n'Os Lusíadas, que motiva a sua reflexão (no início do ato I), o que alia o seu destino ao final trágico de Inês de Castro;
  • Os agouros de Telmo, que não acredita na morte de D. João de Portugal, colocando a hipótese do seu regresso, e que afirma que uma situação ocorrerá que deixará claro quem nutre maior amor por Maria naquela casa;
  • Os pressentimentos que D. Madalena de que um acontecimento funesto irá atingir a sua família, o que não a deixa viver o seu amor por Manuel de Sousa de uma forma tranquila, motivando a sua insegurança, a sua angústia e impedindo a sua felicidade;
  • O facto de Manuel de Sousa, antes de pegar fogo ao próprio palácio, por considerar a resolução dos governantes espanhóis uma afronta, evocar a morte de seu pai, que caíra "sobre a sua própria espada", indicando o destino funesto da sua família: "Quem sabe se eu morrerei nas chamas ateadas por minas mãos?" (I, 11); por outro lado, o seu ato irá motivar a aproximação da família de um espaço que pertencera a D. João de Portugal e que a ele está ligado metonimicamente;
  • As flores que Maria transporta consigo murcharam, o que deixa antever a tragédia com que encerra a obra (a morte de Maria);
  • Os sonhos estranhos e as visões de Maria (motivados pelo seu temperamento romântico, pela imaginação e aguçados pela tuberculose), dado o seu caráter negativo e o facto de a impedirem de dormir, permitem igualmente antecipar o desenlace trágico;
  • A contemplação do retrato do pai remete para a intuição do malogro do casamento dos pais;
  • A simbologia da sexta-feira, considerada por D. Madalena como um dia aziago e fatal;
  • O sebastianismo de Telmo e de Maria indica a hipótese de regresso de D. João de Portugal, que, tal como D. Sebastião, desaparecera na batalha de Alcácer Quibir;
  • Os indícios de tuberculose de Maria: a febre, as mãos que queimam, as rosetas nas faces e o ouvido apuradíssimo (ouvido de tísica);
  • A leitura que Maria faz da novela Menina e Moça (obra de Bernardim Ribeiro - "Menina e moça me levaram de casa de meu pai.") indicia a sua separação da família (ato II, cena 2);
  • A visita que Maria e seu pai, Manuel, fazem a Soror Joana (ato II), que fora casada com D. Luís de Portugal - o casal decidira, em determinado momento da sua vida, abandonar o mundo e recolher-se num convento;
  • As alterações da decoração dos espaços físicos: no ato I, encontramos um ambiente alegre e aberto ao exterior, que será substituído nos segundo e terceiro atos por uma decoração melancólica e soturna;
  • A localização dos acontecimentos da peça ao início da noite ou de noite (ato I: "É no fim da tarde"; ato II: "É alta noite");
  • Os elementos simbólicos a nível do espaço físico:
  • os retratos de Manuel de Sousa, Camões e D. João;
  •  a substituição do retrato de Manuel pelo de D. João, aliada à substituição de espaço, é um sinal que D. Madalena interpreta como fatal;
  • o facto de o retrato de Manuel de Sousa ser consumido pelo fogo durante o incêndio por si ateado;
  • a mudança do palácio de Manuel de Sousa para o de D. João.

domingo, 27 de novembro de 2011

Marcas românticas de Frei Luís de Sousa

  • A peça não possui unidade de tempo nem unidade de lugar, embora o grande espaço continue a ser o mesmo: Almada.
  • O nacionalismo / patriotismo:
  • de Maria, visível na sua resistência aos governadores castelhanos, o que traduz outro traço romântico: a ânsia de liberdade;
  • o assunto é nacional, eivado de messianismo, que constituía uma força de reação contra o domínio dos espanhóis; uma reação do povo português ao domínio filipino.
  • A linguagem, plena de exclamações, interrogações, reticências, frases curtas, procurando adequá-la ao íntimo, ao estado de espírito das personagens.
  • Caracterização de Maria:
               - a mulher-anjo;
               - os ideais de liberdade;
               - a exaltação de valores de feição popular;
               - a atração pelo mistério;
               - a intuição;
               - a tuberculose, a doença dos românticos.
  • As crenças: os agouros, as superstições, os sonhos, as visões de D. Madalena, Telmo e Maria (cenas II a IV do ato I).
  • O mito do escritor romântico: martirizado, sofredor, solitário, marcado pelo Destino, refugia-se no convento, que lhe proporciona o isolamento indispensável à escrita.
  • A crença no sebastianismo: logo no início (I, 2), D. Madalena afirma a Telmo: "... mas as tuas palavras misteriosas, as tuas alusões frequentes a esse desgraçado rei D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda não quis acreditar que morresse, por quem ainda espera em sua leal incredulidade!". O sebastianismo, representado por Telmo e Maria, reside na crença no regresso do rei D. Sebastião, que conduzirá a uma época de brilho para Portugal e ao início de uma nova era mundial do direito e da grandeza, que será a última no plano da salvação dos homens.
  • A religiosidade: além das constantes referências ao cristianismo e ao culto, a religião surge como refúgio e consolação para o sofrimento trágico, para as almas atormentadas pelo pecado (tomada de hábito de D. Madalena e de Manuel de Sousa). O próprio conflito tem origem, em grande parte, na ética cristã.
  • A obra não possui cinco atos, como era de regra na tragédia clássica, mas somente três.
  • O tema da morte: a morte é um tema típico do Romantismo por ser a melhor solução para os conflitos (Maria morre fisicamente e os pais morrem espiritualmente, para o mundo). Por outro lado, a morte de uma personagem em cena (Maria) admite-se no Romantismo, mas não no Classicismo.
  • A apresentação formal da obra em prosa, porque "repugnava-lhe pôr na boca de Frei Luís de Sousa outro ritmo que não fosse o da elegante prosa portuguesa que ele, mais do que ninguém, deduziu com tanta harmonia e suavidade" (Memória ao Conservatório Real).
  • Algumas personagens, sobretudo Madalena e Maria, embora aristocráticas, são verdadeiras heroínas românticas pelo seu comportamento emocional (por exemplo, Maria é uma personagem romântica pela sua sensibilidade doentia e de imaginação aguçada pela tuberculose - sonhos, visões).
  • As crenças: agouros, superstições, visões e sonhos, bem evidentes em D. Madalena, Telmo e Maria.
  • O individualismo: acentuado pelo confronto entre o indivíduo e a sociedade, entre o código moral estabelecido e o desejo de ser feliz à margem desse mesmo código, entre a fidelidade a um passado que esmaga e o abandono a um presente que abre um sentido para a vida.
  • A linguagem e o estilo: a linguagem é adequada às circunstâncias e às personagens:
  • linguagem carregada de remorso e amor, inquietação e angústia (reticências) em D. Madalena;
  • digna, respeitosa, sem deixar de ser familiar, em Telmo, e ainda paternalista, confessional, agoirenta;
  • carinhosa, familiar e respeitosa entre D. Madalena e Telmo;
  •  nobre e elegante, por vezes de tom didático, em Manuel de Sousa;
  •  agoirenta, fantasista e amorosa em Maria;
  •  confidencial, de tom religioso e moralizador, em Frei Jorge;
  •  fria e espectral, cheia de arrependimento, em D. João;
  • digna e culta, na generalidade, como convém a uma obra com caraterísticas de tragédia. 

Tempo da ação / diegese

     Apesar de, na primeira didascália que antecede o início do ato I, constar a referência à "... caprichosa elegância portuguesa dos princípios do século dezassete", a ação desenrola-se, efetivamente, em 1599, último ano do sécilo XVI. O próprio Garrett declarou, na Memória ao Conservatório Real, lida a 6 de maio de 1843, que os aspetos cronológicos não o preocuparam aquando da escrita da peça, pois considerou mais importante "o trabalho da imaginação", irreconciliável com os "algarismos das datas".
     Com efeito, a ação respeitante ao ato I inicia-se no dia 28 de Julho de 1599, no final da tarde de uma sexta-feira, e terminada na madrugada de 5 de agosto do mesmo ano.

     Cronologicamente, os acontecimentos abordados na peça são os seguintes:
  • 4 de agosto de 1576: casamento de D. Madalena com D. João de Portugal (II, 10);
  • 4 de agosto de 1577: D. Madalena vê pela primeira vez Manuel de Sousa Coutinho (II, 10);
  • 4 de agosto de 1578:
               - batalha de Alcácer Quibir;
               - desaparecimento de D. Sebastião e de D. João;
  • de 1578 a 1585: durante este período de 7 anos, ocorrem as buscas infrutíferas de D. João de Portugal - D. Madalena envida todos os esforços no saber notícias do seu marido, sem, contudo, obter qualquer resultado ("... D. João ficou naquela batalha (...) como durante sete anos (...) o fiz procurar..." - 1578 + 7 = 1585);
  • 1585: D. Madalena casa com Manuel de Sousa, por quem se apaixonara ainda durante o primeiro casamento;
  • 1585 a 1599: 14 anos do segundo casamento ("... vivemos (...) seguros, em paz e felizes... há catorze anos.");
  • 1586: nascimento de Maria ("Então! Tem treze anos feitos..." - I, 2);
  • 4 de agosto de 1598: libertação de D. João de Portugal;
  • 28 de julho de 1599: incêndio do palácio de Manuel de Sousa Coutinho (I, 12);
  • 4 de agosto de 1599: chegada do Romeiro (II, 1-14);
  • madrugada de 5 de agosto de 1599:
               - morte de Maria;
               - tomada de hábito de D. Madalena e D. João de Portugal.

     Tendo em conta estes dados, conclui-se que o tempo da diegese dramática é de 21 anos: 1578 a 1599.

     A ação propriamente dita desenrola-se em cerca de uma semana:
  • Julho:
               - 28 ® ato I ("É no fim da tarde.")
              (sexta-feira)
  • Agosto:
               - 1 a 3 ® D. João aproxima-se da sua casa (três dias)
               - 4 ® ato II  ® 8 dias após o final do ato I e do incêndio
               (sexta-feira)      ® chegada do Romeiro
               - 5 ® ato III ® "alta noite"
                    ® tomada de hábito (morte para o mundo)
                    ® morte de Maria 
                    ® partida do Romeiro


  • Concentração / afunilamento do tempo
     De acordo com os preceitos da tragédia clássica, o tempo de Frei Luís de Sousa sofre uma redução progressiva que contribui para a construção da tensão dramática: 21 anos (1578 a 1599) ® 14 anos (duração do segundo casamento de D. Madalena) ® 7 anos (tempo durante o qual D. Madalena procurou, em vão, D. João) ® 1 ano (tempo que medeia entre a libertação e a chegada do Romeiro a Almada) ® 8 dias (vida da família no palácio de D. João) ® 3 dias (D. João aproxima-se da sua casa) ® 1 dia (4 de agosto - «Hoje» - chegada do Romeiro / D. João) ® 5 horas da madrugada de 5 de agosto (tomada de hábito e morte de Maria).



  • Simbolismo de algumas referências temporais
  • Sexta-feira: é um dia considerado aziago, conotado com a tragédia, de acordo com a tradição popular (por exemplo, a sexta-feira 13). Para D. Madalena, é um dia fatal ("Ai que é sexta-feira." - II, 5; "É um dia fatal para mim..." - II, 10) e foi nele que ocorreram os acontecimentos centrais da sua vida:
                         » primeiro casamento (com D. João);
                         » primeiro encontro com Manuel de Sousa, por quem se apaixona à primeira
                            vista,apesar de ainda estar casada com o primeiro marido;
                         » batalha de Alcácer Quibir;
                         » desaparecimento de D. João e de D. Sebastião;
                         » incêndio do próprio palácio por Manuel de Sousa, seguido da mudança, com
                            a família, para o de D. João;
                         » regresso de D. João, disfarçado de Romeiro.
  • Ambiente crepuscular e / ou noturno, caracteristicamente romântico, está associado à morte que se abaterá sobre a família e sublinha um certo aspeto transgressor que envolve toda a história daquele núcleo familiar:
                         » "É no fim da tarde" (didascália inicial do ato I);
                         » "É noite fechada" (I, 7);
                         » "É alta noite" (didascália inicial do ato III).
  • Número 7 e seus múltiplos:
                         »  D. Madalena procura saber notícias do seu primeiro marido durante sete
                             anos, após os quais se casa com Manuel de Sousa;
                         » o casamento de D. Madalena e Manuel de Sousa durava há catorze anos
                            (2 X 7);
                         » D. João regresso vinte e um anos após o seu desaparecimento / a batalha
                            de Alcácer Quibir (3 X 7).
     Ora o 7 é o símbolo da totalidade: 7 foram os dias da criação do Mundo, 7 são os pecados mortais e as virtudes que se lhe opõem, 7 são os dias da semana, 7 são as cores do arco-íris.
     Assim, o 7 é o número associado à conclusão de um ciclo e ao início de outro: o final da vida do casal e, consequentemente, com a tragédia; o fim de um ciclo (a destruição da família, a morte de Maria...) e o início de uma nova vida (tomada de hábito).
  • Número 9: este número simboliza também o nascimento de uma nova vida (por exemplo, os 9 meses de gestação de um ser humano), a passagem a outro estádio da existência; daí que a tomada de hábito, marcando a transição do mundo profano para o mundo religioso, tenha lugar ao nono dia. 
  • Número 3: o número da perfeição, daí que 21 seja o símbolo da tragédia perfeita (21 = 3 X 7). 
  •  Número 13: o número tradicionalmente associado ao azar (Maria tem treze anos).
  • Mês de agosto: mês do desgosto.
                         » simbologia do mês de agosto »»»
                         »  acontecimentos trágicos acontecidos durante agosto »»»

Caráter ominoso

     O caráter ominoso remete para o clima carregado de mistério e de fatalismo da peça, conferido pela repetição do número 7 (7, 14, 21) e pela sexta-feira, um dia tido como aziago.

Agon

. De D. Madalena:
     * interior, de consciência (I, 1):
               - personalidade aparente, feliz, ligada a Manuel de Sousa pelo amor-paixão;
               - personalidade real ou oculta, infeliz ou "desgraçada", ligada a D. João pela
                  memória do passado, pelo remorso do presente;
     * contínuo e crescente;
     * com Telmo:
          - apesar de lhe ter obedecido durante os 7 anos de «viuvez» como a um pai, D.
             Madalena não segue o conselho de esperar o regresso de D. João, anunciado na carta
             profética, escrita na madrugada da batalha de Alcácer Quibir;
     * com D. João:
          - nas conversas com Telmo, testemunha da «desobediência» de D. Madalena, conversas
             cheias de reticências, de subentendidos, de duplos sentidos, de alusões, de agouros,
             de «futuros», de pressentimentos de desgraça iminentes (I, 2);
          - a consciência atormentada e o remorso de D. Madalena (I, 1);
          - as reações de aflição, sublinhadas pelas lágrimas, sempre que Maria se refere à
             crença da sobrevivência e possível regresso de D. Sebastião (I, 3);
          - a relutância de voltar a viver no palácio de D. João (I, 7 e 8);
          - a reação tida ao chegar ao palácio do primeiro marido (II, 1);
          - a "confissão" a Frei Jorge (II, 10);
     * com Maria:
          - para Maria, há um enigma que nem a mãe, nem o pai, nem Telmo se prontificam a
             decifrar; são segredos e mistérios intuitivamente pressentidos que não consegue
             desvendar;
          - a razão por que nem a mãe nem o pai, apesar do seu patriotismo ("... que ele não
             é por D. Filipe, não é, não?") acreditavam no regresso de D. Sebastião;
          - a razão por que, quando em tal se falava, o pai mudava de semblante e a mãe se
             afligia e até chorava;
     * com Manuel de Sousa Coutinho (I, 7 e 8): a necessidade de mudança para o palácio
        de D. João após ele ter incendiado o seu próprio lar, mudança a que ela se opõe.

. De Telmo:
     * de consciência: começa a ser evidente o conflito / a divisão de consciência entre o desejo
        do regresso de D. João e o amor a Maria / a incompatibilidade entre o amor a D. João e
        a Maria (III, 4);
     * com D. Madalena:
          - desaprova o casamento com Manuel de Sousa, baseado nos dizeres da carta profética
             de D. João, escrita na madrugada da batalha;
          - desaprova igualmente o casamento baseado na superstição de que, se D. João voltasse
             e aparecesse a D. Madalena, não se iria embora sem lhe aparecer também;
          - daí vieram os «ciúmes», as alusões, os agouros, os «futuros»;
          - este conflito de Telmo com D. Madalena fica sempre sem solução;
     * com Maria (I, 2):
          - a princípio, não a podia ver, por causa do seu nascimento em berço ilegítimo ("Digna
             de nascer em melhor estado");
          - o conflito com Maria termina, porque ela acabou por o cativar;
          - novo conflito (II, 1), no entanto, se pode observar nas evasivas, nas meias-verdades,
             nas reticências, na relutância em revelar a identidade da personagem do retrato;
          - é Manuel de Sousa quem identifica essa personagem (II, 2);
    * com Manuel de Sousa (I, 2):
          - apesar das qualidades que lhe reconhece, é, em sua opinião, inferior a D. João;
          - por conta deste tem "ciúmes" e alguma aversão por o considerar um intruso;
          - o conflito resolve-se quando Manuel de Sousa o cativa pelos atos de resistência aos
             governadores, que culminam com o incêndio do próprio palácio (I, 7, 8 e 12),
             chegando mesmo a admirá-lo;
     * com D. João de Portugal (III, 4 e 5):
          - o amor a Maria venceu o amor a D. João;
          - por isso, chega a oferecer a sua vida em troca da vida "daquele anjo" e a desejar a
             morte de D. João.

. De Maria:
     * não tem conflito interior;
     * com D. Madalena:
          - a propósito da sobrevivência e do regresso de D. Sebastião (cena 3, ato I) - D.
             Madalena não acredita, nem lhe convém acreditar nem uma coisa nem outra, enquanto
             Maria acredita firmemente;
          - desconfia que a mãe oculta alguma coisa muito importante; por isso, está sempre
             atenta, a observar os sobressaltos, as reações, a ansiedade da mãe a seu respeito; por
             isso, lê nas palavras, nas ações e nos gestos da mãe e do pai, à procura de indícios, de
             respostas para a sua curiosidade (cena 4);
          - não pode cumprir as esperanças nela depositadas (cena 4, ato I);
          - por isso, desejava ter um irmão;
     * com Manuel de Sousa:
          - duvida do patriotismo do pai (cena 3, ato I), por causa das atitudes que ele toma, ao
             ouvir falar de D. Sebastião ("Ó minha mãe, pois ele não é por D. Filipe, não é,
             não?");
          - a hipótese não tem fundamento.;
     * com os governadores de Lisboa (I, 5): a resistência à tirania, concretizada na ideia de
        lutar e organizar a defesa, para que aqueles não entrem no seu palácio;
     * com Telmo Pais (II, 1), a propósito da identidade da personagem do retrato:
          - as meias-verdades, as evasivas de Telmo, que a todo o transe pretende ocultar-lhe o
             nome do cavaleiro retratado;
          - os indícios observados por Maria, nos momentos que passou ali mesmo com a mãe,
             no dia da mudança para este palácio; a intuição do segredo e a persistência em a
             manterem na ignorância daquele "mistério";
     * com D. João de Portugal:
          - antes da mudança de palácio (cena 4, ato I):
               . pressente intuitivamente que alguém, fazendo sofrer a mãe, também não a deixa
                 ser feliz;
               . por isso, procura uma resposta, com os meios ao seu dispor: a capacidade de
                 "ler nas estrelas" e os sonhos e as visões ("... leio... nas estrelas do céu também,. 
                 e sei cousas...");
          - depois da mudança (II, 1 e 2):
               . fica a saber, a partir da atitude da mãe, que a figura representada no retrato e de
                 quem ignora a identidade, é esse alguém, causador de todos os sofrimentos;
               . daí a curiosidade e a persistência das perguntas a Telmo até à revelação da
                 identidade do retratado; no entanto, ela já o sabia "de um saber cá de dentro";
          - por fim (III, 11 e 12):
               . revela que sempre houve alguém a interpor-se entre ela e a mãe, entre ela e o
                 pai, por intermédio da figura simbólica de um anjo vingador: "Mãe, mãe, eu
                 bem o sabia... nunca to disse, mas sabia-o; tinha-mo dito aquele anjo que
                 descia com uma espada de chamas na mão, e a atravessava entre mim e ti,
                 que me arrancava dos teus braços quando eu adormecia neles... que me fazia
                 chorar quando meu pai ia beijar-me no teu colo";
               - identifica-o: "É aquela voz, é ele, é ele!".

. De Manuel de Sousa Coutinho:
     * não possui conflito de consciência;
     * não entra em conflito com outras personagens, exceto com os governadores;
     * a sua hybris desencadeia e agudiza os conflitos das outras personagens.

. De D. João de Portugal:
     * alimenta os conflitos dos outros:
          - com D. Madalena: a consciência atormentada pelos remorsos;
          - com Telmo:
               . a perda do aio por causa de Maria;
               . a luta contra a resistência de Telmo à sua ordem de mentir para salvar D.
                 Madalena;
          - com Manuel de Sousa Coutinho:
               . pela felicidade de ter uma filha;
               . por se sentir espoliado por ele e por D. Madalena: "Tiraram-me tudo";
          - com Maria:
               . pela felicidade de ter uma filha;
               . por o ter expulsado do coração de Telmo.

Coro

     O coro está presente em diversas circunstâncias:
          - nos agouros e prenúncios de desgraça próxima de Telmo;

Pathos

. De D. Madalena:
     - os terrores que se sente desde a cena I;
     - o sofrimento por causa do adultério;
     - o sofrimento pela incerteza da sorte do primeiro marido;
     - o sofrimento violento pela volta do primeiro marido;
     - o sofrimento cruel após conhecer a existência do primeiro marido (vivo):
          . pela perda do marido;
          . pela perda de Maria.

. De Manuel de Sousa Coutinho:
     - sofre a angústia pela situação presente e futura da filha (III, 1);
     - sofre a angústia pela situação da sua esposa (III, 8).

. De D. João de Portugal:
     - sofre o esquecimento a que foi votado;
     - sofre pelo casamento de sua mulher e pela família que constituiu;
     - sofre por não poder travar a marcha do destino (III, 2).

. De Maria de Noronha:
     - sofre fisicamente, acossada pela tuberculose;
     - sofre psicologicamente:
          . não obtém resposta a muitos agouros;
          . sofre a vergonha da ilegitimidade.

. De Telmo Pais:
      - sofre pela dúvida constante que o assalta acerca da morte de D. João de
         Portugal;
      - sofre, hesitando entre a fidelidade a D. João e a Manuel de Sousa;
      - sofre a situação de Maria.

Hybris

. De D. Madalena:
  • contra as leis e os direitos da família:
  • nunca amou D. João de Portugal;
  • "pecado" / adultério no coração: amou Manuel de Sousa assim que o viu, ainda estava casada com D. João; 
  • consumação do "pecado" pelo casamento com Manuel de Sousa - ela não tem a certeza absoluta da morte do primeiro marido;
  • profanação de um sacramento - o casamento;
  • bigamia;
  • impiedade.
. De Manuel de Sousa:
  • revolta contra as autoridades de Lisboa, recusando-se a recebê-las no seu palácio (I, 8, 11 e 12; II, 1);
  • desafio o Destino ao incendiar o próprio palácio (I, 11 e 12);
  • recusa o perdão dos governadores, "se ele quisesse dizer que o fogo tinha pegado por acaso" (II, 1);
  • inconscientemente, participa da hybris de sua esposa:
  • colabora na mentira;
  • profana um sacramento;
  • comete adultério;
  • passa a viver em bigamia;
  • usurpa o lugar que pertence, por direito, a D. João de Portugal.
. De D. João de Portugal:
  • abandona a esposa / família, ainda que o faça por ideais nobres acompanhar o rei à guerra, em defesa do reino e da Fé);
  • o abandono da esposa é um crime contra as leis e os direitos da família, porque a destrói - é um crime de impiedade;
  • embora vivo, depois da batalha, fica prisioneiro, é levado cativo para Jerusalém. E, durante 21 anos, não dá notícias da sua existência, embora contra sua vontade;
  • aparece quando todos o julgavam morto, arrastando consigo a tragédia.
. De D. Maria de Noronha:
  • a interrupção inesperada e violenta das cerimónias religiosas constitui profanação (II, 11);
  • a insolência e a blasfémia contra Deus: "Que Deus é esse que está nesse altar, e quer roubar o pai e a mãe a sua filha?";
  • a insolência contra os ministros sagrados nas suas funções: "Vós quem sois, espetros fatais?... quereis-mos tirar dos meus braços?";
  • a revolta contra D. João de Portugal - contra os direitos deste à esposa, à família, à própria vida, direitos baseados na lei divina e nas leis humanas: "... que me importa a mim com o outro? Que morresse ou não, que esteja com os mortos ou com os vivos, que se fique na cova ou que ressuscite para me matar?";
  • a invocação de morte violenta sobre si própria: "Mate-me, mate-me, se quer...";
  • o desprezo pelas leis divinas e humanas - o amor e a ternura com que tinha sido criada não suprem a ilegitimidade do matrimónio dos pais;
  • a tentativa de renegar o seu estado de filha ilegítima;
  • a revolta contra a profissão religiosa dos pais;
  • a incitação dos pais à mentira: "Pobre mãe! Tu não podes... coitada!... não tens ânimo... Nunca mentiste? Pois mente agora para salvar a honra da tua filha, para que lhe não tirem o nome de seu pai.".
. De Telmo Pais:
  • afeiçoou-se a Maria;
  • relativamente a D. João:
  • perjúrio e repúdio do amigo e "filho";
  • desejo de que ele tivesse morrido, para não impedir a felicidade e a vida de Maria. 

Destino

     O destino está presente ao longo da obra, desde o seu início. D. Madalena, por exemplo, sente-se perseguida por ele.
     As personagens são vítimas do Destino inexorável que se «diverte» a «brincar» com as suas vidas, antes de sobre elas se abater irremediavelmente. 

Fado: Património Imaterial da Humanidade

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