Português

quarta-feira, 18 de junho de 2014

"Não gosto do brasileiro", Alexandre Martins

A minha rua estava deserta. Horas antes daquele jogo, o esqueleto, o peco, o bijas e outros ranhosos como eu tínhamos ocupado os nossos lugares cativos no passeio para arrasarmos aquela ideia estúpida de que no futebol tudo pode acontecer: o Brasil ia ganhar à Itália e não se falava mais nisso.
Eles tinham o calcanhar de Sócrates, os passes de Falcão e a força de Leovegildo Lins da Gama Júnior, ou apenas Júnior – um defesa que também jogava no meio-campo e que foi obrigado a resumir a imponência do seu nome completo a um modesto apelido só para caber nos cromos da Panini. Todos eles eram Zico dos pés à cabeça.
E nós, na Rua 3, tínhamos o esqueleto, o peco, o bijas e outros ranhosos como eu, à falta de uma selecção portuguesa para apoiar nesse Mundial. E também tínhamos o brasileiro.
Nascido em Angola e neto de portugueses, foi parar à minha rua da mesma forma que quase todos nós tínhamos ido parar à nossa rua. Mas isso era coisa de adultos: eles ainda discutiam se o Mário Soares era bom ou era mau, e nós discutíamos se o Serginho tinha lugar na selecção do Brasil. (É claro que não tinha).
O certo é que todos nós também éramos Zico. Uns nos pés, outros na cabeça, outros só quando adormeciam e começavam a sonhar.
Os pés do Zico eram do peco, que fintava toda a gente, ia lá à frente marcar um golo e ainda regressava a tempo de fintar a própria sombra; o esqueleto ficou com a cabeça, que levantava para ver onde ia pôr a bola enquanto rodopiava sobre si mesmo e nos mantinha à distância com os longos braços.
Eu estava no meio, só que no meio errado: tinha a precisão de passe do peco e a fantasia do esqueleto, precisamente a soma dos zeros de cada um deles. (Ainda hoje me gabo de ter sido a criança magra que mais vezes foi à baliza em toda a história do futebol de rua).
Mas agora a minha rua estava deserta. Por um qualquer fenómeno que ainda hoje resiste às leis da ciência e aos mistérios da religião, o Brasil acabara de perder com a Itália, em Espanha, e tudo na minha rua ficou diferente. Nem a rulote do Nando, que vendia as melhores pastilhas Gorila de Portugal, voltou a abrir nesse dia.
Eu e os meus amigos tínhamos acabado de receber a primeira lição de vida através do futebol. Uma lição que ainda hoje me acompanha sempre que me levanto da cama: faças o que fizeres, nunca vistas de amarelo.
Mal acabou o jogo, os pais do brasileiro pegaram nele e foram morar para o Brasil. Há quem diga que passaram quatro anos entre uma coisa e outra, mas não é essa a recordação que eu tenho da mentira que contei na frase anterior.
Eu, o esqueleto e o brasileiro éramos os melhores amigos. Separar aquele grupo foi como arrancar o Zico ao Sócrates e ao Falcão. Ainda hoje falo sobre futebol com o esqueleto, que perdeu o direito à alcunha em meados da década de 1990. Mas não falo muito com o brasileiro porque já não gosto dele. Não gosto do brasileiro porque ele se foi embora.


(c) Alexandre Martins, in Público

Exame Nacional de Português 12.º Ano - 2014 - Correção (1.ª chamada)

Grupo I


1. A construção e o voo inaugural da passarola resultam da conjugação das capacidades e dos esforços das três personagens:
– o padre Bartolomeu de Gusmão contribui com o saber científico e a inteligência – «viajei à Holanda» (linha 19); «estou subindo ao céu por obra do meu génio» (linhas 22 e 23);
– Baltasar contribui com a sua força e o seu trabalho manual – «Puxa, Baltasar» (linha 5); «por obra da mão direita de Baltasar» (linha 24);
– Blimunda contribui com os seus poderes sobrenaturais, que permitem ver o que escapa ao olhar humano – «por obra também dos olhos de Blimunda» (linha 23); num momento de hesitação, é também ela quem leva Baltasar a agir – «Blimunda aproximou-se, pôs as duas mãos sobre a mão de Baltasar, e, num só movimento, como se só desta maneira devesse ser, ambos puxaram a corda.» (linhas 6 a 8).

2. Num primeiro momento, Baltasar e Blimunda começam por ser apanhados de surpresa pelo súbito movimento da passarola – «tinham caído no chão de tábuas da máquina» (linhas 14 e 15); «Não tinham medo, estavam apenas assustados com a sua própria coragem» (linha 26). Depois, erguem-se, ficam deslumbrados e deixam de estar assustados.
Num segundo momento, as reações individualizam-se:
– Baltasar dá largas à sua alegria – «Ah, e Baltasar gritou, Conseguimos, abraçou-se a Blimunda e desatou a chorar, parecia uma criança perdida» (linhas 31 e 32); «e agora soluça de felicidade» (linha 33);
– Blimunda mantém a calma e o discernimento – «Então Blimunda disse, Se não abrirmos a vela, continuaremos a subir, aonde iremos parar, talvez ao sol.» (linhas 37 e 38).

3. O padre manifesta um estado de euforia, pois sente-se realizado e vitorioso pelo facto de ter conseguido concretizar o seu sonho de voar.
Esta euforia é enfatizada pela evocação de situações anteriormente vividas pelo padre, as quais, pela relevância que assumiram, aumentam agora o seu contentamento:
– a viagem à Holanda para aquisição de saber – «o mar por onde viajei à Holanda» (linha 19);
– o apoio discreto de D. João V – «se me visse el-rei» (linhas 20 e 21);
– a troça de que foi alvo – «se me visse aquele Tomás Pinto Brandão que se riu de mim em verso» (linha 21);
– a perseguição da Inquisição – «se o Santo Ofício me visse» (linhas 21 e 22).

4. O peixe voador simboliza o homem ambicioso, que não tem consciência dos limites impostos pela sua
natureza e pelas suas capacidades.
      Para evidenciar esta característica, o pregador faz referência ao comportamento dos peixes voadores que, por possuírem grandes barbatanas, agem como se fossem aves e pudessem voar.

5. A inconsciência e a presunção do peixe voador fazem-no correr riscos inúteis e graves, pois, para além
de poder ser vítima dos perigos do mar, é vítima das velas e das cordas dos navios, perigos do ar – «o
Voador toca na vela ou na corda, e cai palpitando» (linhas 11 e 12). Assim, encontra frequentemente a
morte – «Aos outros peixes mata-os a fome e engana-os a isca, ao Voador mata-o a vaidade de voar, e a
sua isca é o vento.» (linhas 12 e 13).



Grupo II

          Versão 1          Versão 2

1.1.        B (interpretação idealista daquilo que o rodeia)

1.2.        C (mantém-se inalterada)

1.3.        A (passou a integrar o real de forma mais complexa)

1.4.        D (da dificuldade dos leitores em entenderem a literatura subsequente)

1.5.        C (uma metáfora)

1.6.        A (obrigação)

1.7.        D (expositivo)
NOTA: De acordo com os critérios do GAVE, a opção correta é a C - argumentativo. Com a devida dose de humildade perante a sapiência de quem elaborou a prova e os respetivos critérios, é nossa opinião que esta pergunta não faz sentido e está mal formulada, dada a «proximidade» entre o texto expositivo e o argumentativo, bem exemplificada no excerto indicado.

2.1. Predicativo do sujeito

2.2. Oração subordinada adjetiva relativa explicativa

2.3. Ato ilocutório compromissivo

terça-feira, 17 de junho de 2014

Exame Nacional de Português 9.º Ano - 2014 - Correção (1.ª chamada)

Grupo I

1.
     E
     C
     G
     D
     A
     F
     B

2.1. D

2.2. B

2.3. C

2.4. C

2.5. D




Grupo II

1. Recompensa inicial: dar três moedas de ouro ao almocreve.
Recompensa efetivamente dada: uma moeda ("um cruzado de prata" - linha 27).

2. A expressão refere-se à fala que o almocreve dirige ao jumento, o qual, enquanto animal irracional, não lhe responde, daí tratar-se de um «monólogo». Por outro lado, o adjetivo «paternal» remete para a ideia de um pai que aconselha e protege, carinhosamente, o seu filho. Com efeito, o almocreve dá-lhe conselhos de que «tomasse juízo» e adverte-o para um possível castigo a aplicar pelo narrador.

3. De facto, estamos na presença de duas figuras pertencentes a classes sociais diferentes: o almocreve é uma personagem pertencente ao povo, sem cultura e instrução, enquanto o narrador é um recém-licenciado da Universidade de Coimbra.
     Essa diferença é visível na linguagem, já que o almocreve se expressa num nível popular («vosmecê», «diabo do bicho») e faz uso da terceira pessoa («vosmecê»), enquanto o narrador se lhe dirige na primeira pessoa («deixa-me» - linha 11) e faz uso de uma linguagem cuidada.
     É, ainda, evidente nos comportamentos do primeiro, nomeadamente no gesto de falar com o burro como se fosse um ser humano, de o beijar na testa (ll. 23-24) e na forma cortês e exagerada como agradece a moeda dada (ll. 29-30).

4. A afirmação significa que, na ótica do narrador, afinal não havia qualquer mérito no ato do almocreve de o ter socorrido, pelo que não haveria justificação para a a recompensa.
     Os motivos que o levam a afirmar tal são os seguintes: primeiro, o almocreve, ao socorrê-lo, não foi movido por qualquer desejo de recompensa ou virtude, antes por impulso natural, por temperamento, «hábitos do ofício»; segundo, foi um ato fruto de mera casualidade, um «instrumento da Providência» (l. 36) encontrar-se, naquele exato momento, no local do acidente..

5.
a) Sentimento do narrador:
     - agradecimento / gratidão / reconhecimento («Bom almocreve!»).
b) Recompensa: três moedas de ouro.
c) Alteração da atitude do narrador: considera a gratificação inicialmente pensada excessiva (ll. 17-18), por isso crê que basta dar-lhe duas e, posteriormente, apenas uma.
d) Justificação: o almocreve era um homem simples, pobre, que nunca vira uma moeda de ouro e, portanto, se contentava com pouco (ll. 18-20).
e) Motivo dos «remorsos»: considera a recompensa dada excessiva, um gasto inútil e exagerado.
f) Ponto de vista: o narrador revelou-se um homem mesquinho e mal agradecido.
    Justificação: na linha 4, considera que o almocreve lhe salvou a vida, logo nenhuma recompensa seria demasiada para agradecer tal gesto.
     OU
     Ponto de vista: a mudança de atitude é justificável e compreensível.
     Justificação: o almocreve não agiu com a intenção de ser recompensado, antes procedeu como qualquer ser humano procederia ao ver um seu semelhante em perigo.



Grupo III

1.
Grupo 1:
     - a) astro - estrela
     - f) metal - prata
     - h) sentimento - remorso
Grupo 2:
     - c) arrogância - humildade
     - i) conhecimento - ignorância
Grupo 3:
     - e) recompensa - gratificação
     - g) preço - valor
Grupo 4:
     - d) livro - página
     - b) cidade - avenida
     - j) colete - bolso

2. B

3. Complemento oblíquo: «da estante».

4.1. Aprecio autores que recorrem ao humor, quando o usam com inteligência.

4.2. Como os nossos primos gostam de ler, oferecer-lhes-emos alguns livros.

5. C



Grupo IV

Funções do humor:
     - divertir: a cena dos amantes, a ingenuidade do Marido (Auto da Índia), a linguagem
                    do Joane (Auto da Barca do Inferno), etc.;
     - criticar comportamentos, atitudes, formas de estar e pensar (o adultério da Ama, o
        oportunismo dos amantes, o comportamento dos portugueses na Índia (Auto da 
         Índia), etc.;
     - denunciar ideias e problemas sociais considerados errados (o adultério, a ganância,
        a usura, a mentira, etc.);
     - criticar / denunciar preconceitos, estereótipos (religiosos, morais, sexuais, etc.).

terça-feira, 10 de junho de 2014

Oração problemática...

     Teste de avaliação...

     Pergunta: Classifica a oração «porque escreveu grandes obras.»

     Resposta da aluna (?): oração problemática.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Correção do exame de 4.º ano

     Aqui: http://aefcr-be.blogspot.pt/2014/05/correcao-do-exame-nacional-de-4-ano-2014.html

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Análise do Episódio de Inês de Castro


Episódio de Inês de Castro

. História de Inês de Castro

                D. Inês de Castro era uma fidalga galega, de rara formosura, que fez parte da comitiva da infanta D. Constança de Castela, quando esta, em 1340, se deslocou a Portugal para casar com o príncipe D. Pedro (1320-1367). A beleza singular de D. Inês despertou desde logo a atenção do príncipe, que veio a apaixonar-se profundamente por ela. Desta paixão nasceu entre D. Pedro e D. Inês uma ligação amorosa que provocou escândalo na Corte portuguesa, motivo por que o rei resolveu intervir, expulsando do reino Inês de Castro, que veio a instalar-se no castelo de Albuquerque, na fronteira de Espanha. D. Constança morreu de parto em 1345 e a ligação amorosa entre D. Pedro e D. Inês estreitou-se ainda mais: contra a determinação do rei, D. Pedro mandou que D. Inês regressasse a Portugal e instalou-a na sua própria casa, onde passaram a viver uma vida de marido e mulher, de que nasceram quatro filhos.
                Os conselheiros do rei aperceberam-se das atenções com que o herdeiro do trono português recebia os irmãos de D. Inês e outros fidalgos galegos, chamaram a atenção de D. Afonso IV para aquele estado de coisas e para os perigos que poderiam advir dessa circunstância, uma vez que seria natural antever a possibilidade de vir a criar-se uma influência dominante de Castela sobre a política portuguesa. E persuadiram o rei de que esse perigo poderia afastar-se definitivamente, se se cortasse pela raiz a causa real desse perigo: a influência que D. Inês exercia sobre o príncipe D. Pedro, que um dia viria a ser rei de Portugal. Para isso seria necessário e suficiente eliminar D. Inês de Castro.
                O problema foi discutido na presença dos conselheiros do rei em Montemor-o-Velho, e aí ficou resolvido que Inês seria executada sem demora. Quando D. Inês soube desta resolução, foi ter com o rei, rodeada dos filhos, para implorar misericórdia, uma vez que ela se considerava isenta de qualquer culpa. As súplicas de Inês só momentaneamente apiedaram D. Afonso IV, que entretanto se deslocara a Coimbra para que se desse cumprimento à deliberação tomada. E a execução de D. Inês efetuou-se em 7 de janeiro de 1355, segundo o ritual e as práticas daquele tempo. Anos depois, em 1360, D. Pedro I, já então rei de Portugal, jurou, perante a sua corte, que havia casado clandestinamente com D. Inês um ano antes da sua morte.
www.infopedia.pt


. Contextualização

                O episódio de Inês de Castro é integrado em Os Lusíadas logo após à batalha do Salado.


. Estrutura interna

1. Introdução e Antecedentes da Ação (estâncias 118-119)

. Plano narrativo: História de Portugal.

. Articulação com o Plano da Viagem: o episódio está encaixado no plano fulcral da obra. Durante a viagem, os marinheiros param em Melinde e o rei pede a Vasco da Gama que lhe conte a História do seu povo.

. Narrador: Vasco da Gama.

. Ação: o episódio de Inês de Castro ("O caso triste, e dino da memória / [...] / Aconteceu da mísera e mesquinha / Que depois de ser morta foi Rainha." ‑ est. 118, vv. 5, 7-8 ‑ perífrase: com este recurso, o poeta identifica a personagem e a singularidade da sua morte).
Alude-se, neste passo, à lenda segundo a qual D. Pedro I terá coroado Inês de Castro rainha após a sua morte.
De facto, em junho de 1360, o monarca declarou perante testemunhas que, aproximadamente sete anos antes, recebera como legítima mulher a D. Inês de Castro. Posteriormente, as testemunhas do ato depuseram em Coimbra e, na estátua do túmulo, D. Pedro colocou-lhe a coroa de rainha.

. Tempo histórico: reinado de D. Afonso IV, tempo de paz em Portugal, que se seguiu a um tempo de guerra, no qual interveio o rei: "Passada esta tão próspera vitória" ‑ referência à vitória obtida pelos cristãos na Batalha do Salado, travada a 30 de outubro de 1340 contra os Mouros, na qual D. Afonso IV participou com o exército português, em auxílio de Afonso IX de Castela. O episódio terá, portanto, decorrido 15 anos após essa batalha: 1355.

. Espaço: "Tornado Afonso [Afonso IV, o Bravo ‑ 1291-1357] à Lusitana terra".

. Dimensão trágica do episódio e da morte: “o caso triste”, “dino de memória”, “sepulcro”, “desenterra”, “mísera e mesquinha”, “morta”.

. O narrador identifica o Amor como a causa da morte de Inês de Castro (est. 119): “Tu, só tu, puro amor (…) / (…) / Deste causa à molesta morte sua” (vv. 1 e 3).

. Caracterização do Amor (personificado e adjetivado de forma negativa):
‑ causa exclusiva daquela tragédia (“Tu, só tu” – v. 1; reiteração do pronome pessoal e apóstrofe);
‑ “puro”;
‑ cruel (“com força crua”);
‑ “fero” (adjetivação anteposta);
‑ devorador insaciável da alegria humana, alimenta-se das lágrimas e do sofrimento dos que amam (“a sede tua / Nem com lágrimas se mitiga” – vv. 5-6 – metáfora e hipérbole);
‑ “áspero e tirano” (dupla adjetivação);
‑ sanguinário, exige sacrifícios humanos: “É porque queres, (…) / Tuas aras banhar em sangue humano.” (vv. 7-8).


2. Desenvolvimento – Ação central (estâncias 120 a 132)

. Localização espacial:
‑ Coimbra (“Nos saudosos campos do Mondego” – est. 120,v. 5);
‑ espaço idílico, de calma e sossego, propício ao amor.

. Retrato de Inês de Castro (est. 120-121):
físico:
‑ mulher linda (“linda Inês” – apóstrofe);
‑ “fermosos olhos” (est. 120, v. 6);
‑ jovem (“De teus anos colhendo doce fruito” – est. 120, v. 2).

psicológico:
‑ despreocupada e sossegada (“posta em sossego” – est. 120, v. 1);
‑ apaixonada, imersa no amor (“Naquele engano da alma, ledo e cego” – est. 120, v. 3 – dupla adjetivação);
‑ feliz (“ledo” – v. 3);
‑ sonhadora, alheada da realidade, pensando somente em D. Pedro (“Aos montes insinando e às ervinhas / O nome que no peito escrito tinhas.” – est. 120, vv. 7-8 – personificação);
‑ ingénua, não desconfia da tragédia que se adivinha (“engano de alma, ledo e cego” – est. 120, v. 3; “em doces sonhos que mentiam” – est. 121, v. 5) , preparada pelo Destino (“Fortuna” – v. 4) cruel que a persegue;
‑ saudosa do seu amor (“As lembranças que na alma lhe moravam” – metáfora – est. 121, v. 2);
‑ apesar de separados fisicamente, estavam sempre juntos em sonhos e pensamentos.

. Relação entre D. Inês e a Natureza: a Natureza é amiga e confidente dos sentimentos de Inês de Castro ‑ do amor e da saudade (“Aos montes insinando e às ervinhas / O nome que no peito escrito tinhas.” – est. 120, vv. 7-8). Assim sendo, há uma relação de cumplicidade entre a fidalga e a Natureza que a rodeia.

. Indícios do desenlace trágico da relação amorosa: “Naquele engano da alma, ledo e cego, / Que a Fortuna não deixa durar muito. “‑ est. 120, vv. 3-4; “De noite, em doces sonhos que mentiam” – est. 121,v.5).

. Retrato de D. Pedro:
‑ rei sensato e prudente;
‑ influenciado pela opinião do povo: “respeita / O murmurar do povo e a fantasia / Do filho” (est. 122, vv. 1-2);
‑ incomodado com a atitude do filho, dado que a rejeição de outras mulheres e do casamento gerava comentários e boatos entre o povo;
‑ por isso, determina matar Inês de Castro (“Tirar Inês ao mundo determina” – est. 123, v. 1 – eufemismo) – razão de estado: D. Afonso IV atribui à paixão de D. Pedro e D. Inês a causa da recusa do príncipe em aceitar um casamento mais conveniente para o Estado português;
‑ crê que, dessa forma, terminará com a relação entre ambos (est. 123, vv. 2-4).

‑ D. Afonso IV age por razões de Estado;
‑ a sua ação revela ingenuidade e ignorância relativamente à força do Amor por parte do Poder: crê-se, erradamente, que a morte do ser amado é suficiente para apagar o fogo da paixão.

. Nos quatro versos finais da estância 123, o poeta exprime o seu espanto e questiona a ação do rei, nomeadamente o contraste entre a ação glorioso de D. Afonso IV contra os mouros e o assassinato de uma fraca, indefesa e inocente (interrogação retórica).

. Inês de Castro perante D. Afonso IV – Momento que antecede a execução

. Ao ver Inês de Castro, trazida à sua presença, pelos «horríficos algozes» (adjetivação expressiva), o monarca fica comovido e tende a perdoá-la por piedade. Contudo, é persuadido pelas razões do povo, ainda que «falsas e ferozes”, no sentido da «morte crua» da mãe dos seus netos (“o avô cruel” – est. 125, v. 8). Note-se a insistência na qualidade de avô que condena a mãe dos seus netos e, por extensão, eles mesmos.

. Inês de Castro surge presa (“as mãos lhe estava atando” ‑ est. 125, v. 3), triste, cheia de mágoa e saudade do seu amor e dos seus filhos. De facto, o que lhe dói mais não é a própria morte, mas o facto de, morrendo, deixar os filhos, tão pequenos, órfãos e D. Pedro só (“Do seu príncipe e filhos, que deixava, / Que mais que a própria morte a magoava” – est. 124, vv. 7-8 – comparação).
Na estância 125, é focado, com especial incidência, o seu olhar, que se dirige, em primeiro lugar, para o Céu, raso de lágrimas, como se invocasse Deus como testemunha da sua inocência e, depois, para os filhos (“Que tão queridos tinha e tão mimosos” – a adjetivação e o advérbio de quantidade e grau «tão» salientam o seu lado de mãe excelente – est. 125, v. 6), evidenciando assim o seu amor de mãe que teme a sua orfandade, enquanto se prepara para pedir piedade ao rei.
No fundo, estas duas estâncias destinam-se a preparar a intervenção dramática de Inês de Castro, através da piedade que a personagem suscita, indefesa diante dos “horríficos algozes”, banhada em lágrimas e olhando os filhos inocentes diante do avô cruel, situação e comportamentos que, por outro lado, inspiram compaixão.

. Discurso de Inês de Castro (est. 126 a 129)

                No seu discurso, Inês de Castro apresenta vários argumentos tendentes à sua salvação, procurando suscitar a piedade e a clemência para si e para os seus filhos:

1. Pedido de clemência, por comparação com outros casos: Inês de Castro apela à piedade do rei, afirmando que até os animais ferozes e as aves de rapina demonstram, em várias situações, piedade em relação às situações (est. 126). Ela dá o exemplo das aves de rapina que criaram a “mãe de Nino” (Semíramis) e da loba que alimentou Rómulo e Remo (os fundadores de Roma), animais que mostraram piedade para com os seres humanos.

2. Apelo ao lado humano e à condição de avô:
. Inês apela à humanidade do rei para que a perdoe, pois não é humano matar uma donzela fraca só por esta se ter apaixonado por quem a conquistou (est. 127, vv. 2-4).
. Inês apela à piedade e ao respeito do rei pelos seus filhos, que são, em simultâneo, netos do monarca (est. 127, vv. 5-8).
. Inês apela à clemência do rei, que, tal como soube dar a morte aos mouros, deve saber dar a vida, poupando-a (est. 128, vv. 1-4).

3. Apresentação de uma proposta alternativa: se, apesar da sua inocência, o rei a quiser castigar, implora-lhe o desterro para um lugar longínquo e inóspito (uma região gelada ou tórrida ou para junto de feras), mas que lhe poupe a vida, de forma a poder continuar a amar D. Pedro e a cuidar e criar os seus filhos, que tanto precisam dela e são fruto desse profundo amor (est. 129). Nesta parte final do seu discurso, Inês recupera e reforça uma das ideias já antes apontadas: ela sugere que poderá encontrar nas feras a piedade que não encontra entre os seres humanos, aludindo novamente aos animais selvagens.

                Com este discurso, Inês de Castro procura, por um lado, suscitar a piedade e a clemência de D. Afonso IV para si e para os seus filhos, e, por outro, despertar nele o sentido de justiça e levá-lo a reconhecer que a sua condenação à morte é cruel e injusta.

. Reações ao discurso de Inês de Castro (est. 130)

                Após o discurso de Inês de Castro, D. Afonso IV emociona-se e comove-se com as suas palavras e “Queria perdoar-lhe” (v. 1), “Movido das palavras que o magoam” (v. 2). Atente-se no uso do adjetivo “benino” para o caracterizar, que é revelador da simpatia do narrador para com a figura do monarca. Aliás, ao longo de todo o episódio, é clara a intenção do narrador de aligeirar a responsabilidade do rei na morte de Inês de Castro.
                Porém, o “pertinaz” povo e o destino de Inês, há muito traçado, não permitem que o rei reveja a sua decisão inicial (est. 130, vv. 3-4). Observe-se o recurso à conjunção coordenativa adversativa «mas» (est. 130, v. 3), que introduz uma ideia de oposição relativamente à hesitação do rei e aponta o povo e o destino como os responsáveis pela morte.
                Historicamente, D. Afonso IV não pôde perdoar Inês por razões de Estado: os seus conselheiros convenceram-no de que Inês de Castro representaria um perigo para a independência de Portugal, caso casasse com D. Pedro.
                A apóstrofe final da estância 130, dirigida aos carrascos de Inês (“Contra uma dama, ó peitos carniceiros, / Feros vos mostrais e cavaleiros?”) estabelece um contraste entre a figura de uma dama frágil e indefesa e aos cavaleiros ferozes, os quais, de acordo com o código de cavalaria da época, estariam obrigados a defender e proteger as damas em perigo, frágeis e desamparadas, e não a assassiná-las. De facto, o narrador transmite-nos a imagem dos assassinos como sendo “carniceiros”, “brutos matadores”, isto é, a imagem de cavaleiros indignos dessa condição pela ferocidade e crueldade que mostram perante uma dama frágil e indefesa. Deste modo, os carrascos de Inês são apresentados como ferozes, cruéis e cobardes, pois apenas mostram valentia contra uma dama fraca.
                Observe-se, porém, que o verdadeiro «culpado» desta morte já foi apresentado na estância 119: o Amor, cruel e tirano, que domina e sujeita os corações humanos, gosta de os ver sofrer e gosta de ver o sangue derramado.

. Execução de Inês de Castro

                Na estância 131, Inês de Castro é comparada com Policena, filha de Príamo e Hécuba, ele rei de Troia, e irmã de Heitor e Páris, por quem Aquiles, um dos heróis e guerreiros gregos que cercaram aquela cidade, se apaixonou. Após a morte de Aquiles, à traição, por Páris, Pirro, filho do herói grego, assassinou a jovem sob o túmulo do pai, vingando-o desta forma.
                A comparação inicia-se na estância 131 (1.º termo) e conclui-se na 132 (2.º termo). Naquela, Policena é caracterizada como jovem, formosa e inocente, consolo e amparo da sua “mãe velha”, e vítima da ira de Pirro, que a sacrifica de forma cruel, implacável e impiedosa. Observe-se a comparação do verso 6 da estância 131 entre Policena e a “paciente e mansa ovelha” e o hipérbato do verso 8, que a apresentam, precisamente, como uma vítima inocente que se oferece ao “duro sacrifício”.
                Na estância 132, o 2.º termo da comparação, Inês é apresentada como vítima inocente, sacrificada às mãos dos “brutos matadores”, “férvidos e irosos”, cujo peito branco trespassaram com as suas espadas. Esta comparação, em suma, comprova que a morte indigna de Inês de Castro é um sacrifício bárbaro, cruel e desumano. Além disso, enquadra-se no espírito clássico que animava o Renascimento, caracterizado pela admiração e imitação dos autores clássicos, apresentando-se a heroína deste episódio à altura dessa heroína clássica.
                Note-se como, no último verso, o narrador reflete a realidade histórica, dando nota do facto de os conselheiros, no momento em que executavam Inês, ignorarem a vingança de D. Pedro assim que subiu ao trono. De facto, o monarca capturou dois dos três conselheiros – Pêro Coelho e Álvaro Gonçalves – e executou-os de forma bárbara.
                A estância 133 abre com uma apóstrofe dirigida ao Sol, através da qual o narrador exprime o seu repúdio pela morte de Inês de Castro. De facto, o seu assassinato foi um ato tão hediondo como cometido por Atreu, pelo que merecia também que o Sol se escondesse, horrorizado (comparação dos versos 3 e 4). Atreu tinha um irmão mais novo, Tiestes, que seduziu a sua esposa, Érope, e teve com ela vários filhos. Depois de descobrir a traição, Atreu, como forma de vingança, fingiu perdoar o irmão e preparou um banquete para celebrar a reconciliação, durante o qual lhe serviu os filhos fruto dessa relação adúltera entre Tiestes e a esposa do irmão. Horrorizado, o Sol escondeu-se.
                Nos últimos 4 versos da estância, o poeta dirige-se à Natureza, personificada, através de uma apóstrofe (“Vós, ó côncavos vales” – v. 5), a qual ouviu a última palavra proferida por Inês de Castro (“Pedro”) e a repetiu. De facto, os montes fizeram ecoar a última palavra dita por Inês.
                Na estância 134, o poeta faz uso de nova comparação, desta vez entre Inês de Castro e uma flor do campo. Num ambiente de juventude e inocência, uma menina corta boninas para fazer uma grinalda para adornar a sua cabeça. Colhida antes do tempo, a flor perde o cheiro e a cor. De igual modo, Inês de Castro, morta, perde a cor e a beleza (“Secas do rosto as rosas e perdida / A branca e viva cor, co a doce vida.” – vv. 7-8, est. 134 – metáfora e eufemismo) às mãos dos seus assassinos. Em suma, Inês, sem cor e sem vida, é comparada à bonina que foi cortada antes do tempo e que murchou: também ela possuía a beleza de uma flor, também ela tinha o viço da juventude e também ela foi morta antes do tempo.
                As ninfas do Mondego recordaram e choraram, durante muito tempo, Inês de Castro, tendo-se essas lágrimas transformado numa fonte que eternizou / imortalizou a memória dessa morte por amor a que chamaram «Dos amores de Inês» (Fonte dos Amores). Essa fonte situa-se na Quinta das Lágrimas, em Coimbra. Atente-se, estilisticamente, mas aliterações das consoantes nasais em /m/ e /n/, que sugerem o som contínuo do choro das ninfas, ou seja, o som das águas correndo.
                Nesta última parte do episódio, a Natureza surge novamente como cúmplice de Inês de castro, refletindo a tragédia que se abateu sobre ela. Assim, os montes ecoaram a sua última palavra, ela é comparada a uma bela e inocente flor que foi colhida antes do tempo e as ninfas do Mondego choraram copiosamente a sua morte, tendo as suas lágrimas dado origem à Fonte dos Amores.



. Características trágicas do episódio
. A ação é trágica e atinge o se clímax com a morte da protagonista, Inês de Castro, apresentada como uma vítima inocente.
. Camões respeita a lei das 3 unidades: de ação (a morte de Inês de Castro), de espaço (Coimbra) e de tempo (duração aproximada de 24 horas).
. A presença / intervenção do Destino: "Naquele engano de alma ledo e cego / Que a Fortuna não deixa durar muito ‑ est. 120, vv. 3-4; "Mas o pertinaz povo e seu destino" (est. 130, v. 3).
. A existência da peripécia, súbita mudança de rumo dos acontecimentos, em vários momentos da ação.
. A presença do coro, evidente nas intervenções emocionais do poeta que acompanham o desenrolar da ação e através das quais a vai comentando (estância 119, últimos 4 versos da estância 123, dos dois últimos versos da estância 130 até à 135).
. A catástrofe. constituída pela morte de Inês de Castro.
. A inspiração dos sentimentos de terror e piedade. O terror é sugerido por determinadas expressões: "horríficos algozes", "ferozes razões", "morte crua", "duros ministros rigorosos", "avô cruel", "morte escura", "peitos carniceiros", "brutos matadores", "encarniçavam férvidos e irosos".
Por sua vez, a piedade é suscitada:
- pelo contraste entre a vivência de uma felicidade despreocupada e a súbita desgraça que sobre Inês se abate;
- pela desproporção de forças entre uma "fraca dama delicada" e a brutalidade e crueldade dos seus "brutos matadores";
- pelo conjugação de uma morte injusta e uma vítima inocente;
- pelo contraste entre a humanização das feras e da natureza e a falta de humanidade dos homens;
- pela imagem de Inês de Castro implorando perdão ao rei, rodeada dos seus filhos;
- pelas intervenções do poeta.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...