Português

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

A próclise

     Cada vez se escreve pior em todo o lado, incluindo os meios de comunicação social. Este facto talvez se fique a dever a uma apreciável falta de cuidado, um "tanto faz", mas é possível que também possa ter a ver com a falta de preparação dos atuais jornalistas da nossa praça.
     Qualquer que seja a razão, os erros medram, nomeadamente nas plataformas digitais dos nossos jornais e revistas.

     Neste caso, o que está a questão é a colocação do pronome «se» e logo nesse baluarte que é o Expresso:


     Pois bem, o novo contrato de Messi tem para lá, como diria Luís Filipe Vieira, umas cláusulas, incluindo esta: "... se a Catalunha se tornar independente..." e não como aparece escrito.

     A explicação para a anteposição do pronome à forma verbal pode ser encontrada aqui.

'Ter de' ou 'ter que'?


     "Toda a saúde, pública, privada ou social TEM QUE ser repensada." OU "Toda a saúde, pública, privada ou social TEM DE ser repensada."? Qual é a construção correta?

     O uso da construção 'ter que' em vez de 'ter de' é frequentíssimo, mas, como é habitual noutro casos e noutras circunstâncias, a generalização não invalida que se trata de um 'erro'.

     Repare-se como, neste edição do programa «Bom Português» [aqui], da RTP, se sustenta, precisamente, a utilização errada da primeira construção.

     Sem mais delongas, citamos a explicação da professora Regina Rocha [aqui], com a qual concordamos em absoluto, considerando, no entanto, outras possibilidades [aqui e aqui, por exemplo]:

1. Ter de
Ter de é uma expressão utilizada quando se pretende dizer que se tem o desejo, a necessidade, a obrigação ou o dever em relação a uma qualquer acção: «tenho de me ir embora» (= sou obrigado a ir-me embora, devo ir-me embora, tenho necessidade de me ir embora), «ele tem de arrumar o quarto» (= ele deve arrumar, tem o dever de arrumar o quarto), «temos de nos ouvir uns aos outros» (= temos o dever ou a obrigação de nos ouvir).
Nesta situação, o verbo «ter» é um verbo auxiliar da conjugação perifrástica: auxiliar ter + preposição de + verbo no infinitivo. Assim, «ter de», por si só, significa «ter necessidade de», «precisar de», «ser obrigado a», «dever», designando, pois, a necessidade de praticar a acção expressa pelo verbo que se segue, que é o verbo principal.

2. Ter que
Nesta situação, o verbo «ter» não é um auxiliar; é um verbo com a plena significação de «possuir», «ser detentor de», «estar na posse de», «desfrutar», «usufruir», «poder dispor de».
Por exemplo, se alguém quiser dizer que «tem muito trabalho», poderá utilizar a expressão «que fazer» para substituir a palavra «trabalho»: «Tenho muito que fazer.» Do mesmo modo, se quiser dizer que tem uma série de histórias ou aventuras para nos contar, pode utilizar a expressão «que contar» para referir esse conjunto de relatos: «Ele viveu muito, tem muito que contar.» Se quiser, ainda, dizer que tem em casa muita matéria para estudar, assuntos sobre os quais se debruçar, poderá utilizar a expressão «que estudar»: «Tenho tanto que estudar!» E também podem surgir frases sem esse antecedente, subentendendo-se «coisas», «alguma coisa», «algo» (na negativa, «nada») a que o relativo se refira: «ele não tem que fazer» (= não tem coisas que fazer, não tem nada que fazer), «ele não tem que comer» (= não tem nada que comer), «ele não vai ter que dizer» (= não vai ter nada que dizer).
Por outro lado, esses sintagmas «que fazer», «que contar», «que estudar», «que comer», «que dizer» assumem, pois, força substantiva, como se pudessem ser substituídos por «trabalho» ou «afazeres», «relatos», «estudo», «comida», «palavras», etc.: «ele tem que fazer» = ele tem trabalho, tem afazeres; «ele tem que comer» = ele tem comida; «ele não tem que dizer» = ele não tem palavras. E entre o verbo «ter» e o pronome relativo «que» poderá ser colocado um indefinido (tanto, muito, pouco).

3. Ter de distingue-se, pois, de ter que, porque no primeiro caso está presente a ideia da obrigação, da necessidade, do dever, enquanto no segundo está presente a de dar uma informação sobre o que o emissor possui ou tem em mãos.
Vou construir duas frases semelhantes, em que apenas substituo a preposição «de» pelo pronome relativo «que», de modo a mostrar como o sentido é diferente.
a) «Ele não vai sair, porque tem de estudar.» – Com esta construção pretende dizer-se que ele precisa de estudar, deve estudar, tem a obrigação ou a necessidade de estudar, está obrigado a estudar; e a necessidade de estudar impede-o de sair.
b) «Ele não vai sair, porque tem que estudar.» – Com esta construção pretende dizer-se que ele tem matéria para estudar. Não é do dever de estudar que se pretende falar, mas da quantidade de estudo que há para fazer. Não é o dever de estudar que o impede de sair, mas a quantidade desse estudo: não é o que «deve», aquilo de que «precisa», mas o que «tem», o que «possui».


Em síntese:

Ter de: obrigatoriedade

  • Tenho de estudar.
Ter que: estar relacionado com
  • Este assunto tem que ver com o tema da conversa de ontem.
Ter que: ter algo para (com verbos transitivos cujo c. direto não está explícito)
  • Tenho (algo/coisas) que fazer.
  • Tenho o que fazer.
  • Tenho mais que fazer.

Reforma educativa em Espanha


     Pensavam que era só por cá?

     Não! É um movimento global. Então em países onde a OCDE mete a sua pata... ui!

PAFC (Projeto de Autonomia e Flexibilidade Curricular)

     As coisas em Espanha, no campo da Educação, andam também num virote.

     Por cá, é apresentado como modernaço algo que tem décadas, para não dizer séculos. Observe-se o que postou um professor espanhol no seu Twitter:


quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Caracterização / retrato de Inês Pereira


(A) Inês Pereira: rapariga ambiciosa e sonhadora


1. Externa:
. o travesseiro para costurar;
. a touca;
. os véus.

2. Retrato social: Inês é uma jovem pertencente à pequena burguesia.

3. Linguagem:
. trocista;
. crítica;
. revoltada;
. irónica;
. mordaz.

4. Psicológica:

1. Solteira:
. é ociosa e preguiçosa (“finge que está lavrando”), detesta a costura e despreza a vida rústica do campo;
. o seu quotidiano é monótono e entediante: costura, borda e fia;
. vive descontente, revoltada e insatisfeita com a sua vida: aborrecida e enfadada com as tarefas domésticas; presa, fechada e confinada à casa; impossibilitada de se divertir como as jovens da sua idade e sem liberdade;
. é alegre, quer sair de casa e divertir-se, mas é contrariada pela mãe;
. é ambiciosa, sonhadora e idealista, anseia casar-se com um homem que, ainda que pobre, seja “avisado” (isto é, discreto), sensato, meigo e saiba cantar e tocar viola (características do homem de corte), para fugir à vida que tem, viver alegre e livre e ascender socialmente;
. julga que, sendo “aguçosa” (delicada), não lhe será difícil arranjar marido e casar;
. a carta que Pêro Marques envia não lhe agrada; considera-o um “vilão” disparatado e simplório;
. insensível e cruel, troça e desdenha de Pêro Marques quando este a visita e rejeita-o, por o considerar rústico, simplório, um “vilãozinho” que não corresponde ao seu modelo de marido;
. leviana e pretensiosa, por considerar que Pêro Marques é antiquado por não se aproveitar do facto de estar sozinho com ela
. segundo a sua conceção, o casamento faz-se por amor e é sinónimo de libertação (do “cativeiro” da vida de solteira e da sujeição à mãe), daí que deseje um homem sensato, meigo e com dotes musicais; os bens materiais não são necessários.

2. Casada e viúva:
. casa com Brás da Mata, o Escudeiro (homem que parece corresponder às suas exigências e constituir o meio de emancipação e de ascensão social), sem saber que ele é pobre e interesseiro;
. fica a viver em casa da mãe, que se retira para viver num casebre;
. é infeliz, pois o marido não a deixa cantar e prende-a em casa:
- reclusão em casa;
- falta de contacto com o exterior e com outras pessoas;
- absoluta submissão aos ditames do marido;
- entrega ao trabalho;
. fica sozinha, vigiada pelo Moço, quando o seu marido vai para Marrocos lutar contra os mouros, o que revela o seu estatuto social desfavorecido;
. mostra-se revoltada com a sua situação e conclui que foi imprudente na escolha do marido, arrependendo-se por não ter optado por um pretendente mais dócil;
. reconhece, num momento de autocrítica, que errou ao rejeitar Pêro Marques e ao casar-se com o Escudeiro;
. deseja a morte do marido e jura que se casará uma segunda vez com um marido que seja submisso, para gozar a vida e se vingar das provações sofridas enquanto foi casada com Brás da Mata;
. não se comove com a morte do marido, pelo contrário, sente-se alegre e livre;
. é hipócrita, fingida e dissimulada (quando é visitado por Lianor) ao chorar pelo marido morto e ao dizer que está triste, simulando dor e luto;
. reconhece que a experiência de vida ensina mais do que os mestres (o saber livresco, teórico: “Sobre quantos mestres são / experiência dá lição”): o casamento com o Escudeiro ensinou-lhe o engano dos seus ideais;
. o casamento com o Escudeiro altera o seu conceito de “libertação”:
- inicialmente: sinónimo de casamento com um homem da corte, discreto;
- após o casamento: consciência de que o matrimónio pode ser sinónimo de cativeiro e subjugação;
- após a notícia da morte do Escudeiro: opção por um “muito manso marido” como forma de emancipação / libertação.

3. Casada em segundas núpcias:
. materialista, pragmática e calculista, decide casar-se com Pêro Marques (pois este é abastado e ingénuo e tem consciência de que se lhe imporá e ultrapassará, com este casamento, as limitações da sua condição de mulher);
. casada com Pêro Marques, ganha a autonomia que sempre desejou, a ascendência sobre o marido e a liberdade que lhe permite ter um amante, num contraste claro com o encerramento em casa e a opressão de que era vítima às mãos do Escudeiro);
. canta e, livre, sai de casa com o consentimento do marido;
. tem o hábito de dar esmola ao Ermitão de Cupido;
. inicialmente, não reconhece o Ermitão como um apaixonado do seu passado, mas acaba por cometer adultério com ele;
. abusa da ingenuidade do segundo marido e pede-lhe para a acompanhar à ermida, para um encontro amoroso com o Ermitão;
. adúltera, trai o marido com o Ermitão (“Corregê vós esses véus / e ponde-vos em feição.” – Inês vem descomposta porque teve um encontro com o religioso).

            Inês participa simultaneamente da natureza de personagem plana (tipo de rapariga fantasiosa e leviana) e modelada (carácter).
            Podemos considerar que a sua caracterização contempla três fases:
. enquanto solteira é alegre, amiga de viver à sua vontade, mas preguiçosa, pensando somente em casar e contentando-se com um marido “pobre e pelado” e que saiba “tanger viola”, cantar e falar bem;
. após ter recusado Pêro Marques, que insulta com nomes bastante ofensivos, casa com o Escudeiro, mas a sua vida modifica-se para pior, passando a viver como uma reclusa;
. quando o marido morre em Arzila, fica de novo livre, desta feita para casar com Pêro Marques, o “asno” que a leva. A Inês da parte final demonstra, por um lado, ter evoluído em relação ao início, sendo mais materialista, pragmática e calculista (abandonou a fantasia e aprendeu a lição da experiência); por outro lado, quando decide visitar o Ermitão, seu antigo pretendente, deparamos com a mesma Inês leviana e pouco consciente.


Papel / relevo nas personagens de 'Farsa de Inês Pereira'


. Principais: Inês Pereira, Pêro Marques e Escudeiro.

. Secundárias: Mãe, Lianor Vaz, Judeus casamenteiros (Latão e Vidal), Moço e Ermitão.

. Ainda que se possa apresentar Inês como a protagonista da peça, é possível considerar também Pêro Marques e o Escudeiro como personagens principais, pois ambos são indispensáveis à concretização do provérbio que esteve na génese da farsa e, por outro lado, é o seu desempenho que condiciona a evolução da jovem.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

A farsa no século XVI


            A farsa, no século XVI, era um género dramático que permitia uma grande variedade temática, privilegiando-se a de natureza cómica, e bastante flexibilidade no que dizia respeito às questões formais, como as unidades de tempo e de espaço, e à divisão do texto em cenas ou pausas.
            As suas principais características eram ase seguintes:

Género literário

Farsa
. Variedade temática:








. Personagens:







. Estrutura interna:


. Estrutura externa:


. Dimensão satírica:



. Outras características:

. luta entre forças opostas;
. relacionamento humano familiar e amoroso;
. oposição dos valores tradicionais e convencionais a valores individuais e pessoais;
. recurso frequente ao equacionamento de um triângulo amoroso.

. número reduzido de personagens;
. abundância de tipos sociais característicos da época;
. presença de uma personagem redonda que evolui, psicológica e moralmente, ao longo da peça.

. delineamento de uma intriga com um nó, desenvolvimento e desenlace.

. ausência de divisão em atos e de marcação de cenas.

. presença de sátira, fonte de cómico;
. subversão da ordem social estabelecida através da sátira.

. despreocupação com as unidades de tempo e espaço;
. utilização de poucos recursos cénicos;
. recurso frequente a uma linguagem de conotações eróticas.


Argumento da 'Farsa de Inês Pereira'

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

"Cada um cumpre o destino que lhe cumpre"

     Este poema é constituído por três quadras, correspondendo cada a uma parte do texto.
     Assim, na primeira estrofe, a primeira parte, o sujeito poético tece um conjunto de considerações gerais acerca do destino e da sua aceitação por parte do Homem. Desde logo, há que destacar a repetição da forma verbal "cumpre" (quatro vezes), com significados diferentes: por um lado, significa "completar", "executar" ("Cada um cumpre"); por outro, quer dizer "caber", "pertencer" ("o destino que lhe cumpre"). Igualmente repetida quatro vezes é a forma verbal "deseja". Da conjugação destas duas repetições resulta uma relação de oposição que domina esta parte do texto, concretamente entre a vontade do ser humano e aquilo que o destino lhe impõe. Deste modo, nos dois versos iniciais, o sujeito poético constata que "Cada um" cumpre somente o destino que lhe está reservado, não alcançando o que deseja nem desejando, afinal, o  destino que cumpre ou vive. Quer isto dizer que o ser humano não tem poder e liberdade de escolher o seu destino; pelo contrário, este é uma força superior que o oprime e decide por si, limitando-se ele a cumprir a vontade do Fado. O Homem é, portanto, um ser permanentemente insatisfeito e frustrado, visto que não vive o que deseja, não alcança a vida que pretende ou sonha, mas também não se satisfaz com o destino que lhe coube. Qual é a resposta a este estado de coisas? A resistência e consequente insatisfação e a frustração? Ou a aceitação voluntária do que lhe é imposto?

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Provérbio "Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube"


a) “Mais quero asno” ¾® Pêro Marques, marido estúpido e ingénuo;

b) que me leve” ¾® que leve Inês a cavalo, ou seja, que lhe faça todas as vontades;

c) “que cavalo” ¾® Escudeiro, marido “avisado” e “discreto”;

d) “que me derrube” ¾® que a derrube, ou seja, que lhe faça a “vida negra”, lhe tire a liberdade e a ameace e maltrate.



            Sobre este tema, transcrevemos o programa “Lugares Comuns”, da autoria de Mafalda Lopes da Costa, Antena 1, de 24 de janeiro de 2012:

            Passar de cavalo para burro corresponde a ficar em pior situação, descer de categoria ou posto, passar de um cargo importante para outro que lhe é inferior, descer de posição social, em suma, ser rebaixado, ficar pior.
            Segundo o filólogo brasileiro Aurélio Buarque de Holanda, a expressão nasceu por analogia com uma antiga prática de sanção militar. Antigamente, no exército a cavalo, o sargento que perdia as divisas, por exemplo, por má conduta, e passava par acabo ou soldado raso perdia também o cavalo e era-lhe dado a montar uma mula ou mesmo um burro.


Tema da 'Farsa de Inês Pereira'

Esta farsa é o desenvolvimento dramático do provérbio Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube. Gil Vicente desenvolveu este dito popular, que lhe foi apresentado por alguns fidalgos que desconfiavam da sua honestidade literária. O mote foi muito bem trabalhado, provando Gil Vicente, desta forma, que a calúnia não tinha razão de ser. Trata-se de uma história bem urdida, com princípio, meio e fim, à maneira do Auto da Índia ou do Velho da Horta.

Os Lusíadas em português atual (acompanhados de notas)

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