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sábado, 10 de novembro de 2012

Epigrama VI, 36

Papilo, um pau tão grande tens quanto o nariz
Que sempre, ao levantar, podes cheirar.

                                               Marcial

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

A vitória de Obama


A austeridade pela Grécia, ou da regressão humana

25/10/2012 - 16h39

Desempregados gregos deixam de ter acesso a atendimento médico

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LIZ ALDERMAN
DO "NEW YORK TIMES", EM ATENAS

     Como chefe do maior setor de oncologia da Grécia, o médico Kostas Syrigos achou que já tinha visto tudo. Mas nada o tinha preparado para o encontro com Elena, uma desempregada cujo câncer de mama tinha sido diagnosticado um ano antes de sua consulta com ele.
     No momento da consulta, o tumor já tinha alcançado o tamanho de uma laranja e rompido a pele, deixando uma ferida cujo pus ela estava enxugando com guardanapos de papel.
     "Quando a vimos, ficamos sem palavras", disse Syrigos, chefe de oncologia do Hospital Geral Sotiria, na região central de Atenas. "Todo o mundo chorou. Coisas como essas são descritas nos livros didáticos de medicina, mas a gente nunca via em primeira mão porque, até agora, qualquer pessoa que adoecesse neste país sempre podia ser atendida."

Angelos Tzortzinis/The New York Times
O cardiologista Giorgos Vichas, que participa de um grupo clandestino de atendimento médico na Grécia
O cardiologista Giorgos Vichas, que participa de um grupo clandestino de atendimento médico na Grécia

     A vida na Grécia foi virada do avesso desde que a crise da dívida tomou conta do país. Mas em poucas áreas a mudança tem sido mais marcante que na saúde.
     Até pouco tempo atrás, a Grécia tinha um sistema de saúde típico da Europa, com empregadores e indivíduos contribuindo para um fundo que, com assistência do governo, financiava o atendimento médico universal. Isso mudou em julho de 2011, quando a Grécia firmou um acordo com credores internacionais, recebendo um empréstimo para evitar o colapso financeiro.
     Agora os gregos que perdem seus empregos recebem benefícios pelo prazo máximo de um ano. Depois disso, se não puderem pagar a conta, eles ficam por conta própria, obrigados a arcar com seus próprios custos de saúde.
As mudanças estão forçando cada vez mais pessoas a buscar ajuda fora do sistema de saúde tradicional. Elena, por exemplo, foi encaminhada para Syrigos por médicos que participam de um movimento clandestino que surgiu no país para dar atendimento a quem não tem seguro médico.
     "Hoje, na Grécia, estar desempregado significa a morte", disse Syrigos. "Estamos caminhando para a mesma situação em que os Estados Unidos estavam, na qual, se você perde o emprego e não tem convênio médico, você deixa de ter direito a qualquer atendimento."
     Com os cofres públicos esvaziados, os suprimentos médicos estão em níveis tão baixos que alguns pacientes têm sido forçados a trazer os seus de casa, inclusive coisas como seringas e stents (próteses metálicas para a desobstrução de artérias).
     Com a deterioração do sistema, Syrigos e vários de seus colegas decidiram tomar as rédeas do problema nas próprias mãos. "Somos uma rede do tipo Robin Hood", disse o cardiologista Giorgios Vichas, que fundou o movimento clandestino em janeiro. "Em algum momento, as pessoas não vão mais poder doar, devido à crise. É por isso que estamos pressionando o Estado para que volte a assumir a responsabilidade pela saúde."
     Elena contou que ficou sem seguro médico depois de abandonar seu emprego de professora para cuidar de seus pais, que estavam com câncer, e um tio doente. Ela entrou em pânico quando descobriu que tinha o mesmo tipo de câncer de mama que matou sua mãe. O tratamento custaria pelo menos US$40 mil, ela ouviu dos médicos, e as finanças de sua família estavam zeradas.
     "Se eu não pudesse vir aqui, não faria nada", ela comentou. "Hoje, na Grécia, as pessoas precisam combinar com elas mesmas que não vão ficar muito doentes."

Tradução de Clara Allain

A austeridade: um princípio

Notícias ao Minuto
Quarta, 07 de Novembro de 2012, 15:26:
Santarém Hospital corta nos tratamentos de quimioterapia
O Hospital de Santarém tem apenas dois oncologistas três dias por semana, o que vai obrigar a unidade hospitalar a cortar nos tratamentos de quimioterapia. A administração do hospital reconhece a carência.
PAÍS
Hospital corta nos tratamentos de quimioterapia
DR
     A área de oncologia do Hospital de Santarém carece de médicos tendo apenas dois três dias por semana. Esta situação levou ao adiamento de consultas e tratamentos de quimioterapia, avança o Diário de Notícias (DN). O hospital tem cerca de 1.400 casos de cancro todos os anos e entre 600 a 700 pacientes oncológicos em tratamento.
     A falta de médicos na unidade de oncologia ficou agravada com a saída de um clínico a tempo inteiro e com a baixa por gravidez da directora do serviço. Neste momento, existem apenas dois médicos, um que trabalha um dia por semana e outro que trabalha dois. Esta situação não afecta apenas as consultas e os tratamentos, ficam também em causa as compras, que são adiadas por falta de tempo e que levaram à ruptura do stock nas últimas semanas.
     O presidente do conselho de administração do Hospital de Santarém, José Josué, afirmou ao DN que “pode haver situações, sempre circunstanciais de adiamento de compra de medicamentos por falta de verba, mas sempre sem pôr em causa a condição clínica do utente”. A Administração da unidade hospitalar reconhece a falta de reposta mas garante estar a tentar contratar dois médicos recém-formados.

     Nos dias em que não há oncologia, a unidade hospitalar tem recorrido a internistas de modo a gerir complicações que possam surgir no tratamento, no entanto, estes médicos não podem prescrever tratamentos.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Ah, o Sporting!


Poema XXXIX - "O mistério das coisas, onde está ele?"

            O poema abre com quatro perguntas nos cinco versos iniciais. A pergunta do primeiro verso, aparentemente, traduz a necessidade de saber onde está o mistério das coisas. O segundo e o terceiro constituem uma reiteração do primeiro, mas contêm em si um paradoxo: o de solicitar à figura do mistério que apareça, que se revele. Ora, se o mistério se revelar, deixa de o ser, pelo que é lícito concluir que a pergunta é irónica e traduz a convicção do «eu» poético de que o mistério das coisas não existe, afirmando-se, portanto, como um descrente da metafísica, do etéreo, da essência das coisas.
            As duas perguntas seguintes vêm “igualar” o sujeito poético a elementos da Natureza (o rio e a árvore), para deste modo ele apresentar a argumentação que sustenta a sua tese, a de que não há mistério nas coisas. A Natureza existe sem conhecer o seu mistério, pelo que ele, que não é mais do que ela, também não o pode conhecer. No fundo, as interrogações estão ao serviço do processo de negação do pensamento e da metafísica por parte do «eu».
            No verso 7, o sujeito poético exprime a sua reação àquilo que os homens pensam das coisas: o riso. Ao contrário de si, que acredita que a realidade é apenas o que é e, por isso, não contém qualquer mistério, os “homens” pensam sobre as coisas, logo acreditando que elas são portadoras de algo mais do que aquilo que é visível e que os sentidos captam. Por um lado, o sujeito exclui-se da condição de homem comum, pois, enquanto os homens pensam sobre o mundo, aquele pensa sobre o que eles pensam sobre as coisas / o mundo, Observe-se, porém, como por vezes entra em contradição. De facto, se é certo que Caeiro privilegia as sensações, fundamentalmente as visuais, e que afirma que as coisas não têm significado, apenas existência, algo que aprendeu através dos sentidos, no verso 6 afirma que pensa (no que os homens pensam das coisas). Este dado parece, afinal, anunciar a impossibilidade de uma rejeição total de pensar. E o «eu» compara o riso a “um regato que soa fresco numa pedra”, comparação que sugere o seu caráter simples, puro e espontâneo. Por outro lado, pode sugerir o som constante da corrente, que se assemelha ao som do riso ininterrupto numa qualquer situação cómica.
            A segunda estrofe inicia-se com a conjunção subordinativa causal «porque», o articulador que estabelece a relação de causa entre a primeira e a segunda estrofe. Nos dois versos iniciais, existe um paradoxo, onde é visível também a ironia, que reafirma a inexistência de mistério nas coisas. E fá-lo com absoluta certeza e de modo perentório e inequívoco (atente-se no uso da forma verbal “é”). Para ele, as coisas não têm sentidos ocultos, nelas não há nada que compreender.
            Descolando-se da própria condição de poeta e diminuindo a importância dos filósofos, o «eu» poético afirma que os sonhos dos poetas e os pensamentos dos filósofos estão aquém das coisas, que são piro “parecer”, isto é, o modo como as coisas são em si, como se revelam, antes da consciência humana interferir. Dito de outra forma, à pedra é irrelevante a existência do homem, no sentido de que continuará a ser pedra, tenha o ser humano ou não consciência dela.
            Afinal, as coisas são realmente o que parecem ser, logo não há nada que compreender, sublinhando-se assim a distinção entre dois mundos: o da existência das coisas, independente da consciência humana (verso 13) e o da consciência humana, votada à compreensão das coisas (v. 14).

            Na última estrofe, em jeito de conclusão, o sujeito poético reafirma a sua tese, centrada numa aprendizagem resultante da experiência de vida conduzida pelos sentidos, a fonte do verdadeiro conhecimento. Deste modo, no verso 15 declara que os seus sentidos “aprenderam sozinhos”, uma afirmação que traduz a defesa da intuição, do primado do sentir sobre o pensar. O verso 16 confirma a tese de que as coisas não têm mistério, apenas existência. Os seus sentidos ensinaram-lhe que as coisas existem, não têm significado, têm existência e não precisam de ter significado.
            Atente-se, porém, no seguinte: se, por um lado, é possível os sentidos aprenderem sozinhos, isto é, intuitivamente, por outro, a comunicação desse facto pelo poeta não pode ser feita intuitivamente, mas através da linguagem, algo bastante racional. Ou seja, se Caeiro pode dispensar, ainda que retoricamente, o ato de compreender, para o comunicar, em forma de poema, necessita da linguagem e, logo, de fazer uso da razão.

            A ideologia de Caeiro está bem expressa neste poema:
a) Identifica-se com a Natureza, com a qual deseja relacionar-se de forma harmoniosa e da qual deseja fazer parte;
b) Encara o mundo com objetividade, de acordo com uma visão algo restrita e limitada, reduzindo-o aos fenómenos mais simples e primitivos, recusando a intervenção do homem;
c) Recusa a ideia de que existe um sentido para além daquilo que é possível ver e sentir;
d) Defende o primado do sentir sobre o pensar, recusando o pensamento, que lhe provoca dor.

            A nível formal e estilístico, as características típicas da sua poesia estão também presentes:
a) o verso branco;
b) a liberdade e irregularidade métrica e estrófica;
c) a linguagem simples;
d) o pendor argumentativo.

domingo, 4 de novembro de 2012

Análise do Poema XXXVI - "E há poetas que são artistas"

            Neste poema, cujo tema é a reflexão sobre o processo de criação poética e a sua relação com a Natureza, Caeiro reflete sobre poesia, contrapondo duas conceções.
            A primeira é a dos poetas que designa, ironicamente, por artistas, que a veem como um trabalho, uma construção, que constroem os seus poemas verso a verso, que valorizam o lado artificial ou mecânico do ato de criação: “trabalham nos seus versos / Como um carpinteiro nas tábuas” (comparação); “pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro / E ver se está bem, e tirar se não está!” (comparação e exclamação). Estas comparações com um carpinteiro e com os pedreiros servem para destacar o trabalho formal, minucioso e exigente, dos poetas que se dedicam a essa poesia elaborada e produzida como outras construções humanas. Dito de outra forma, expressam a preocupação desses poetas com a seleção das palavras, da combinação de rimas / sonoridades, de arranjos estilísticos, de ritmos poéticos, de dimensionamento dos versos, etc., ou seja, uma noção de poesia que exige trabalho de dimensionamento, equilíbrio, polimento e construção dos versos, pensando muito a experiência. No fundo, Caeiro está a criticar todos aqueles que não conseguem ser espontâneos (verso 4) no ato de criação poética, facto que o leva a manifestar estranheza e a sentir pena deles, antes a encaram como um trabalho árduo de intelectualização.
            Ora, para Caeiro, “a poesia não é um trabalho nem uma convicção, é uma forma de revelar os mistérios da Natureza” e de se assemelhar cada vez mais a ela (Nuno Hipólito, No Altar do Fogo). Esta é a segunda conceção de poesia, a que se afirma quando o «eu» poético se declara um fruidor incondicional da Natureza, que “está sempre bem e é sempre a mesma”. Aparentemente, não há absolutamente nada a mudar nela. Deste modo, a criação poética deve resultar espontaneamente da identificação do «eu» poético com a Natureza. Assim se explica o seu lamento relativamente a esses poetas: “Que triste não saber florir” (exclamação), ou seja, que triste não comungar da naturalidade, simplicidade e espontaneidade da Natureza e não ser capaz de fazer da criação poética uma ação natural e espontânea. Ele considera que é “triste” ter de trabalhar os versos “como um carpinteiro nas tábuas” e não ser capaz de os fazer “florir” sem artifícios, de uma forma simples e natural. Ora, sendo a Natureza a verdadeira arte, a poesia deverá ser como ela, isto é, a expressão sensorial, nítida, fluida do que nos rodeia.
            Por outro lado, insiste na relação íntima com a Natureza, a fonte de inspiração e criação poética: “a única casa artística é a Terra toda” (v. 7 – metáfora). Por isso, porque a harmonia já existe nela, não é necessário intelectualizar o ato de escrita. O essencial em poesia é registar o mundo que o rodeia de forma tão natural e espontânea como é o ato de florir ou respirar (v. 9). Caeiro é o poeta da Natureza que privilegia o olhar, daí que tenha apenas de estar atento ao que ela “diz”.
            Mesmo reconhecendo a impossibilidade de compreensão entre ele e as flores, o sujeito poético sabe que em ambos – na Natureza e na comunhão do homem com ela – mora a verdade e que há uma “comum divindade” que lhes permite usufruir dos encantos da Terra, das “Estações contentes” e dos cânticos do vento (personificação). Para que tal suceda, é necessário evitar a abstração do pensamento e privilegiar uma relação natural, espontânea (“como quem respira”) com a “única casa artística” que é a “Terra toda”. Ora, é esse contacto com a Natureza a única forma de aceder à “verdade” (v. 13). Note-se o desprendimento da vida em harmonia com os elementos naturais (“De nos deixarmos ir e viver pela Terra” – v. 15), uma espécie de mãe protetora que o leva ao colo, que embala e transmite paz e tranquilidade (v. 17), evitando a existência de “sonhos” – sonhar é pensar, na medida em que se constitui como uma atividade mental durante o sonho. É, no fundo, mais uma afirmação da recusa do ato de pensar, de rejeição de qualquer atividade mental que se oponha à autenticidade dos elementos da Natureza que descreveu.

            No poema, em suma, Caeiro expõe a sua “teoria poética”, que pode resumir-se ao seguinte: a poesia é o simples ato de captar a Natureza através dos sentidos de forma espontânea, de acordo com uma relação de comunhão e harmonia. Noutro comprimento de onda, movimentam-se os poetas que fazem da poesia um trabalho árduo de intelectualização, de exposição de conceitos e combinação artística das palavras. Repetindo, estamos perante o confronto entre uma forma de elaborar poesia caracterizada pela simplicidade, objetividade, espontaneidade, naturalidade, e outra artificial, muito pensada e elaborada.
            Em consonância com estes princípios e com o tipo de poesia que defende, este poema é caracterizado pelo versilibrismo, pela ausência de rima e pela linguagem simples, com um vocabulário igualmente simples e repetitivo (“está”, “sempre”), pertencente aos campos lexicais da poesia (“poetas”, “versos”) e da Natureza, fonte inspiradora do sujeito lírico (“florir”, “Terra”, “flores”, “Estações”, “vento”), bem como pelo uso de expressões familiares e comparações com elementos naturais.
            Por outro lado, a adjetivação é escassa, resumindo-se à presença de quatro adjetivos: “triste”, “artística”, “comum” e “contente”. No que diz respeito à estruturação sintática, predomina as orações coordenadas copulativas, típicas do discurso oral, em detrimento da subordinação, embora haja a assinalar a presença de orações subordinadas temporais, relativas restritivas e infinitivas.
            A pontuação expressiva concorre de igual modo para conferir ao poema um certo tom coloquial.
            A nível estilístico, destaca-se a escassez de figuras, verificando-se o uso dos recursos semântica e sintaticamente mais simples, como a comparação (vv. 3 e 5), a metáfora (vv. 1, 4 e 6), a personificação (vv. 16 e 17), a anáfora (vv. 16-18) e o polissíndeto (repetição da conjunção coordenativa copulativa «e», que acentua o estilo simples de Caeiro, estabelecendo a ligação sumativa como processo de acumulação de argumentos.

            Em suma, o poema XXXVI evidencia alguns dos traços centrais da poética de Alberto Caeiro:
. o sensacionismo: “”E levar ao como pelas estações contentes / E deixar que o vento cante para adormecermos” (vv. 16 e 17);
. a atitude antimetafísica, de recusa do pensamento: “Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira.” (v. 9); “E não termo sonhos no nosso sono.” (v. 18);
. o objetivismo: “E olho para as flores e sorrio… (v. 10);
. a espontaneidade e naturalidade: “Que triste não saber florir!” (v. 4);
. o paganismo, isto é, a crença em diversas divindades: “Mas sei que a verdade está nelas e em mim / E na nossa comum divindade” (vv. 13 de 14);
. o panteísmo, ou seja, a doutrina segundo a qual Deus e o mundo seriam uma só substância, não sendo aquele um ser pessoal distinto deste): “Mas sei que a verdade está nelas e em mim / E na nossa comum divindade” (vv. 13 de 14);
. o misticismo, quer dizer, a atitude afetiva caracterizada pela crença na possibilidade de comunicação direta com o divino, inacessível ao conhecimento racional): “”Mas sei que a verdade está nelas e em mim” (v. 13), “De nos deixarmos ir e viver pela Terra / E levar ao colo pelas estações contentes” (vv. 15 e 16), “E não termos sonhos no nosso sono.” (v. 18).

            Por outro lado, são visíveis alguns dos traços que aproximam Caeiro do ortónimo e dos outros heterónimos:

. Caeiro e Pessoa:
- a linguagem simples;
- a musicalidade espontânea e natural do discurso, que leva por vezes a quebrar a regularidade métrica;
- a tendência de Caeiro para o refúgio na Natureza, uma tentativa de evasão, uma certa recusa do pensamento (“Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira”), que denunciam a inquietação constante e a intelectualização do sentir (marcas de Pessoa);
- divergem pelo facto de Pessoa fazer uso da regularidade estrófica e rimática, ao contrário de Caeiro.

. Caeiro e Reis:
- aceitação natural das coisas (“… a única casa artística é a Terra toda / Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma”);
- o elogio da vida campestre, a fazer lembrar a áurea mediania clássica: “De nos deixarmos ir e viver pela Terra / E levar ao colo pelas estações contentes / E deixar que o vento cante para adormecermos…”.

. Caeiro e Campos:
- são ambos espontâneos;
- voltam-se para o exterior;
- cultivam o verso livre;
- são sensacionistas: privilegiam as sensações em detrimento do pensar (a segunda fase de Campos). 

sábado, 3 de novembro de 2012

"A verdade morreu"

A Verdade morreu
Não se estima a piedade,
A infâmia e o erro
São fortes e poderosos,
Não há quem busque ser
Virtuoso e humilde,
E o respeito de Deus
Foi esquecido.
Ninguém sente desgraça
Em ser pedinte,
Grande é a vergonha,
As almas são pequenas face à culpa.
Em vez de amigos
Há inimigos.
Na companhia
Há inveja,
E amor fraternal
É um engano.
Honra
Não mais existe.
Dinheiro é a Palavra –
E quem o tem é senhor.
Todos fazem dele discussão.
Meu Deus, o que será de nós!


Ulma Seligman (sécs. XVI e XVII)

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Poema I ("O Guardador de Rebanhos")


     Este texto abre a obra O Guardador de Rebanhos, constituída por 49 poemas, todos com métrica irregular e verso branco, escrita maioritariamente no dia 8 de março de 1914, o «dia triunfal», de pé contra uma cómoda, segundo a carta sobre a génese dos heterónimos a Adolfo Casais Monteiro.
     Convém, porém, esclarecer que, de acordo com uma análise mais cuidada do espólio, nenhum poema está datado desse dia, antes se situam entre 4 de março e 7 de maio de 914. Este facto poderá ter três explicações: 1.ª) "o gosto de Pessoa pelo drama e pela encenação, pela sua própria memória futura, levaram a que ele ficcionasse o nascimento da obra maior de Caeiro num só dia"; 2.ª) "ele, não se recordando exatamente desse período - pouco mais de duas semanas, vinte anos atrás - as sintetizasse num só dia, realmente um dia glorioso, (...) que ele recordava por ser o dia em que tinha «inventado» os heterónimos"; 3.ª) "o dia 8 de março de 1914 tem um significado especial para Fernando Pessoa", daí a sua escolha.
     Por outro lado, O Guardador de Rebanhos era apenas uma parte de uma obra maior de Alberto Caeiro, intitulada Ficções do Interlúdio, que englobaria a totalidade da produção dos heterónimos.
     Além de O Guardador de Rebanhos, há ainda a registar outras duas obras de Caeiro: Poemas Inconjuntos (17 poemas) e O Pastor Amoroso (8 poemas).

     O sujeito poético inicia o poema com a afirmação de que nunca guardou rebanhos, isto é, de que não é um pastor na realidade, mas comporta-se como se o fosse («Mas é como se os guardasse» - v. 2), ou seja, há uma parte de si que se comporta como um pastor - a alma -, uma alma de pastor (comparação do verso 3) que «anda pela mão das Estações / A seguir e a olhar» (vv. 5-6).
     Estes dados permitem-nos, desde já, concluir que estamos na presença de um pastor por metáfora que procura estabelecer com a natureza uma relação de comunhão, de harmonia, de simbiose: «Conhece o vento e o sol / E anda pela mão das Estações». De pastor, tem o deambulismo, o andar constantemente e sem rumo definido, observando o que o rodeia, a variedade inexaurível da natureza, concentrado numa única atividade: olhar («A seguir e a olhar.» - v. 6). A sua contemplação da natureza, da beleza primordial, faz com que o «eu» sinta a realidade como se a vivesse intensamente, de acordo com um modo de vida similar ao de um pastor, que contempla, além da proximidade e intimidade ["(...) Natureza sem gente" - v. 7]. De facto, o pastor é o símbolo da solidão do pensamento contemplativo: é o homem que está sozinho na natureza e que ocupa os seus dias vagueando com o seu rebanho, sem a perturbar, alimentando-se do que ela dá, «vislumbrando os seus segredos no silêncio». Daí que o «eu» se considere um pastor, visto que incorpora em si as qualidades de um pastor, mas não é limitado pela vida que um pastor leva. Ou seja, ele serve-se da "arte do pastor para atingir o estado contemplativo, como um budista se serviria da meditação".
     A consequência imediata de o sujeito poético possuir uma alma assim é ter acesso a «toda a paz» que a natureza sem gente proporciona - ela vai «sentar-se» a seu lado (vv. 7-8). Caeiro apresenta-se, assim, em suma, como um poeta metáfora e como o poeta da natureza e do olhar.

     No entanto, no verso 9, o sujeito poético confessa-se triste. Numa primeira leitura, essa tristeza é motivada pelo fim do dia, representado pelo pôr do sol, dado que, quando a noite cai sobre a natureza, ele sentirá maiores dificuldades em contemplar a natureza. E, como já sabemos, Caeiro é o poeta do olhar, o sensacionista para quem a visão é o sentido primordial. Por outro lado, note-se como a tristeza invade o «eu» de forma impercetível, como a borboleta que entra impercetivelmente pela janela.
     A nível estilístico, é de salientar, na primeira estrofe, antes de mais a personificação da natureza (vv. 5, 7-8) e as comparações (vv. 3, 9 e 13), recursos que evidenciam a relação íntima e intensa que o «eu» estabelece com ela. Por outro lado, genericamente, a comparação é o recurso estilístico de que Caeiro se socorre para exprimir a concretização do abstrato, para aproximar o imaginário do real, tornando-o simples e acessível. Por seu turno, a conjunção coordenativa adversativa «mas» (v. 9) sugere o caráter contraditório da tristeza do sujeito poético, pois, se ele tem à sua volta tudo o que deseja, por que razão se sentirá triste?

Os "rankings" das escolas vistos por Maria Filomena Mónica


Os "rankings" das escolas

Por Maria Filomena Mónica                       

OS JORNAIS publicaram recentemente as listas derankings, ou seja, a ordenação das escolas segundo as notas obtidas pelos estudantes. À cabeça, surgem as privadas, o que nos pode levar a pensar que os seus docentes são melhores do que os das públicas. Erro: o êxito académico não depende apenas do que se passa dentro das instituições, mas de uma multiplicidade de factores, de que a origem social, associada à localização, é um dos mais importantes. Basta lembrar que, por hora, os filhos dos ricos são expostos a mais 1.500 palavras do que os dos pobres, o que leva a que, aos 4 anos, exista já uma diferença, a favor dos primeiros, de cerca de 32 milhões de palavras.
Uma vez que as públicas têm de cobrir o território nacional, as do interior exibem elevadas taxas de insucesso. A secundária de Portalegre não conseguiu uma única média positiva; na da Guarda, três das cinco melhores escolas não conseguiram atingir os 10 valores; na freguesia de Rabo de Peixe, na ilha de S. Miguel, verificaram-se, no exame do 9.º ano, as piores classificações do país. O Presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares lembrava que, em vez de se concentrarem no lugar nos rankings, os docentes se deviam preocupar antes com «a mais valia» que as escolas traziam aos alunos, após o que, com razão, salientava que nada é uma fatalidade, ou seja, que mesmo os alunos desfavorecidos podiam alcançar bons resultados. Era esse o caso das Escola Básicas de Rio Caldo (Braga), Dr. Manuel Magro Machado (Portalegre) e Couço (Santarém) que, nos exames de Matemática e de Português do 9ª ano tinham subido mais de mil lugares.
Felizmente, as leis sociológicas não são férreas. Não foi em Lisboa que as melhores notas foram obtidas. No universo das públicas, destacaram-se a B+S de Vila Cova (Barcelos), com a média mais alta do país em Matemática A (142,55) e a Secundária da Gadanha da Nazaré, com a mais elevada nota em Geometria Descritiva (178,25). Curiosamente, provando que as pessoas são mais importantes do que os edifícios, o Liceu Passos Manuel cujo restauro, no âmbito da Parque Escolar, exigiu ao Estado 26 milhões de euros, ficou em 481.º lugar, com uma média de 7,8 valores, o que o coloca entre os dez piores. É sabido que o grupo social que mais importância dá à educação é a classe média. Não me espanta assim que a melhor escola secundária de Lisboa tenha sido a José Gomes Ferreira, em Benfica, cujos pais têm uma participação nas reuniões na ordem dos 70 a 80 %.
Portugal teve de fazer um grande esforço depois de 1974. Nem tudo correu bem, mas o país conseguiu escolarizar a maior parte dos jovens, facto que levou a que as escolas sejam hoje muito diferentes das que existiam na minha adolescência, quando, ao terminar a primária, apenas 2 em cada 10 alunos continuava a estudar. Para muitos, a escola contemporânea representa um mundo radicalmente novo. É por isso que o difícil não é ensinar filhos de privilegiados mas sim jovens que, em casa, nunca viram os pais abrir um livro. 
«Expresso» de 27 Out 12

Hallowe'en


Da solidão tecnológica

Hoje já clicou com o seu vizinho?
Por Ferreira Fernandes
     NA ÚLTIMA 'Sábado', o jornalista Luís Silvestre conversa com a cientista britânica Susan Greenfield, especialista dessa transformação tremenda que está a acontecer no nosso cérebro com os computadores e outros saberes de ponta dos dedos.
     Já uma vez, na pré-história, os dedos - o facto de o polegar ser oponível aos outros - nos aumentaram o cérebro. 
     Pois há dias vi um movimento em sentido contrário. Um desenho, naturalmente feito por computadores, do homem do futuro: vamos ser mais feios, cabecinha mais de ervilha, porque não precisamos de tanto espaço para a memória. 
     Como eu percebo essa previsão. No liceu eu era campeão das capitais, até sabia de nomes hoje desaparecidos de cidades, como Santa Maria Bathurst (fui ver: hoje, Banjul, capital da Gâmbia), mas custava-me horas a decorar. Agora, com dois dedilhares, sei quantas pizarias há em Mendoza, Argentina, e em que rua ficam. E logo esqueço, estreitando, se não a minha cabeça, a dos meus descendentes. 
     Voltando à entrevista da cientista, encontro um alerta para uma perda, não essa hipotética do tamanho da cabeça, mas não menos preocupante: a da empatia. Susan Greenfield diz: "As relações entre as pessoas precisam de muito treino, cara a cara, e há uma nova geração que só comunica por computador." Tele, isto, tele, aquilo, vamos cada vez mais longe, quando o que mais falta nos faz é falar com o vizinho. 
     Foi bom ouvir uma cientista falar da necessidade do "cara a cara". 
DN, 29 de outubro de 2012
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