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domingo, 4 de novembro de 2012

Análise do Poema XXXVI - "E há poetas que são artistas"

            Neste poema, cujo tema é a reflexão sobre o processo de criação poética e a sua relação com a Natureza, Caeiro reflete sobre poesia, contrapondo duas conceções.
            A primeira é a dos poetas que designa, ironicamente, por artistas, que a veem como um trabalho, uma construção, que constroem os seus poemas verso a verso, que valorizam o lado artificial ou mecânico do ato de criação: “trabalham nos seus versos / Como um carpinteiro nas tábuas” (comparação); “pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro / E ver se está bem, e tirar se não está!” (comparação e exclamação). Estas comparações com um carpinteiro e com os pedreiros servem para destacar o trabalho formal, minucioso e exigente, dos poetas que se dedicam a essa poesia elaborada e produzida como outras construções humanas. Dito de outra forma, expressam a preocupação desses poetas com a seleção das palavras, da combinação de rimas / sonoridades, de arranjos estilísticos, de ritmos poéticos, de dimensionamento dos versos, etc., ou seja, uma noção de poesia que exige trabalho de dimensionamento, equilíbrio, polimento e construção dos versos, pensando muito a experiência. No fundo, Caeiro está a criticar todos aqueles que não conseguem ser espontâneos (verso 4) no ato de criação poética, facto que o leva a manifestar estranheza e a sentir pena deles, antes a encaram como um trabalho árduo de intelectualização.
            Ora, para Caeiro, “a poesia não é um trabalho nem uma convicção, é uma forma de revelar os mistérios da Natureza” e de se assemelhar cada vez mais a ela (Nuno Hipólito, No Altar do Fogo). Esta é a segunda conceção de poesia, a que se afirma quando o «eu» poético se declara um fruidor incondicional da Natureza, que “está sempre bem e é sempre a mesma”. Aparentemente, não há absolutamente nada a mudar nela. Deste modo, a criação poética deve resultar espontaneamente da identificação do «eu» poético com a Natureza. Assim se explica o seu lamento relativamente a esses poetas: “Que triste não saber florir” (exclamação), ou seja, que triste não comungar da naturalidade, simplicidade e espontaneidade da Natureza e não ser capaz de fazer da criação poética uma ação natural e espontânea. Ele considera que é “triste” ter de trabalhar os versos “como um carpinteiro nas tábuas” e não ser capaz de os fazer “florir” sem artifícios, de uma forma simples e natural. Ora, sendo a Natureza a verdadeira arte, a poesia deverá ser como ela, isto é, a expressão sensorial, nítida, fluida do que nos rodeia.
            Por outro lado, insiste na relação íntima com a Natureza, a fonte de inspiração e criação poética: “a única casa artística é a Terra toda” (v. 7 – metáfora). Por isso, porque a harmonia já existe nela, não é necessário intelectualizar o ato de escrita. O essencial em poesia é registar o mundo que o rodeia de forma tão natural e espontânea como é o ato de florir ou respirar (v. 9). Caeiro é o poeta da Natureza que privilegia o olhar, daí que tenha apenas de estar atento ao que ela “diz”.
            Mesmo reconhecendo a impossibilidade de compreensão entre ele e as flores, o sujeito poético sabe que em ambos – na Natureza e na comunhão do homem com ela – mora a verdade e que há uma “comum divindade” que lhes permite usufruir dos encantos da Terra, das “Estações contentes” e dos cânticos do vento (personificação). Para que tal suceda, é necessário evitar a abstração do pensamento e privilegiar uma relação natural, espontânea (“como quem respira”) com a “única casa artística” que é a “Terra toda”. Ora, é esse contacto com a Natureza a única forma de aceder à “verdade” (v. 13). Note-se o desprendimento da vida em harmonia com os elementos naturais (“De nos deixarmos ir e viver pela Terra” – v. 15), uma espécie de mãe protetora que o leva ao colo, que embala e transmite paz e tranquilidade (v. 17), evitando a existência de “sonhos” – sonhar é pensar, na medida em que se constitui como uma atividade mental durante o sonho. É, no fundo, mais uma afirmação da recusa do ato de pensar, de rejeição de qualquer atividade mental que se oponha à autenticidade dos elementos da Natureza que descreveu.

            No poema, em suma, Caeiro expõe a sua “teoria poética”, que pode resumir-se ao seguinte: a poesia é o simples ato de captar a Natureza através dos sentidos de forma espontânea, de acordo com uma relação de comunhão e harmonia. Noutro comprimento de onda, movimentam-se os poetas que fazem da poesia um trabalho árduo de intelectualização, de exposição de conceitos e combinação artística das palavras. Repetindo, estamos perante o confronto entre uma forma de elaborar poesia caracterizada pela simplicidade, objetividade, espontaneidade, naturalidade, e outra artificial, muito pensada e elaborada.
            Em consonância com estes princípios e com o tipo de poesia que defende, este poema é caracterizado pelo versilibrismo, pela ausência de rima e pela linguagem simples, com um vocabulário igualmente simples e repetitivo (“está”, “sempre”), pertencente aos campos lexicais da poesia (“poetas”, “versos”) e da Natureza, fonte inspiradora do sujeito lírico (“florir”, “Terra”, “flores”, “Estações”, “vento”), bem como pelo uso de expressões familiares e comparações com elementos naturais.
            Por outro lado, a adjetivação é escassa, resumindo-se à presença de quatro adjetivos: “triste”, “artística”, “comum” e “contente”. No que diz respeito à estruturação sintática, predomina as orações coordenadas copulativas, típicas do discurso oral, em detrimento da subordinação, embora haja a assinalar a presença de orações subordinadas temporais, relativas restritivas e infinitivas.
            A pontuação expressiva concorre de igual modo para conferir ao poema um certo tom coloquial.
            A nível estilístico, destaca-se a escassez de figuras, verificando-se o uso dos recursos semântica e sintaticamente mais simples, como a comparação (vv. 3 e 5), a metáfora (vv. 1, 4 e 6), a personificação (vv. 16 e 17), a anáfora (vv. 16-18) e o polissíndeto (repetição da conjunção coordenativa copulativa «e», que acentua o estilo simples de Caeiro, estabelecendo a ligação sumativa como processo de acumulação de argumentos.

            Em suma, o poema XXXVI evidencia alguns dos traços centrais da poética de Alberto Caeiro:
. o sensacionismo: “”E levar ao como pelas estações contentes / E deixar que o vento cante para adormecermos” (vv. 16 e 17);
. a atitude antimetafísica, de recusa do pensamento: “Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira.” (v. 9); “E não termo sonhos no nosso sono.” (v. 18);
. o objetivismo: “E olho para as flores e sorrio… (v. 10);
. a espontaneidade e naturalidade: “Que triste não saber florir!” (v. 4);
. o paganismo, isto é, a crença em diversas divindades: “Mas sei que a verdade está nelas e em mim / E na nossa comum divindade” (vv. 13 de 14);
. o panteísmo, ou seja, a doutrina segundo a qual Deus e o mundo seriam uma só substância, não sendo aquele um ser pessoal distinto deste): “Mas sei que a verdade está nelas e em mim / E na nossa comum divindade” (vv. 13 de 14);
. o misticismo, quer dizer, a atitude afetiva caracterizada pela crença na possibilidade de comunicação direta com o divino, inacessível ao conhecimento racional): “”Mas sei que a verdade está nelas e em mim” (v. 13), “De nos deixarmos ir e viver pela Terra / E levar ao colo pelas estações contentes” (vv. 15 e 16), “E não termos sonhos no nosso sono.” (v. 18).

            Por outro lado, são visíveis alguns dos traços que aproximam Caeiro do ortónimo e dos outros heterónimos:

. Caeiro e Pessoa:
- a linguagem simples;
- a musicalidade espontânea e natural do discurso, que leva por vezes a quebrar a regularidade métrica;
- a tendência de Caeiro para o refúgio na Natureza, uma tentativa de evasão, uma certa recusa do pensamento (“Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira”), que denunciam a inquietação constante e a intelectualização do sentir (marcas de Pessoa);
- divergem pelo facto de Pessoa fazer uso da regularidade estrófica e rimática, ao contrário de Caeiro.

. Caeiro e Reis:
- aceitação natural das coisas (“… a única casa artística é a Terra toda / Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma”);
- o elogio da vida campestre, a fazer lembrar a áurea mediania clássica: “De nos deixarmos ir e viver pela Terra / E levar ao colo pelas estações contentes / E deixar que o vento cante para adormecermos…”.

. Caeiro e Campos:
- são ambos espontâneos;
- voltam-se para o exterior;
- cultivam o verso livre;
- são sensacionistas: privilegiam as sensações em detrimento do pensar (a segunda fase de Campos). 

sábado, 3 de novembro de 2012

"A verdade morreu"

A Verdade morreu
Não se estima a piedade,
A infâmia e o erro
São fortes e poderosos,
Não há quem busque ser
Virtuoso e humilde,
E o respeito de Deus
Foi esquecido.
Ninguém sente desgraça
Em ser pedinte,
Grande é a vergonha,
As almas são pequenas face à culpa.
Em vez de amigos
Há inimigos.
Na companhia
Há inveja,
E amor fraternal
É um engano.
Honra
Não mais existe.
Dinheiro é a Palavra –
E quem o tem é senhor.
Todos fazem dele discussão.
Meu Deus, o que será de nós!


Ulma Seligman (sécs. XVI e XVII)

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Poema I ("O Guardador de Rebanhos")


     Este texto abre a obra O Guardador de Rebanhos, constituída por 49 poemas, todos com métrica irregular e verso branco, escrita maioritariamente no dia 8 de março de 1914, o «dia triunfal», de pé contra uma cómoda, segundo a carta sobre a génese dos heterónimos a Adolfo Casais Monteiro.
     Convém, porém, esclarecer que, de acordo com uma análise mais cuidada do espólio, nenhum poema está datado desse dia, antes se situam entre 4 de março e 7 de maio de 914. Este facto poderá ter três explicações: 1.ª) "o gosto de Pessoa pelo drama e pela encenação, pela sua própria memória futura, levaram a que ele ficcionasse o nascimento da obra maior de Caeiro num só dia"; 2.ª) "ele, não se recordando exatamente desse período - pouco mais de duas semanas, vinte anos atrás - as sintetizasse num só dia, realmente um dia glorioso, (...) que ele recordava por ser o dia em que tinha «inventado» os heterónimos"; 3.ª) "o dia 8 de março de 1914 tem um significado especial para Fernando Pessoa", daí a sua escolha.
     Por outro lado, O Guardador de Rebanhos era apenas uma parte de uma obra maior de Alberto Caeiro, intitulada Ficções do Interlúdio, que englobaria a totalidade da produção dos heterónimos.
     Além de O Guardador de Rebanhos, há ainda a registar outras duas obras de Caeiro: Poemas Inconjuntos (17 poemas) e O Pastor Amoroso (8 poemas).

     O sujeito poético inicia o poema com a afirmação de que nunca guardou rebanhos, isto é, de que não é um pastor na realidade, mas comporta-se como se o fosse («Mas é como se os guardasse» - v. 2), ou seja, há uma parte de si que se comporta como um pastor - a alma -, uma alma de pastor (comparação do verso 3) que «anda pela mão das Estações / A seguir e a olhar» (vv. 5-6).
     Estes dados permitem-nos, desde já, concluir que estamos na presença de um pastor por metáfora que procura estabelecer com a natureza uma relação de comunhão, de harmonia, de simbiose: «Conhece o vento e o sol / E anda pela mão das Estações». De pastor, tem o deambulismo, o andar constantemente e sem rumo definido, observando o que o rodeia, a variedade inexaurível da natureza, concentrado numa única atividade: olhar («A seguir e a olhar.» - v. 6). A sua contemplação da natureza, da beleza primordial, faz com que o «eu» sinta a realidade como se a vivesse intensamente, de acordo com um modo de vida similar ao de um pastor, que contempla, além da proximidade e intimidade ["(...) Natureza sem gente" - v. 7]. De facto, o pastor é o símbolo da solidão do pensamento contemplativo: é o homem que está sozinho na natureza e que ocupa os seus dias vagueando com o seu rebanho, sem a perturbar, alimentando-se do que ela dá, «vislumbrando os seus segredos no silêncio». Daí que o «eu» se considere um pastor, visto que incorpora em si as qualidades de um pastor, mas não é limitado pela vida que um pastor leva. Ou seja, ele serve-se da "arte do pastor para atingir o estado contemplativo, como um budista se serviria da meditação".
     A consequência imediata de o sujeito poético possuir uma alma assim é ter acesso a «toda a paz» que a natureza sem gente proporciona - ela vai «sentar-se» a seu lado (vv. 7-8). Caeiro apresenta-se, assim, em suma, como um poeta metáfora e como o poeta da natureza e do olhar.

     No entanto, no verso 9, o sujeito poético confessa-se triste. Numa primeira leitura, essa tristeza é motivada pelo fim do dia, representado pelo pôr do sol, dado que, quando a noite cai sobre a natureza, ele sentirá maiores dificuldades em contemplar a natureza. E, como já sabemos, Caeiro é o poeta do olhar, o sensacionista para quem a visão é o sentido primordial. Por outro lado, note-se como a tristeza invade o «eu» de forma impercetível, como a borboleta que entra impercetivelmente pela janela.
     A nível estilístico, é de salientar, na primeira estrofe, antes de mais a personificação da natureza (vv. 5, 7-8) e as comparações (vv. 3, 9 e 13), recursos que evidenciam a relação íntima e intensa que o «eu» estabelece com ela. Por outro lado, genericamente, a comparação é o recurso estilístico de que Caeiro se socorre para exprimir a concretização do abstrato, para aproximar o imaginário do real, tornando-o simples e acessível. Por seu turno, a conjunção coordenativa adversativa «mas» (v. 9) sugere o caráter contraditório da tristeza do sujeito poético, pois, se ele tem à sua volta tudo o que deseja, por que razão se sentirá triste?

Os "rankings" das escolas vistos por Maria Filomena Mónica


Os "rankings" das escolas

Por Maria Filomena Mónica                       

OS JORNAIS publicaram recentemente as listas derankings, ou seja, a ordenação das escolas segundo as notas obtidas pelos estudantes. À cabeça, surgem as privadas, o que nos pode levar a pensar que os seus docentes são melhores do que os das públicas. Erro: o êxito académico não depende apenas do que se passa dentro das instituições, mas de uma multiplicidade de factores, de que a origem social, associada à localização, é um dos mais importantes. Basta lembrar que, por hora, os filhos dos ricos são expostos a mais 1.500 palavras do que os dos pobres, o que leva a que, aos 4 anos, exista já uma diferença, a favor dos primeiros, de cerca de 32 milhões de palavras.
Uma vez que as públicas têm de cobrir o território nacional, as do interior exibem elevadas taxas de insucesso. A secundária de Portalegre não conseguiu uma única média positiva; na da Guarda, três das cinco melhores escolas não conseguiram atingir os 10 valores; na freguesia de Rabo de Peixe, na ilha de S. Miguel, verificaram-se, no exame do 9.º ano, as piores classificações do país. O Presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares lembrava que, em vez de se concentrarem no lugar nos rankings, os docentes se deviam preocupar antes com «a mais valia» que as escolas traziam aos alunos, após o que, com razão, salientava que nada é uma fatalidade, ou seja, que mesmo os alunos desfavorecidos podiam alcançar bons resultados. Era esse o caso das Escola Básicas de Rio Caldo (Braga), Dr. Manuel Magro Machado (Portalegre) e Couço (Santarém) que, nos exames de Matemática e de Português do 9ª ano tinham subido mais de mil lugares.
Felizmente, as leis sociológicas não são férreas. Não foi em Lisboa que as melhores notas foram obtidas. No universo das públicas, destacaram-se a B+S de Vila Cova (Barcelos), com a média mais alta do país em Matemática A (142,55) e a Secundária da Gadanha da Nazaré, com a mais elevada nota em Geometria Descritiva (178,25). Curiosamente, provando que as pessoas são mais importantes do que os edifícios, o Liceu Passos Manuel cujo restauro, no âmbito da Parque Escolar, exigiu ao Estado 26 milhões de euros, ficou em 481.º lugar, com uma média de 7,8 valores, o que o coloca entre os dez piores. É sabido que o grupo social que mais importância dá à educação é a classe média. Não me espanta assim que a melhor escola secundária de Lisboa tenha sido a José Gomes Ferreira, em Benfica, cujos pais têm uma participação nas reuniões na ordem dos 70 a 80 %.
Portugal teve de fazer um grande esforço depois de 1974. Nem tudo correu bem, mas o país conseguiu escolarizar a maior parte dos jovens, facto que levou a que as escolas sejam hoje muito diferentes das que existiam na minha adolescência, quando, ao terminar a primária, apenas 2 em cada 10 alunos continuava a estudar. Para muitos, a escola contemporânea representa um mundo radicalmente novo. É por isso que o difícil não é ensinar filhos de privilegiados mas sim jovens que, em casa, nunca viram os pais abrir um livro. 
«Expresso» de 27 Out 12

Hallowe'en


Da solidão tecnológica

Hoje já clicou com o seu vizinho?
Por Ferreira Fernandes
     NA ÚLTIMA 'Sábado', o jornalista Luís Silvestre conversa com a cientista britânica Susan Greenfield, especialista dessa transformação tremenda que está a acontecer no nosso cérebro com os computadores e outros saberes de ponta dos dedos.
     Já uma vez, na pré-história, os dedos - o facto de o polegar ser oponível aos outros - nos aumentaram o cérebro. 
     Pois há dias vi um movimento em sentido contrário. Um desenho, naturalmente feito por computadores, do homem do futuro: vamos ser mais feios, cabecinha mais de ervilha, porque não precisamos de tanto espaço para a memória. 
     Como eu percebo essa previsão. No liceu eu era campeão das capitais, até sabia de nomes hoje desaparecidos de cidades, como Santa Maria Bathurst (fui ver: hoje, Banjul, capital da Gâmbia), mas custava-me horas a decorar. Agora, com dois dedilhares, sei quantas pizarias há em Mendoza, Argentina, e em que rua ficam. E logo esqueço, estreitando, se não a minha cabeça, a dos meus descendentes. 
     Voltando à entrevista da cientista, encontro um alerta para uma perda, não essa hipotética do tamanho da cabeça, mas não menos preocupante: a da empatia. Susan Greenfield diz: "As relações entre as pessoas precisam de muito treino, cara a cara, e há uma nova geração que só comunica por computador." Tele, isto, tele, aquilo, vamos cada vez mais longe, quando o que mais falta nos faz é falar com o vizinho. 
     Foi bom ouvir uma cientista falar da necessidade do "cara a cara". 
DN, 29 de outubro de 2012

domingo, 28 de outubro de 2012

O Sentido dos Heterónimos

     "Custa-me imaginar que alguém possa um dia falar melhor de Fernando Pessoa que ele mesmo. Pela simples razão de que foi Pessoa quem descobriu o modo de falar de si tomando-se sempre por um outro. Quando encarnada em figuras que parecem vivas - e ele supunha mais vivas do que ele - essa descoberta de si como outro, convertida em jogo da sua verdade, chamou-se Heteronímia.
     O «mito-Pessoa», tanto em si como no seu estatuto poético de amplitude hoje universal, repousa essencialmente na encenação prodigiosa a que Pessoa submeteu o seu radical sentimento de inexistência. O célebre «drama-em-gente», a invenção dos Pessoa-outros destinados a cumprir pelo único que havia os sonhos de felicidade ou grandeza imaginárias que só de os pensar o destruíam, é o último ato do longo processo de dissolução do Eu inaugurado pelo Romantismo.
     A poesia de Caeiro, Reis e Campos não precisa de outro «sujeito» que o da voz «anónima», anónima como nenhuma outra da nossa tradição - por isso nos tocou tanto - que nele se fala e nos fala, tornando-nos imaginariamente felizes em Caeiro, indiferentes à felicidade ou infelicidade em Reis e impossivelmente felizes em Campos. A criação dos heterónimos é só ficção de interlúdio, maneira para Fernando Pessoa ter sido, num breve momento, futurista com Álvaro de Campos, romano e invulnerável à angústia com Ricardo Reis e divinamente grego, alegre ou triste como a natureza, com Alberto Caeiro. Tudo isto, para nos dizer, como ninguém o dissera antes, que Deus, o deus da nossa alma e da nossa cultura milenarmente cristãs, estava morto e, com ele, as crenças, os valores, as ilusões, a moral, a política de que era a suprema e materna sigla. Mas o que Pessoa compreendeu, antecipando-se a deduções futuras e óbvias, foi que essa morte de Deus era, ao mesmo tempo, morte do Homem, fim da ilusão humanista que imaginava ainda poder justificar, na perspetiva de uma ausência de Sentido transcendente para o universo e a História, os mesmos valores, as mesmas ilusões consoladoras, a mesma moral tranqulizante.
     Caeiro, Campos, Reis, não são mais que sonhos diversos, maneiras diferentes de fingir que é possível descobrir um sentido para a nossa existência, saber quem somos, imaginar que conhecemos o caminho e adivinhamos o destino que vida e História nos fabricam. Ter sonhado esses sonhos não libertou Pessoa da sua solidão e da sua tristeza. Mas ajudou-nos a perceber que somos, como ele, puros mutantes, descolando para formas inéditas de vida, para viagens ainda sem itinerários. Com Caeiro fingimos que somos eternos, com Campos regressamos dos impossíveis sonhos imperiais para a aventura labiríntica do quotidiano moderno, com Reis encolhemos os ombros diante do Destino, compreendemos que o Fado não é uma canção triste mas a Tristeza feita verbo."

Eduardo Lourenço, Fernando, Rei da nossa Baviera

A heteronímia

     "A palavra heterónimo deriva do grego e significa «outro nome». Pessoa usou este neologismo, o qual se distingue da palavra pseudónimo, pois esta é entendida como um nome suposto que substitui o nome próprio do autor, sem que isso altere a sua personalidade literária.
     O caso de Pessoa ganha um sentido muito especial, porque a heteronímia afeta o sentido mesmo da sua obra considerada na sua globalidade. Tendo em vista Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis, Pessoa procura ser «esses outros», que se constituem «não eus sintetizados num eu-postiço». Daí o ter considerado essas personagens autorais - para as quais elaborou biografias que, curiosamente, não fez em relação a si próprio - como sendo «minhamente alheias».
     O recurso aos heterónimos consiste, pois, numa passagem da expressão pessoal, isto é, de uma personalidade que seria a do autor, para uma personificação estética que é já a do texto ou da escrita. É com este sentido que Pessoa utilizou aquela expressão, de modo que a rotação que se faz da personalidade propriamente dita para a personificação estética implica múltiplas questões que foram abordadas pelo poeta ou estão implícitas em tal noção: o papel desempenhado pelo autor, a sinceridade ou autenticidade, o fingimento (expressão que se torna central na sua poética e que o início de um poema seu consagrou: «o poeta é um fingidor»), o caráter dramático da poesia, a redução da subjetividade, etc.
     Pessoa afirma, referindo-se aos heterónimos: «Não há que buscar em quaisquer deles ideias ou sentimentos meus, pois muitos deles exprimem ideias que não aceito, sentimentos que nunca tive. Há simplesmente que os ler como estão, que é aliás como se deve ler.». Passa-se, numa afirmação como esta, do plano da escrita poética para o da leitura, havendo nesta uma circularidade que a vai fixar, finalmente, na própria realidade textual; ler os heterónimos «como estão» circunscreve a sua realidade à do texto que, por sua vez, lhes confere a realidade que é a da própria escrita."

Fernando Guimarães, «Heteronímia - Poética»,
in Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português

"Não sei quantas almas tenho" - Correção do questionário


1. C

2. A

3. C

4. A

5. B

6. A

7. C

8. B

9. A

10. B

11. C

12. A

13. B

14. A

15. A

16. C

17. B

18. C

19. C

Miguel Relvas teve equivalência a cadeiras que não existiam

Licenciatura na Lusófona

Relvas teve equivalência a cadeiras que não existiam

27.10.2012 - 09:27 Por PÚBLICO
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Miguel Relvas completou a licenciatura no espaço de apenas um ano mas arrisca-se a perdê-la
Miguel Relvas completou a licenciatura no espaço de apenas um ano mas arrisca-se a perdê-la (Foto: Nuno Ferreira Santos)
 Miguel Relvas, além de ter precisado de fazer apenas quatro das 36 cadeiras da licenciatura da Universidade Lusófona, teve também equivalência a cadeiras que não existiam.











Fonte: Público

     Agora, expliquem-me que autoridade tem um qualquer professor para falar de exigência aos seus alunos.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Da ânsia de culpados ou da loucura justiciosa italiana

Povo adora culpar e leva com deuses
Por Ferreira Fernandes
     SEIS cientistas italianos da Comissão de Grandes Riscos e o respetivo coordenador governamental foram condenados por não terem previsto o terramoto em Áquila, a 6 de abril de 2009 (300 mortos). 
     Tinha havido uma sucessão de avisos sísmicos desde dezembro de 2008, mas a comissão concluíra não haver perigo maior. Os cientistas eram reputados e um deles, o professor Enzo Boshi, era o presidente do Instituto de Geofísica e Vulcanologia. Todos condenados a seis anos de prisão. 
     Apaziguado pela sentença, o familiar de uma das vítimas disse: "Esperamos que agora os nossos filhos tenham as vidas mais seguras." Provavelmente ele está convencido de que, daqui para diante, o tribunal emitirá atempadamente um edital sobre o próximo terramoto. Terá de ser tribunal, terá de ser juiz, pois são as únicas entidades humanas imunes ao erro. 
     Como se sabe, se amanhã houver provas de que aquele sismo de Áquila era absolutamente impossível de prever - e, logo, a sentença ter sido errada -, o juiz que esta semana condenou não responderá pelo erro. Ele está protegido pela lei. Já o sismólogo Boshi, como o médico Fulano que não curou o cancro ou o piloto Sicrano que não aguentou a turbulência na aterragem estão sujeitos ao atira a pedra na Geni, maldita Geni. 
     A ânsia de encontrar culpado sempre foi própria do povo. Agora arranjou um aliado de peso e, ou muito me engano, vai ser corneado na parceria: o próximo deus vai vestir toga. 

Diário de Notícias, 24 de outubro de 2012

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Morreu o sobrevivente mais velho de Auschwitz

Antoni Dobrowolski


     O campo de concentração nazi era «pior do que o inferno de Dante», disse Antoni Dobrowolski numa entrevista de 2009.
     Dobrowolski, que faleceu aos 108 anos - era o mais velho sobrevivente a um campo nazi conhecido - foi enviado para o campo da morte de Auschwitz por ter desafiado as ordens dos alemães, visto que manteve aulas secretas (ele, que era professor) durante a ocupação nazi da Polónia, invadida em 1939, quando os nazis proibiram a população local de frequentar a escola.
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