Português

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Análise de "O Mostrengo"

. Assunto: Chegados ao Cabo das Tormentas, os portugueses encontram um monstro voador, o «mostrengo», que pretende atemorizá-los para que não prossigam a viagem. Porém, o marinheiro português (o «homem do leme»), embora de início o receie e hesite, enfrenta-o, neutralizando-o, pois está imbuído da vontade de um rei  e de um povo que não abdica da sua missão.


2. Título

1.º) A palavra «mostrengo» é derivada por sufixação («monstro + engo»). O sufixo «-engo», de origem germânica, tem um valor pejorativo. «Mostrengo» significa, assim, «ente fantástico, geralmente considerado perigoso e assustador, dotado de uma configuração fora do normal e desagradável» (in manual Entre Margens 12).

2.º) Por outro lado, «mostrengo» está relacionado com o verbo «mostrar». Neste sentido, «mostrengo» é aquele que mostra o que não é ainda conhecido.


3. Retrato do «mostrengo»:
. situa-se no desconhecido, na lonjura, no local que se julgava ser o fim («está no fim do mar / Na noite de breu…») – vv. 1-2), ligado a um tom de mistério, de enigma;
. é o senhor dos mares e dos seus segredos: «Nas minhas cavernas que não desvendo, / Meus tetos negros do fim do mundo» (vv. 6-7) ‑ o mar é apresentado fechado no sentido de espaço e sem fim no sentido da profundidade, indiciando mistério; por outro lado, representa o desconhecido («Nas minhas cavernas que não desvendo»; «fim do mundo»);
. tem um aspeto semelhante ao de um morcego:
‑ voa (v. 2) – notar a intenção de exprimir a voz do morcego e o seu nervosismo, por ver os seus domínios ameaçados, através da musicalidade de sons como /u/, /ô/, /ê/, /i/, /a/;
‑ chia;
‑ habita cavernas e tetos negros;
‑ roça nas velas da nau;
‑ vê as quilhas de alto (v. 11);
‑ é imundo e grosso ‑ tem um aspeto medonho, horrível (v. 13);
. é ameaçador e arrogante (as suas falas);
. defende os seus domínios perante a ousadia dos portugueses, que ousam invadir e desvendar esses domínios;
. tem atitudes intimidatórias, ameaçadoras, aterrorizadoras, de força e poder:
‑ os movimentos circulares que tece em roda da nau (vv. 3, 4, 12, 13, 25) parecem querer «asfixiar» os portugueses;
‑ roça nas velas;
‑ chia;
‑ etc.
. tem poder sobre o mar: «o que só eu posso» (v. 14);
. identifica-se com o mar tenebroso e desconhecido: «moro onde nunca ninguém me visse / E escorro os medos do mar sem fundo» (vv. 15-16) ‑ notar a expressividade do verbo «escorrer», sugerindo que o «mostrengo» simboliza o mar, bem como a aliteração em /m/ e o pretérito imperfeito do conjuntivo «visse», sugerindo o desejo do «mostrengo» em continuar desconhecido;
. sente-se desafiado;
. infunde medo e terror;
. manifesta revolta, indignação e desejo de vingança perante a ousadia dos portugueses («Quem é que ousou entrar…», «Escorro os medos do mar sem fundo…»);
. os argumentos de autoridade que evoca têm como objetivo infundir nos marinheiros o medo e levá-los a retroceder, a desistir da sua viagem;
. na 3.ª estrofe, apaga-se e já não fala, facto que denota o triunfo dos marinheiros. De facto, à medida que o poema vai avançando, o «mostrengo» perde força, acabando por se anular.


. Retrato do marinheiro:
. 1.ª resposta:                        - pelo tom aterrador das suas palavras;
‑ medroso / receoso        - pelas atitudes intimidatórias;
‑ intimidado                   - pelo ambiente sinistro que o rodeia;
‑ treme e fala em simultâneo;
‑ invoca a autoridade de que foi investido: «El-Rei D. João segundo!» (v. 9);
‑ é o agente, o representante do rei e, na pessoa do soberano, todo o povo português.
. 2.ª resposta:
‑ mostra um crescendo de coragem e valentia, pois se, na 1.ª estrofe, fala a tremer, nesta fala depois de tremer.
. 3.ª fala do marinheiro ‑ clímax da tensão dramática:
‑ as suas atitudes contraditórias [desprender (desistência) e prender as mãos ao leme, tremer e deixar de tremer] revelam ainda certa dúvida, insegurança, hesitação e receio;
‑ de facto, o marinheiro está dividido interiormente entre o terror e a coragem, acabando por vencer esta última;
‑ consciencializa-se de que ali não se representa a si mesmo («Aqui ao leme sou mais do que eu« ‑ v. 22), mas a vontade do rei e do seu povo, e enfrenta o «mostrengo», vencendo e prosseguindo a sua missão, uma atitude que revela coragem, convicção, força e determinação.
         Estas reações do marinheiro ao discurso do «mostrengo» mostram que há uma espécie de gradação ascendente nas suas atitudes que contrasta com as do monstro. De facto, se, da primeira vez que lhe respondeu, se mostrou medroso e timorato («disse, tremendo, isto é, falou e tremeu ao mesmo tempo, e apenas respondeu «El-rei D. João Segundo» ‑ vv. 8-9), da segunda vez, embora tenha dado a mesma resposta, já se nota uma evolução, pois os dois atos estão dissociados (tremeu, depois deixou de tremer e falou, o que revela um ganho de coragem); da terceira vez, o marinheiro ainda se sentiu tentado a erguer as mãos do leme, a desistir da sua missão, mas logo tomou consciência do que estava em causa ‑ o seu rei e o seu povo: «E disse ao fim de tremer três vezes» (v. 21). É o recuperar definitivo da coragem, o assumir das responsabilidades de que se encontra investido: o tremer deixou de interferir com a sua fala.


. Atmosfera tenebrosa e medonha:
. Ambiente:
‑ Sensações visuais, que carregam o ambiente de tons tenebrosos:
- «noite de breu»;
- tetos negros»;
- «trevas do fim do mundo»;
- «as quilhas que vejo»;
‑ Sensações auditivas, que acentuam a horribilidade do quadro:
- «voou três vezes a chiar»;
- «as quilhas que ouço»;
. Personagem: «mostrengo» e não «monstro»;
. Atitudes e os movimentos circulares, sitiantes e ameaçadores do «mostrengo»:
‑ «À roda da nau voou três vezes»;
‑ «Voou três vezes a chiar»;
‑ «onde me roço»;
‑ «Três vezes rodou imundo e grosso».
. Relação eu (o «mostrengo») / tu (o marinheiro), criadora de um clima de sem cerimónia e agressividade entre os interlocutores;
. Abundância de formas verbais que sugerem movimento: «ergue», «voou», «tremer», «rodou», «ata»;
. Localização espácio-temporal:
‑ «à roda da nau»;
‑ «no fim do mar»;
‑ «nas minhas cavernas que não desvendo, / Meus tetos negros do fim do mundo!»;
‑ «onde nunca ninguém me visse»;
‑ « mar sem fundo».


. Simbolismo das personagens:

. O mostrengo simboliza   ‑ o mar desconhecido
‑ os segredos ocultos
‑ o medo dos navegadores que enfrentam o desconhecido
‑ os perigos que tiveram de enfrentar

. O homem do leme
‑ simboliza a coragem e a ousadia do povo português;
‑ é o herói mítico, símbolo do seu povo e que, por isso, passa de herói individual a coletivo, com uma missão a cumprir.


. Tom dramático do poema
. Alternância discurso direto / discurso direto.
. Grande tensão entre as duas personagens ao longo do diálogo e ao longo de todo o texto:
- o mistério que rodeia o «mostrengo»;
- o mistério patenteado pelo número 3;
- expressões carregadas de mistério e terror;
- as formas verbais que traduzem movimentos súbitos, violentos.
. Ambiente de terror:
- a linguagem visualista;
- as atitudes do «mostrengo»;
- a localização espácio-temporal.
. Os recursos estilístico-poéticos:
- a função expressiva / emotiva;
- as exclamações e interrogações;
- a reiteração;
- as metáforas;
- o refrão.
. O contraste entre o «mostrengo» e o marinheiro: o crescendo de irascibilidade do monstro e o seu progressivo apagamento, o crescendo de coragem do marinheiro, que culmina na sua última fala, quando se compenetra de que representa o povo português e de que tem de prosseguir a sua empresa.
. O drama interior do marinheiro, dividido entre o terror e a coragem.


. Tom épico do poema
. Verso decassílabo.
. Harmonia imitativa.
. Aliterações.
. Sons fechados e nasais.
. O espírito cavaleiresco de exaltação patriótica já existe n’Os Lusíadas: o marinheiro representa todo um povo que deseja conquistar o mar e que não se deixa vergar pelo monstro, símbolo dos medos e perigos do mar.
. A luta desigual, heroica, entre o monstro aparentemente invencível que é o mar e a insistência, a coragem heroica dos portugueses. Estamos, portanto, no mundo dos heróis.


. Intertextualidade: o Mostrengo e o Adamastor

Mostrengo
Adamastor
SEMELHANÇAS
. Conteúdo épico semelhante: de um lado, a forma invencível do mar; do outro, a vontade férrea e a coragem de um marinheiro que representa a forma de um povo que quer o mar.
. Objetivo dos textos: tornar os Portugueses heróis, pela sua coragem, valentia e determinação.
. Simbologia: personificação dos perigos e do receio do mar desconhecido.
. Localização: ambos os textos se situam no centro das respetivas obras, funcionando como eixos estruturantes.
DIFERENÇAS
. Retrato: figura animalesca, semelhante a u morcego, voa.
. Retrato: figura terrena humana de enormes proporções e de aspeto medonho (Adamastor).
. Aterroriza sobretudo pelo aspeto repugnante.
. Aterroriza pelas proporções gigantescas e pela forma estranha.
. É vencido pela determinação e pela coragem do marinheiro.
. É vencido pelos males de amor.
. O texto é mais épico-dramático, pois centra a emoção sobretudo na pessoa do homem do leme, que evoluciona do medo para a coragem e ousadia.
. O caráter épico dilui-se no lirismo da segunda parte do episódio, em que o gigante conta a sua história de amor e se considera um herói frustrado.
. É um ser que provoca medo e repugnância.
. É uma personificação que provoca medo.
. O terror e a repugnância que suscita vão diminuindo à medida que cresce a força, a coragem e a determinação do homem do leme, cuja heroicidade, na última fala, obnubila o monstro.
. É o Adamastor que se declara um herói vencido pelo amor. A tensão dramática dilui-se bastante, visto que a tensão emocional é transposta do marinheiro para o gigante.
. Expressão caraterizadora: «imundo e grosso».
. Expressão caraterizadora: «horrendo e grosso».
. Maior verosimilhança: a colocação do homem do leme ao serviço de D. João II, pois foi neste reinado que se ultrapassou o Cabo das Tormentas.
. O interlocutor do gigante é Vasco da Gama, ao serviço do rei D. Manuel.
. Texto mais curto, logo mais denso e simbolista, sendo mais importante o que se sugere do que o que se afirma claramente.
. Texto mais extenso e menos denso.


. Conceitos de herói e heroísmo: quer este poema, quer o episódio do Adamastor revelam o espírito aventureiro, a intrepidez e a audácia do povo português.
         Por outro lado, o heroísmo do poema decorre da capacidade de o ser humano dominar e vencer o próprio medo, exemplificada pelo marinheiro.


. Recursos poético-estilísticos

1. Nível fónico
. Estrofes: três estrofes de 9 versos, finalizadas por um refrão.
. Irregularidade:
‑ métrica:
. versos decassílabos;
. versos hexassílabos no refrão;
. outros versos de metro mais curto (6, 8, 9);
‑ rimática:
. esquema rimático: aabaacdcd;
. emparelhada e cruzada, sendo cada terceiro verso das três estrofes um verso branco;
. consoante («mar» / «voar»);
. rica («mar» / «voar») e pobre («chiar» / «entrar»);
. aguda («mar» / «voar») e grave («desvendo» / «tremendo»).
. Ritmo livre, adaptado à emoção patente no poema.
. Refrão: predominam os sons nasais e fechados (ão, un), conferindo ao poema um tom pesado e sombrio. Por outro lado, nele ressoa a força, a vontade férrea inerentes à figura do rei D. João II, e acentua a lealdade inabalável do marinheiro à vontade do rei.
. Harmonia imitativa (onomatopeia) produzida pela repetição dos sons /v/, /s/, /ch/, /r/, /z/ (aliterações), que sugerem o ruído do voo do «mostrengo».
. Aliteração em /m/ no verso 15.
. Ocorrência de outros sons nasais (em) e fechados (ê, ô), que emprestam ao poema o referido tom sombrio, de gravidade, de mau presságio.
. Transporte: vv. 1-2, 5-6, 24-25.

2. Nível morfossintático
. Abundância de formas verbais que sugerem movimentos incontroláveis, violentos, de terror e que emprestam ao poema grande dinamismo. Os tempos verbais predominantes são o pretérito perfeito, predominante na parte narrativa, e o presente do indicativo, usado quase exclusivamente no diálogo entre o «mostrengo» e o marinheiro, contribuindo para a grande força e vivacidade do poema, para o seu valor universal e para o tom épico que culmina na última fala do marinheiro.
. Juntamente com as formas verbais, a abundância de nomes traduz a sucessão incontrolável e dramática dos acontecimentos.
. Os adjetivos são quase inexistentes: «negros», «imundo» e «grosso» (traduzem a noção de mistério e terror).
. Tipos de frase:
‑ declarativo: narração e parte do discurso do «homem do leme»;
‑ interrogativo: discurso do «mostrengo»;
‑ exclamativo: discurso do marinheiro.
. Funções da linguagem: emotiva, fática e apelativa.
. Inversão, assumindo por vezes a violência do hipérbato:
«três vezes rodou imundo e grosso»;
«três vezes do leme as mãos ergueu»;
«E mais que o mostrengo que me a alma teme
  E roda nas trevas do fim do mundo,
  Manda a vontade, que me ata ao leme,
  De El-Rei D. João Segundo!».
. Alternância entre a subordinação e a coordenação (sindética ou assindética), sendo de salientar a frequência da conjunção coordenativa /e/ (polissíndeto).
. Anáfora: «de quem (…) / De quem…» (vv. 10-11); «Três vezes (…) / Três vezes (…) / Três vezes (…)» (vv. 13, 19 e 20).

3. Nível semântico
. Metáforas / imagens:
- «nas minhas cavernas que não desvendo»;
- «meus tetos negros do fim do mundo»: estas duas primeiras sugerem o mistério impenetrável de um local desconhecido e medonho;
- «E escorro os medos»: sugere a ideia de terror, proveniente de algo que constitui uma fonte perene de medo;
‑ «a vontade que me ata ao leme»: expressa a missão do marinheiro, ligada fatalmente à vontade do seu rei e do seu povo.
. Exclamações e interrogações: traduzem a emotividade, quer do «mostrengo» quer do marinheiro.
. A personificação de um ser desconhecido, o «mostrengo» voador, que chia, vê, ouve e fala ameaçadora e aterradoramente, e que corporiza todos os perigos da navegação em mares desconhecidos.
. Reiteração do número 3 e seus múltiplos, um número cabalístico relacionado com as ciências ocultas que remete para um triângulo sagrado, presente em muitas religiões, como a tríade da religião egípcia, a tríade romana, a tríade dos cristãos (Pai, Filho e Espírito Santo); em suma, assume as conotações de um triângulo ou ciclo que se fecha (= perfeição), contribuindo para conferir ao poema um sentido oculto e esotérico:
‑ três estrofes;
‑ cada estrofe tem 9 versos (3 X 3);
‑ o refrão tem 6 sílabas (2 X 3);
‑ o «mostrengo» e o marinheiro falam três vezes cada;
‑ o marinheiro tremeu três vezes, ergueu as mãos do leme três vezes e três vezes as reprendeu ao leme.
. Linguagem visualista para sugerir o ambiente de terror e mistério, fazendo-se apelo às sensações visuais e auditivas.

Análise do poema "O Quinto Império"

         Na 1.ª estrofe, o sujeito poético lamenta a sorte daqueles que vivem felizes. Ela inicia-se com a oposição «triste» / «contente»: na perspetiva do sujeito poético, a alegria do conformista é triste para ele mesmo, já que ignora o prazer que a aventura que se segue ao sonho lhe pode proporcionar em termos pessoais, e é triste para a sociedade de que faz parte pela razão de que sem ideais e sonhos e sem a ousadia de os tentar concretizar, a sociedade não evolui, estagna e torna-se decadente.
         O ato de sonhar acordado leva quem sonha a agir no sentido de buscar outra realidade através da libertação daquela (a rotineira e banal) que conhece, tal como aconteceu com Ícaro, que quis libertar-se da ilha de Creta, onde se encontrava prisioneiro, voando com as asas de penas e cera que os eu pai, Dédalo, construiu para ele. Foi o sonho que impulsionou Ícaro a voar, daí a referência ao «erguer da asa» no verso 3. O mito grego exemplifica o sonhador que ousa pôr em prática os sonhos, chegando a morrer por eles, como Ícaro.
         A referência à lareira onde arde «mais rubra a brasa» relaciona-se com antigos costumes romanos, já que era costume, sempre que os romanos mudavam de cidade, levar parte das brasas que ardiam nas lareiras das suas antigas casas para as novas, para manter viva a ligação à respetiva terra de origem. Assim, a brasa que arde mais intensamente («mais rubra») é um sinal de partida recusado por aquele que está «Contente com o seu lar» e que, portanto, não deseja a mudança.
         O oximoro que inicia a segunda estrofe retoma a ideia que inicia o poema, agora através de uma frase exclamativa que expressa o desdém do sujeito poético face à aceitação da rotina como se de uma atitude positiva se tratasse; deste modo, o sujeito poético desmistifica o conceito de «felicidade» aceite pela sociedade em geral e que assenta na valorização da vida ao nível mais rudimentar ‑ a vida instintiva ou «a lição da raiz». A lição que podemos retirar da raiz é simples: quem vive apenas por viver, sem sonhos e ideais («porque a vida dura» ‑ v. 7) é semelhante a uma raiz: vive como se estivesse sepultado. Os nomes «raiz« e «sepultura» associam-se ao imobilismo e à ausência de vida e de sonho. Por outro lado, a forma verbal «dura» (v. 7) remete para a existência enquanto mero passar do tempo. Assim, quem «Vive porque a vida dura» não a aproveita e limita-se a existir, a sobreviver. Esta aceitação da vida segundo os instintos conduz à morte do indivíduo porque a vida digna de ser vivida é a que é orientada pelos mitos, pelo sonho, pela loucura de sinal positivo (vide poema “D. Sebastião”), pela partida em direção a horizontes desconhecidos, pela vitória sobre o Mostrengo «porque quem passar além do Bojador / Tem que passar além da dor» (“Mar Português”), pela vontade de chegar «lá» custe o que custar, animado pela fé em Deus («Cheio de Deus, não temo o que virá» ‑ “D. Fernando”). O apego ao conforto do lar, ao espaço familiar, o medo do desconhecido, a fraqueza anímica conduzem à «sepultura», pois só a busca da plenitude confere imortalidade.
         Em suma, estamos perante duas posturas do ser humano, pautadas por traços diferenciados:
                   . mediocridade                          . movido pelo sonho, única forma de atingir
                   . conformismo                             a grandeza de alma («erguer da asa»)
                   . rotina                                     . insatisfação permanente
                   . banalidade                              . inquietação
                   . comodismo                              . visão para lá dos limites da condição /
                   . sem sonhos, projetos, ideais        / finitude humana
                   . apatia                                    . a vida só vale a pena ser vivida se
                   . vida sem sobressaltos                  seguirmos os nossos sonhos

         O tempo não pára e as «eras» ou tempos passados «somem», desaparecem e são substituídos por novos tempos, novas eras.
         No terceiro verso da terceira estrofe, um aforismo defende a insatisfação porque ela é o motor da mudança; quem se contenta com o que tem não sente necessidade de mudar, mas esses não são verdadeiramente «homens», porque o que distingue o ser humano dos outros seres é precisamente a capacidade de imaginar, sonhar, lutar por objetivos e ideais. Deste modo, o mundo avança com os descontentes e não com os acomodados. Note-se que este verso é chave, que ocupa a posição de centralidade (12 versos antes e 12 depois) e que remete para uma condição inerente ao próprio homem: o descontentamento. É esta insatisfação constante que faz o progresso, é o seu agente impulsionador. Nos dois versos finais desta estrofe, o sujeito poético deseja que a grandeza de alma domine / cale as «forças cegas» ou forças da natureza (aquilo que nos prende à terra, ao mundo da matéria), de modo a que o homem se liberte da prisão terrena e se vire para uma dimensão transcendente em busca da plenitude existencial.
         Na penúltima estrofe, o sujeito poético alude aos quatro impérios do «ser que sonhou» (Grécia, Roma, Cristandade, Europa), o qual assistirá ao renascimento da idade do ouro, mito grego segundo o qual a humanidade regressará a um tempo de pureza e de imortalidade que a chegada do Quinto Império vai proporcionar. Assim, «A terra será teatro / Do dia claro, que no atro / Da erma noite começou» (vv. 18 a 20), isto é, das trevas da noite deserta e esta escuridão dará lugar à luz ou verdade ou Quinto Império, que resplandecerá de paz e harmonia. Observe-se a antítese presente nos versos 19 e 20, que coloca em confronto o tempo passado e presente («… atro / Da erma noite…») e o tempo futuro («dia claro»), que se anuncia sob a égide espiritual dos portugueses. Depois dos «quatro / Tempos» (vv. 16-17), os quatro impérios considerados por Pessoa, chegará o Quinto Império. Observe-se igualmente a metáfora aí presente, que transmite a profecia de que o mundo assistirá («será teatro») ao nascimento de um novo império («Do dia claro»).
         Os quatro impérios anteriores morreram. Agora, é tempo de ser descontente do presente e perseguir o sonho de construção futura do Quinto Império, o império espiritual que nascerá da procura da verdade. É neste contexto que o sujeito poético interroga: «Quem vem viver a verdade / Que morreu D. Sebastião?». Esta interrogação anuncia o Quinto Império que, sucedendo-se aos quatro anteriores, deles diferirá pela natureza: será o império da «verdade», nascida com a morte de D. Sebastião.

         Relativamente à estrutura interna, sugerem-se duas divisões diferentes do poema:

. 1.ª parte (estrofes 1 e 2) ‑ O sujeito poético lamenta a sorte daqueles que vivem felizes com a mediocridade e faz a apologia do sonho como única forma de aceder a grandes feitos.

. 2.ª parte (estrofe 3) ‑ Reflexão sobre a passagem do tempo e sobre a condição indispensável para ser homem ‑ a insatisfação.

. 3.ª parte (estrofes 4 e 5) ‑ O sujeito poético anuncia, profeticamente, a chegada do Quinto Império.


. 1.ª parte (estrofes 1 a 3) ‑ Reflexão acerca da vivência humana e da importância do sonho.

. 2.ª parte (estrofes 4 e 5) ‑ Anúncio de uma nova época, de um novo império.
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