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terça-feira, 9 de julho de 2019

O classicismo francês: a época de Luís XIV

            Em França, as guerras de religião haviam rematado no século XVI pelo Edicto de Nantes (1598) e o advento da dinastia bourbónica. Deste compromisso precário entre a burguesia huguenote e a aristocracia católica resulta, como fiel da balança, a política absolutista de Richelieu, Mazarino e Luís XIV, profundamente diferente, no seu significado social, do absolutismo peninsular. A coroa sustenta, além da nova burocracia do absolutismo, a velha aristocracia de sangue, que, domesticada depois do esmagamento da Fronda, faz uma vida ociosa de corte. A burguesia ascende, em parte, à categoria de cargo, prevalece na administração central, enriquece com os fornecimentos e arrematações dos impostos da Coroa, impõe a política mercantilista que permite o desenvolvimento da manufatura (indústrias de luxo, mineração, construção naval, têxteis, etc.). Batidos os Filipes na Paz dos Pirenéus de1659, a França torna-se a potência hegemónica da Europa. Mas a «guerra do dinheiro», de conquista surda dos mercados e do ouro, conduzida por Colbert e as suas Companhias contra as outras potências, empurra Luís XIV a uma série de lutas armadas que desprestigiam o absolutismo e dão lugar ao agravamento da situação económica das massas populares.
            Sob o ponto de vista cultural, o grande foco é ainda então a corte, que deve à corte madrilena a iniciação em muitos requintes. No campo literário, Honoré d’Urfé, com o início da Astrée e, 1608, introduz na corte francesa o formalismo da alegoria pastoral anteriormente consagrada pela Diana de Montemor, dando o modelo para as damas preciosas dos salões da marquesa de Rambouillet e de M.lle. Scudéry; e Corneille, com o Cid (1636-37), adapta o drama espanhol ao gosto francês, inaugurando o teatro clássico em França. Mas a um estado de coisas político e social mais estável e a um nível já superior corresponde um espírito mais analítico e racionalista, um sentimento de vida mais confiante, mais equilibrado e menos patético que o prevalecente em Espanha. Há uma enorme floração de doutrinadores e preceptistas literários, cheios de ponderação sensata, entre os quais se destacam o poeta Malherbe, à entrada do século, e Boileau, cerca do último quartel (Arte Poética, 1674). Ao mesmo tempo a Academia Francesa (1635) e vários gramáticos racionalistas desempenham o seu papel de codificação e apuramento linguísticos.
            No terreno filosófico, a figura dominante do século XVII francês é Descartes, também um dos criadores da álgebra, da geometria analítica e da mecânica. A sua filosofia, como a do seu contemporâneo inglês Bacon, centra-se no problema da metodologia científica (Discurso do Método, 1637). Em última análise, o método cartesiano reduz-se a interpretar os fenómenos segundo esquemas mecânicos, geométricos e algébricos. Descartes, por outro lado, acautela o idealismo tradicional e a teologia, e não discute as instituições políticas e sociais do tempo; sustenta a imaterialidade e eternidade do espírito, mas concebido como simples consciência das leis mecânicas do mundo, e afirma a existência de Deus, mas como garantidor da realidade objetiva das leis científicas – um Deus, aliás, que (pelo menos sob certa leitura de Descartes) é a negação mesma do milagre.
            Com Newton, Pascal e Leibniz, além do método experimental, integram-se no pensamento científico os conceitos de energia e de infinito. A preocupação da infinidade e da omnipotência divinas, agora que a ciência impunha uma conceção infinitista e energética do mundo, sente-se nos Jansenistas de Port-Royal, de que Pascal foi a figura dominante.
            À ascensão do absolutismo em França corresponde o teatro de Corneille (Horácio, Cinna, 1640), em que se apresenta sempre a vitória da autodisciplina cívica do protagonista sobre as paixões pessoais mais veementes. Com Racine, os conflitos da tragédia já lisonjeiam mais as paixões, e a noção de dever desloca-se do clima cívico para o clima familiar (Fedra, 1677). Um e outro levam à maior perfeição o esquema das três unidades (ação, lugar e tempo), que ao teatro clássico francês uma grande densidade psicológica e ideológica. Entretanto, a comédia de caracteres de Molière, fundindo o racionalismo francês com a experiência de palco da Commedia dell’Arte, critica penetrantemente a hipocrisia e a fatuidade do sistema feudal remodelado sob o absolutismo, atingindo ao mesmo tempo a caça ao lucro, ou ao prazer e várias deformações psicológicas, típicas não só da nobreza mas também da burguesia dirigente, com um poder de apreensão que os ideólogos burgueses perderão mais tarde no seu propagandismo revolucionário (Preciosas Ridículas, 1659; D. João, 1665; Tartufo, 1669; As Sabichonas, 1672, etc.).
            Os sintomas de dissolução ideológica do regime de Luís XIV começam por se fazer sentir nos meios aristocráticos. Tal como na aristocracia tory inglesa, desenvolve-se o ceticismo galante dos libertinos, que transvasa para as obras de um estilo seco e cínico (Máximas de Rochefoucauld, 1665, Caracteres de La Bruyère, 1688, Fábulas de La Fontaine, 1668); os espíritos volvem-se para as pequenas coisas, registam efemérides e ditos, redigem memórias, correspondência literária, mantêm o tom racionalista, mais virado para o mundo psicológico ou para uma perspetiva pessimista do mundo social (Memórias do cardeal de Retz e do duque de Saint-Simon; Cartas de M.me de Sévigné; Princesse de Clèves, romance de M.me de Lafayette, 1678). Entre 1680 e 1715 decorre o período que Paul Hazard denomina de «crise da consciência europeia», no qual se confirma o descrédito das instituições e formas culturais da época de Luís XIV.

O papel da Inglaterra seiscentista

            Na França e na Inglaterra, o capitalismo comercial e a cultura burguesa não dominam tão livremente, mas, por vias mais sinuosas, impõem a sua influência.
            Na Inglaterra, o absolutismo dos Tudors elimina desde Henrique VIII a alta aristocracia feudal e o clero regular, mas a nobreza que ascende com as secularizações (gentry) e a burguesia de Londres mantêm o controlo do fisco pelo Parlamento. Os filhos segundos da gentry, vedado o acesso à carreira do clero regular, das armas ou do funcionalismo, em resultado das secularizações e da moderação do fisco régio, ingressam por isso na burguesia. A Coroa garante o monopólio, a que se associa, das companhias criadas para fazer o corso às frotas hispânicas e conquista os entrepostos do Báltico, do Mediterrâneo e depois do Índico e da América do Norte. O reinado de Isabel (1558-1603) e ainda o do primeiro Stuart, Jaime I, correspondem por isso, não apenas ao desenvolvimento de uma cultura amaneirada de corte, em que se salientam a poesia para canto e o pastoralismo convencional (Sidney, Spenser, John Lily, autor do romance Euphues, 1579-80, donde derivou o nome de eufuísmo para o estilo culto inglês), mas também ao surto de uma riquíssima escola teatral em que se fundem o naturalismo renascentista, a cultura universitária de muitos dramaturgos, a ânsia de aventura e domínio, as inquietações ideológicas da burguesia, o estilo floreado da corte (Marlowe, Shakespeare, Ben Jonson, Fletcher, etc.).
            O desenvolvimento posterior da burguesia e o endurecimento da sua ideologia puritana, por um lado, a reação correspondente por parte dos monarcas Stuarts e da aristocracia mais exclusivamente agrária, por outro lado, precipitam depois as revoluções de 1648 e 1688, cujo saldo final é uma vitória sobre o absolutismo por parte de uma coligação tácita entre a burguesia londrina menos puritana e a aristocracia Whig, que lhe está estreitamente ligada. Estas duas camadas vão realizar durante o século XVIII uma dupla revolução: a revolução agrária da enclosure, eliminação do pequeno campesinato feudal, já iniciada em começos do século XVI, e a revolução industrial. Através das vicissitudes seiscentistas, o puritanismo revolucionário exprime-se literariamente pela obra de Milton (Paraíso Perdido, 1667) e Bunyan (Caminhada do Peregrino, 1678); a aristocracia opõe ao zelo puritano um teatro e um lirismo profundamente cínicos e intelectuais (Wycherly, Congreve, Lovelace, etc.).
            Por meados do século XVII, a Sociedade Real de Londres, ilustrada por figuras como Roberto Boyle e Newton, torna-se o foco mundial da investigação científica, onde se lançam as bases de uma nova disciplina da física, a dinâmica, articulada com o também recente cálculo infinitesimal. No desenvolvimento do empirismo e sensualismo inglês, Hobbes e Locke sucedem a Francisco Bacon, que em 1620, com o Novum Organum Scientiarum, dera o primeiro tratado de metodologia científica experimental. Locke, o filósofo da revolução de 1688, que escreve em inglês para toda a gente, e não já em latim escolástico, é o pensador que mais influência exerce na Europa por todo o século XVIII. Este conjunto de circunstâncias sociais e culturais explicam que a Inglaterra, país onde a revolução burguesa, embora menos radical e rematando num compromisso que dura até à época vitoriana (reforma eleitoral de 1832), se antecipa de um século à da França e, em geral, do Continente, seja no início do século XVIII a herdeira imediata das criações holandesas de inícios do século XVII: jardins, conforto do lar, pintura de paisagem, de retrato e de interiores, jornalismo, filosofia progressiva, livre-cambismo, teoria dos direitos fundamentais do homem e da divisão dos poderes do Estado.

O papel precursor da Holanda

            Enquanto os domínios ultramarinos permitiam à aristocracia peninsular um reagrupamento defensivo em torno da Coroa, mantendo na sociedade e na cultura de Portugal e Espanha certas características feudais, e propiciavam depois uma hegemonia política mundial da Espanha que atinge o apogeu sob Filipe II (1556-98), e se prolonga até ao desfecho da Guerra dos Trinta Anos (1618-48) – em alguns países da Europa Ocidental, não sujeitos ao seu domínio, a estrutura social e política sofre consideráveis alterações. É que, afinal, a Bolsa de Antuérpia (1531), centro do comércio continental das especiarias portuguesas, e os banqueiros da Alemanha do Sul, principais financiadores das Coroas peninsulares, apesar das sucessivas falências individuais, tinham exercido o real controlo da nova economia mundial recém-nascida. Os recursos dos reinos de Portugal e Espanha esgotavam-se já no século XVI, cada vez mais incapazes de ocorrer aos gastos da oligarquia administrativa e militar e de satisfazer os juros de dívidas astronómicas. A nova aventura cavaleiresca em Marrocos afunda-se em Alcácer Quibir (1578); a Casa da Áustria acrescenta o império português aos seus domínios, mas em 1588 vê a sua «Invencível Armada» batida pelos Ingleses. O século XVII vai assistir ao triunfo de um grande capitalismo mercantil, constituído em companhias de acionistas particulares que pertencem, indiferentemente, a vários credos ou nações e que utilizam um Estado nacional como garantia do seu monopólio.
           A inovação parte dos Holandeses, cujos armadores, associando-se a capitais internacionais (em grande parte dos Marranos, ou Cristãos-Novos expulsos da Península), criam, a partir de 1592, as célebres Companhias das Índias, primeiro para fazer a guerra de corso às frotas filipinas, e depois para desalojar o império Habsburgo dos seus principais entrepostos da Indonésia, Índia, África do Sul e Central. A expansão colonial holandesa é facilitada por um tolerantismo comercialista, próprio de um Estado federativo, descentralizado, dir-se-ia que ele próprio imagem de uma empresa por ações. A Banca de Amesterdão (1611) torna-se o centro do capitalismo internacional. O calvinismo, dominante entre a burguesia holandesa, reabilita o juro e a especulação bancária.
            A Holanda torna-se na primeira metade do século a estante giratória com prateleiras para as heresias que minam os estados monarco-feudais: refúgio dos judeus peninsulares, dos dissidentes ingleses fugidos aos Stuarts, dos huguenotes franceses. Giordano Bruno, Galileu, Descartes editam lá as obras que teorizam a mecânica celeste e geral; impressores holandeses, como os Elzevir, erguem a arte tipográfica a um novo nível; nasce das informações bolsistas a imprensa periódica, com as Gazetas; o naturalismo renascentista prolonga-se ali. Trata-se do culto da ciência experimental e algébrica (Huyghens), que através da ótica e da criação do microscópio lança a microbiologia com Leeuwenhoek; um judeu de origem portuguesa, Bento de Espinosa, identifica Deus com a Natureza, critica a autoridade de quaisquer Escrituras Sacras e do poder monárquico, concebe a liberdade moral como não passando de uma consciência interiorizadora da causalidade universal, considerando comportamento ético apenas aquele que só obedece a razões – depois de armado com o conhecimento das causas. Grócio fundamenta o direito internacional em regras que julga existirem, não por decreto sobrenatural, mas na natureza humana (direito natural). A escola holandesa de pintura inovadoramente naturalista, substitui a iconografia religiosa por retratos, interiores burgueses e paisagens (Franz Hals, Hooch, Vermeer, Hobbema, Ruysdael). Rembrandt, como veremos, representa já algo para além desse naturalismo.

Obra do Padre António Vieira

            António Vieira legou-nos cerca de 200 sermões, que lhe valeram ser considerado o maior orador sacro de Portugal, mais de 700 cartas, diversos tratados de caráter profético e um conjunto de textos de natureza política e social, conjunto este que simboliza o modo como o escritor se comprometeu com a vida e a cultura do seu tempo. Destes textos destacam-se os referentes à venda ou à recuperação de Pernambuco; os relativos à Inquisição e aos Cristãos-Novos; os que concernem a liberdade dos Índios; e os dedicados ao seu próprio processo inquisitorial.
            Nos textos de feição visionária – História do Futuro, Livro Anteprimeiro (prólogo explicativo daquela), Esperanças de Portugal, Clavis Prophetarum, Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício –, procura explicar o verdadeiro sentido das trovas do Bandarra, as quais apontavam para a consumação do Quinto Império: um império universal, harmónico, onde coubessem todas as raças e todas as culturas, unidas espiritualmente num único reino cristão e católico.
            As cartas, escritas entre 1626 e 1697, patenteiam o gosto de uma experiência vivida. Umas vezes é a longa missiva, ordenada, sistemática, a antever já virtuais leitores, reveladora das principais preocupações do autor; outras, é a carta dita “familiar”, dirigida geralmente a um amigo, onde perpassam impressões fugazes, desabafos e episódios da sua vida íntima; aqui e ali, breves discursos ou simples expressões de amizade e cortesia. Descobrem-se, nestas epístolas, referências à vida militar e económica do tempo; incorporam-se autênticos ensaios de administração ultramarina; criticam-se certos pregadores e retratam-se homens e individualidades de então; defendem-se os índios do Brasil; relatam-se as horas de êxito vividas no púlpito ou os momentos amargos dos anos de pobreza; observam-se e descrevem-se povos, costumes, lugares; e focalizam-se tantos outros assuntos que mereciam ser mencionados.
            Pejadas de pormenores e registando os pontos fulcrais de um percurso biográfico, as cartas do Padre António Vieira transformam-se num valioso testemunho quer dos diversos condicionalismos político-sociais da época, quer da complexa personalidade do escritor.
            Durante o século XVII, o sermão não foi só o género literário predominante; foi também, e principalmente, a base da mais importante cerimónia social: a pregação. Através dela, a palavra do orador atingia todas as camadas sociais.
            O púlpito transformara-se, na época, no último baluarte da liberdade de expressão. Durante a dominação filipina, apenas a alguns sacerdotes era dada a faculdade de falar livremente contra, por exemplo, a opressão espanhola. Talvez daí, também, o hábito instituído de fazer do púlpito a tribuna ideal do comentário crítico à vida pública. No século XVII, o púlpito era um palco e o pregador um actor a tentar exibir do melhor modo possível a sua palavra, ajustando as modulações da sua voz aos efeitos visados junto do auditório. A pregação era um espectáculo, tanto quanto possível espectacular. Aliás, uma das tradicionais funções oratórias era o delectare (deleitar), para além do docere (ensinar) e do movere (mover ou influenciar o comportamento do ouvinte), e estava no espírito da Contrarreforma a captação e catequização das multidões não tanto pela razão, que se estava cada vez mais revelando perigosa para a religião de então, mas antes pela sensibilidade, pelo prazer, pelo puro gozo intelectual, e também pelo terror e piedade que moveriam (movere) os espectadores (o argumento do inferno era o mais poderoso equivalente imaginário dos autos-de-fé reais).
            Tudo isto se relaciona com uma época cultural que deslocou para múltiplos palcos – o teatro, a ópera, o púlpito, o auto-de-fé, as procissões, os enterros – o seu sadismo doentio aí o descarregando. A própria existência de um ritual social como o sermão, onde os ouvintes vão para serem, em princípio, admoestados e culpabilizados, e os pregadores para os fustigarem como intérpretes autorizados da Lei, é uma prática mórbida e fantasmagórica. Nos sermões do Padre António Vieira, espelha-se fielmente a época conturbada em que ele viveu, apegado a uma nação cada vez mais vulnerável, quer às arremetidas dos adversários, quer às próprias tensões internas.
            Os sermões mais conhecidos contam-se entre os que, de uma forma mais directa, se prendem a processos ou factos históricos específicos: o levantamento do sítio que os Holandeses haviam feito à Baía (1638) e a situação aflitiva que esta cidade de novo enfrentou passados dois anos determinam, respectivamente, o Sermão de Santo António e o Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as da Holanda (1640); para incitar todas as classes da nação a contribuírem para a defesa nacional, surge o Sermão de Santo António (1642), proferido na véspera da reunião das cortes; o sermão Sobre as Verdades e Falsas Riquezas vem datado de 1656, «na ocasião em que chegou a nova de se ter desvanecido a esperança das minas, que com grande empenho se tinham ido descobrir»; e lembremos ainda o Sermão dos Bons Anos, pregado em Lisboa na Capela Real, no ano de 1642, onde Vieira apregoa a sua confiança em Deus e na política do Rei (D. João IV).
            Do missionário catequista destacam-se os referentes à defesa dos Índios contra o egoísmo dos colonos, de que ficou célebre o Sermão de Santo António aos Peixes. Os sermões de mais alta inspiração religiosa, e os de maior fascínio artístico, desligados das contingências espácio-temporais, são os menos conhecidos dos leitores.
            É nesta actividade missionária que o fervor evangélico de Vieira se impregna de uma doce e comovente humildade, que a carta dirigida ao Padre Francisco de Morais (maio de 1653) deixa transparecer: «Sabei, amigo, que a melhor vida é esta. Ando vestido de um pano grosseiro cá da terra, mais pardo que preto; como farinha de pau; durmo pouco; trabalho de pela manhã à noite; gasto parte dela em me encomendar a Deus; não trato com mínima criatura; não saio fora senão a remédio de alguma alma; choro meus pecados; faço que outros chorem os seus; e o tempo que sobeja destas ocupações, levam-no os livros da madre Teresa e outros de semelhante leitura. Finalmente, ainda que com grandes imperfeições, nenhuma coisa faço que não seja com Deus, por Deus e para Deus, e para estar na bem-aventurança só me falta vê-lo, que seria maior gosto, mas não maior felicidade.»
            Neste género literário desenvolvido por Vieira convergem, pois, o idealista, o político, o missionário, o sebastianista, o patriota, enfim, a complexa e enigmática personalidade do escritor. Por isso, os seus sermões ultrapassam o valor religioso para se tornarem motor de meditação e estudo por parte de moralistas, sociólogos, linguistas e historiadores.

Vida do Padre António Vieira

            António Vieira foi uma personalidade multifacetada: o insigne orador, que mereceu o título de “O Crisóstomo Português”; o conselheiro real e diplomata a quem D. João IV gabava a “lábia”; o missionário imbuído de profunda religiosidade; o “Payassu” (“O Padre Grande”), como o alcunharam os Índios.
            António Vieira nasceu em Lisboa, em 6 de fevereiro de 1608, numa casa da Rua dos Cónegos, situada perto da Sé, e morreu na Baía em 18 de julho de 1697.
            A sua ascendência é bastante modesta. Filho primogénito de Cristóvão Vieira Ravasco, natural de Santarém (embora de origem alentejana), e de Maria de Azevedo, natural de Lisboa, era neto de uma mestiça pelo lado paterno. Tanto o avô como o pai tinham sido criados dos Condes de Unhão. O pai, escrivão das devassas dos pecados públicos num tribunal em Lisboa, servira na Armada antes do casamento. Em 1614 (tinha então Vieira seis anos), Ravasco, nomeado para o cargo de escrivão na Relação da Baía, partiu com a família para o Brasil.
            Vieira iniciou o curso de Humanidades, como aluno externo, no Colégio dos Jesuítas na Baía. Neste início de aprendizagem escolar, o jovem não se teria revelado um aluno excepcional. Só mais tarde é que os seus dotes, realmente notáveis, vieram à superfície quando, mercê de uma inspiração providencial, se teria produzido na sua mente o fenómeno que ficou conhecido como o célebre «estalo de Vieira».
            Um testemunho escrito por ele próprio revela-nos que o prenúncio da sua vocação religiosa se manifestou na tarde de 11 de março de 1623 ao escutar uma pregação do Padre Manuel do Couto, durante a qual este sacerdote deu uma vívida descrição dos castigos infernais que, porventura, aguardariam os pecadores renitentes.
            Na noite de 5 de maio desse mesmo ano, Vieira, que contava então 15 anos, tomou a resolução de se evadir da casa dos pais para o Colégio dos Jesuítas, onde foi acolhido com regozijo. Logo no dia seguinte iniciou o noviciado, árduo treino de dois anos pelo qual se pretendia que a individualidade de todo e qualquer aprendiz a sacerdote, sujeita a um conjunto de regras inexoráveis, se fosse esfumando numa estrita disciplina tendente a uma submissão total, tecida de humildade e modéstia.
            Animado de sincero e entusiasta espírito missionário aquando da sua transferência para a aldeia indígena do Espírito Santo, situada a sete léguas da Baía, logo se empenhou em aprender a fundo o tupi-guarani, ou seja, a língua geral do Brasil (instrumento então imprescindível para a comunicação dos catequistas e comerciantes com os Índios), bem como o quimbundo, língua utilizada com os escravos negros provenientes de Angola.
            Após o período estipulado para o noviciado, António Vieira fez os primeiros votos de obediência, pobreza e castidade, renunciando à efemeridade dos prazeres terrenos.
            Em setembro de 1826, graças aos seus predicados estilísticos que já então se iam afirmando, foi incumbido de redigir em latim a Carta Ânua que a Província costumava enviar ao Geral da Companhia. Nesse relatório anual, além de estarem patentes as qualidades de latinista de escol (fruto da sua formação cultural no colégio jesuítico), é também de salientar, pelo interesse histórico de que se reveste, a descrição do ataque holandês de que foi vítima a cidade da Baía, bem como da capitulação do opressor nos anos agitados de 1624 e 1625.
            Talvez no final de 1626, ou no início de 1627, começou a ensinar Retórica no Colégio de Marim, cidade aprazível situada junto ao mar, mais tarde denominada «Olinda a Bela», devido à sua situação e clima privilegiados. Aí permaneceu e exerceu o magistério durante três anos, findos os quais rogou aos seus superiores que o deixassem devotar-se à tarefa missionária, prescindindo por isso do estudo de Filosofia e Teologia. A Companhia, porém, tinha intenções bem diversas a seu respeito e logo lhe impôs o imediato regresso à Baía para ali encetar os estudos filosóficos. Ordenado padre em dezembro de 1634, Vieira continuou a sua obra de missionário, percorrendo, durante cinco anos, as aldeias baianas mais longínquas, onde procurava instilar os benefícios da civilização na mente do indígena ignaro.
            A par das actividades desenvolvidas para a conversão do gentio, que denunciavam uma perceção muito aguda dos problemas sociais, despontavam já em Vieira as virtudes oratórias reveladoras do pregador que iria seduzir os auditórios de Lisboa e Roma. A 16 de abril de 1638, sob o comando de Maurício de Nassau, os Holandeses, sequiosos de poder, tentaram novo ataque à cidade da Baía que opôs resistência e conseguiu expulsar o inimigo. Atento aos acontecimentos, Vieira interveio através da palavra, suporte de uma dialéctica ágil e sagaz. Nos dois sermões que então proferiu, vibrantes de entusiasmo pelo triunfo obtido, pressentia-se o tom profético que iria nortear toda a sua acção.
            A notícia da libertação de Portugal da tutela castelhana, após a revolução de 1 de dezembro de 1640, só chegou a Salvador em fevereiro do ano seguinte. Acompanhando D. Fernando de Mascarenhas, filho do vice-rei, Vieira foi enviado a Lisboa, tendo por incumbência apresentar saudações ao novo rei, D. João IV.
            Novos caminhos se ofereciam agora ao jesuíta. O monarca, confiado na lucidez deste homem e na sua extraordinária sensibilidade aos negócios de Estado, designou-o seu conselheiro particular e nomeou-o pregador régio. A 1 de janeiro de 1642 Vieira proferiu o Sermão dos Bons Anos, na Capela Real. As palavras exaltadas do apaixonado patriota incendiaram os ânimos e incutiram neles o desejo ardente da luta contra Castela. Aproveitando os fumos do Sebastianismo que ainda pairavam nos ares, Vieira projetaria em D. João IV os sonhos de grandeza de uma pátria à espera do rei predestinado. Contudo, para que a Restauração se consolidasse, era indispensável lançar mão dos recursos dos judeus portugueses expatriados e dos cristãos-novos radicados em Portugal. Vieira dirigiu, nesse sentido, diversas petições ao monarca, entre elas o regresso dos hebreus ao reino e o abrandamento dos processos implacáveis do Santo Ofício. Homem de rara visão, procurava o jesuíta com estas medidas atrair o capital necessário para a criação de companhias de comércio na Índia e no Brasil.
            Ia começar para Vieira uma intensa actividade diplomática. Os anos de 1646 a 1650 vão vê-lo atarefado em missões políticas em França, Holanda e Itália.
            Como embaixador, Vieira não alcançou o sucesso que outros êxitos anteriores tinham feito prever. De todas as tentativas saldou-se apenas a criação da Companhia de Comércio para o Brasil, em 1649. Se suscitara admiradores, havia também semeado muitos inimigos. Acusado de sugestionar o monarca num assunto de divisão das províncias, que competia à Sociedade, chegou a ser ameaçado de expulsão da Companhia de Jesus pelo próprio Geral, que não acatava o facto de um seu membro ter atentado contra as duras normas de disciplina jesuítica.
            Desiludido, partiu em novembro de 1652 para S. Luís de Maranhão, com o propósito de aí reatar as actividades missionárias.
            O Índio era, nessa época, a vítima apetecida dos colonos que o sujeitavam impiedosamente a um regime de escravidão semelhante ao do negro. Considerados escravos por direito de conquista, proporcionavam os naturais uma mão-de-obra excepcionalmente barata e irresistível à cobiça dos governadores. A defesa da liberdade do indígena empreendida pela Companhia de Jesus constituía um evidente obstáculo aos desígnios do branco ambicioso e cruel, empenhado apenas em avolumar os rendimentos com o metal reluzente à custa do sacrifício e, muitas vezes, da vida de vítimas indefesas, «peças indispensáveis de uma máquina produtora de riqueza.
            Com o arrebatamento que o caracterizava, Vieira lançou-se em arriscadas expedições. Tinha imposto a si próprio a tarefa de proteger os Ameríndios, catequizá-los, criar aldeias para os recolher, defendê-los das garras vorazes dos colonos brancos. Espírito desprendido dos bens materiais, prescindiu do ordenado que lhe era conferido na qualidade de pregador régio para com ele subsidiar a obra. A provisão de 17 de outubro de 1653, favorável à causa da liberdade dos Índios, suscitou o imediato desagrado entre os colonos que teimavam em não reconhecer aos jesuítas outros direitos que não fossem os de ordem espiritual.
            Na solidão do denso Amazonas, Vieira ia retomando, nos poucos momentos de lazer que a piedosa faina lhe concedia, a leitura de textos sagrados. Mergulhado no sonho utópico do Quinto Império, que aflorara nas páginas da sua História do Futuro, lançava-se na criação de outros escritos proféticos que iriam, mais tarde, causar-lhe amargos dissabores por parte do Santo Ofício.
            Em novembro de 1654, Vieira chegava a Portugal, após uma curta estada nos Açores, e regressava pouco depois ao Brasil.
            Com o falecimento de D. João IV em 1656, o jesuíta perdia não só o protetor de todos os momentos, cuja indulgência lhe evitara a expulsão da Companhia em 1649, como também o prestígio disfrutado nos meandros da corte. Em setembro de 1661, após uma revolta dos habitantes do Maranhão, foi forçado a recolher-se ao Pará e pouco depois preso e enviado para Portugal. Sem brilho, amargurado, aparentemente vencido, foi o único jesuíta a quem em, 1663, o rei negou autorização para voltar ao Brasil: «... excepto o Padre António Vieira, por não convir ao meu serviço que volte àquele Estado».
            António Vieira veio encontrar um país vacilante cujos destinos, ardilosamente enredados pelo astucioso Conde de Castelo Melhor, se anteviam pouco promissores. Só, desamparado e contrário à causa de Afonso VI, o jesuíta estava agora inteiramente à mercê do santo Ofício. Invocando as Esperanças de Portugal, escrito que Vieira dirigira ao Bispo do Japão e onde profetizava a ressurreição de D. João IV, obreiro do Quinto Império português no mundo, o Tribunal apressou-se a exercer sobre ele as inevitáveis represálias. As suas atitudes intransigentes face ao problema dos judeus foram também habilmente exploradas.
            Após o desterro no Porto e julgamentos humilhantes, a Inquisição encerrou-o num cárcere frio e húmido de Coimbra a 1 de outubro de 1665. É então que se entrega com todo o afinco à sua Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício.
            A sentença foi proferida em dezembro de 1667. Condenado à reclusão e sem a possibilidade de pregar, restava-lhe a companhia da Bíblia e do breviário. Tolhido o movimento mas liberto o espírito, Vieira aproveitou o silêncio do cativeiro para se devotar às suas congeminações quiméricas.
            No ano seguinte, D. Afonso VI foi deposto pelas Cortes. A nova regência, confiada ao irmão, trouxe como consequência a absolvição de Vieira. Descoroçoado, porém, perante a situação desfavorável criada na corte pelos seus inúmeros inimigos, e também pela ostensiva indiferença de D. Pedro II, partiu para Itália em 1669 em missão da Companhia. Em Roma aguardava-o o sucesso. Nomeado pregador e confessor da rainha Cristina da Suécia, lançava do púlpito poderosos torrenciais de eloquência às massas aturdidas de admiração. O problema dos Cristãos-Novos continuava a merecer-lhe o entusiástico empenho de sempre. Colaborou em Notícias Recônditas do Modo de Proceder da Inquisição, relato das injustiças e crueldades aplicadas às vítimas do Santo Ofício em Portugal, que causou grande escândalo em toda a Europa. Conseguiu então que o Papa Clemente X emitisse um Breve em outubro de 1674, pelo qual ficaram suspensos os processos inquisitoriais em Portugal. D. Pedro II, despeitado porém pela imposição papal, que prescindia deste modo da prévia consulta régia, e por outro lado receoso da reacção popular que fanaticamente mais uma vez se iria insurgir contra os Cristãos-Novos, apressou-se a pronunciar-se contra toda e qualquer reforma em benefício da «gente da nação».
            Também o seu plano para a fundação de uma Companhia Mercantil para a Índia (à semelhança da Companhia Geral do Comércio do Brasil), na qual a maior parte do capital seria proveniente de cristãos-novos, sob condição de insenção de fisco, esbarrou contra a tenaz oposição do reino. Foi então que os Judeus, desiludidos com a marcha dos acontecimentos, renunciaram ao «perdão geral» que antes tinham solicitado ao Papa, limitando-se por ora a um mero pedido de mudança de métodos do Santo Ofício português. Nessa altura escreveu Vieira o Desengano Católico sobre a Causa de Nação Hebreia.
            Durante a estadia de cerca de seis meses em Roma lutou ainda debalde pela revisão do seu processo. Em contrapartida, quando em 1675 regressou à pátria por ordem expressa de D. Pedro II, levava com ele um Breve do Pontífice que lhe dava a reconfortante garantia de jamais vir a ficar sob a alçada da voraz inquisição portuguesa.
            Foram de sofrimento os últimos anos que passou em Portugal, num ambiente mesquinho que nada mudara e em que triunfavam apenas os malabaristas da intriga, da calúnia e da intolerância. A pretexto de problemas de saúde, Vieira regressou para sempre ao Brasil em 1681.
            Na Quinta do Tanque, perto do Colégio da Baía, encontrou a paz e a serenidade que lhe permitiram dedicar-se à paciente tarefa de reconstituição dos seus Sermões, já antes iniciada em Lisboa com o aparecimento em 1679 do primeiro volume. Nomeado aos 80 anos Visitador das missões pelo Geral da Companhia, foi nessa altura residir para o Colégio da Baía. Após o mandato, regressou em 1691 à Quinta do Tanque, onde decorreram os derradeiros anos da sua vida, entre os manuscritos dos Sermões que ia enviando para o prelo, e a elaboração da Clavis Prophetarum que não chegou a concluir.
            A correspondência com os amigos que deixara em Portugal (na qual figura uma circular de despedida enviada em 1694) proporcionava-lhe ainda a ilusão de contacto com os problemas da sua pátria, à qual dedicou sempre um amor inalterável feito de ternura, desalento, desesperança e revolta.
            Entretanto, o lutador que havia em si continuava a imiscuir-se nos mais variados problemas locais. Mais uma vez teve ensejo de intervir na eterna questão de direito à liberdade que reivindicava para os Índios, quando os paulistas os reclamavam para a exploração das minas de ouro.
            De resto, a Aventura que constituiu toda a vida do Padre António Vieira reservara-lhe ainda o duro vexame de acusação do assassinato do Alcaide-mor (ocorrido em 1683 na Baía), de conivência com o seu irmão Bernardo Vieira Ravasco, então Secretário de Estado. O processo só terminou passados quatro anos, com a absolvição de ambos os acusados.
            Não obstante a extrema idade e a invalidez que lhe sobreveio após uma queda, guardou até ao termo da sua vida a frescura de espírito, a rara lucidez, o domínio, enfim, da palavra e do pensamento que sempre o caracterizaram.
            Morreu com a idade avançada de 89 anos em julho de 1697 no Colégio da Baía, e com ele uma arte inimitável patenteada sobretudo nos seus célebres Sermões.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

"Amo-te", de Bruna Tatiana, a pronominalização e o verho «haver»


(2018)

     Assim que atingimos o minuto 1:19, a cantora grita urbi et orbi "Darei-te o devido valor".

     Pelo minuto 1:41 "houveram brigas e intrigas", felizmente superadas.

     O que não é possível superar são os pontapés dados na gramática portuguesa pelo autor deste brilhante pedaço de poesia, apaixonadamente repetidos pela intérprete da peça.

     Um pequeno contributo: pronome pessoal em adjacência verbal.

Análise de "José", de Carlos Drummond de Andrade

            “José” é um poema da autoria de Carlos Drummond de Andrade, escritor nascido a 31 de outubro de 1902 e falecido a 17 de agosto de 1987, um dos maiores vultos da segunda geração de modernistas brasileiros, considerado por muitos o maior poeta brasileiro do século XX.
            A composição em questão foi publicada pela primeira vez em 1942, integrada na obra Poesias. Nela, o autor aborda a temática da solidão e do abandono do indivíduo na cidade grande, bem como a desesperança e a sensação de estar perdido na vida, sem saber que rumo seguir.
            O texto abre com uma interrogação que se repete, anaforicamente, ao longo do mesmo, assumindo a forma de uma espécie de refrão: “E agora, José?”. Ou seja, agora que os bons momentos terminaram (“a festa acabou”, “a luz apagou”, “o povo sumiu”), o que resta? O que há a fazer?
            Por outro lado, a interrogação constitui o mote e o motor do poema: a procura de um caminho, de um sentido para a vida. José, tal como João ou António, é um nome muito comum na língua portuguesa, pelo que o seu uso neste texto pode ser entendido como um sujeito coletivo, uma metonímia. A sua substituição pelo pronome “você” significa que o sujeito poético se está a dirigir diretamente ao(s) leitor(es), comos e este(s) fosse(m) o(s) interlocutor(es).
            Esse “você” não tem nome, mas “faz versos”, “ama, protesta” e “zomba dos outros”. A sua característica de poeta pode ser interpretada como a sua identificação com o próprio Drummond de Andrade.
            A segunda estrofe reforça a ideia de vazio, de ausência e carência de tudo: está sem “mulher”, “discurso” e “carinho”. Além disso, já não pode “beber”, “fumar” e “cuspir” (atente-se na sucessão de anáforas); “a noite esfriou”, “o dia não veio”, tal como não veio “o bonde”, “o riso” e a “utopia”. Isto significa que todas as formas de contornar o vazio, a ausência, o desespero e a realidade não chegaram, nem mesmo o sonho (“a utopia”), nem a esperança de um recomeço, pois “tudo acabou”, “fugiu” e “mofou” (nova sucessão de anáforas), como se o tempo deteriorasse tudo aquilo que é bom.
            Na terceira estrofe, prosseguem as anáforas e as enumerações, nomeadamente das suas características imateriais (“sua doce palavra”, “seu instante de febre”), “sua gula e jejum”, “sua incoerência”, “seu tédio”), bem como daquilo que é material e palpável (“sua biblioteca”, “sua lavra de ouro”, “seu terno de vidro”). Ou seja, tudo desapareceu e nada restou, exceto a interrogação: “E agora, José?”.
            A quarta estrofe apresenta-nos um sujeito poético que não encontra saída/solução para a sua situação: “Com a chave na mão / quer abrir a porta, / não existe porta”. A própria morte enquanto derradeira solução também não é possível – “quer morrer no mar, / mas o mar secou – ideia que é reforçada mais adiante (José é obrigado a viver) –, tal como a possibilidade de um regresso às origens: “quer ir para Minas, / Minas não há mais”. Atente-se no facto de o poeta ser natural de Minas Gerais (Itabira), o que pode indiciar nova possível identificação entre Drummond de Andrade e José. Em suma, o passado também não constitui uma solução para o drama vivido pelo sujeito poético.
            A quinta estrofe contém uma anáfora constituída por várias orações subordinadas adverbiais condicionais, com as formas verbais no pretérito imperfeito do conjuntivo. Todos estes recursos remetem para um conjunto de possíveis escapatórias ou distrações que nunca se concretizam, são interrompidas, ficam em suspenso, ideia suscitada pelo recurso às reticências. O verso 7 desta estrofe destaca novamente a ideia de que a morte não é solução: “Mas você não morre”, pois “você é duro José!”. Estes dois versos sugerem que o sujeito lírico possui uma grande força, uma resiliência e capacidade de sobrevivência que constituem traços da sua personalidade, para quem desistir da vida não é uma opção.
            A última estrofe do texto salienta o seu isolamento total (“Sozinho no escuro / qual bicho-do-mato”), “sem teogonia” (não há Deus, não existe fé nem auxílio divino), “sem parede nua / para se encostar” (sem o apoio de nada nem de ninguém), “sem cavalo preto / que fuja a galope” (sem nenhum meio de fugir da situação em que se encontra).
            Ainda assim, “você marcha, José!”, mas para onde? Ou seja, o sujeito poético segue em frente, mesmo sem saber em que direção ou com que objetivo. O verbo “marchar” remete para um movimento repetitivo, quase automático. José é um homem preso à sua rotina, às suas obrigações, afogados em questões existenciais que o angustiam; faz parte da máquina, das engrenagens do sistema, por isso tem de manter o seu quotidiano.
            Não obstante, perante uma mundividência pessimista, de vazio existencial, os versos finais do poema parecem sugerir um raio de esperança: José não sabe para onde vai, qual é o seu destino ou lugar no mundo, mas “marcha”, prossegue, sobrevive, resiste.


quarta-feira, 3 de julho de 2019

A falácia da dita Escola Moderna

     Depois da publicação dos famosos (ou infames?) 54 e 55, multiplicam-se as notícias e reportagens sobre escolas inspiradas pelo Movimento da Escola Moderna (tão moderna que as suas raízes já têm mais de cinco décadas).
     A mais recente reportagem sobre a matéria visava a Escola Básica da Várzea de Sintra. Nela, encontramos, logo a abrir, uma síntese que nos fala em escola sem turmas, salas de aula, toques de campainha, etc., etc., etc.
     Depois vamos procurar dados sobre o desempenho dos alunos desta escola, para podermos ter um termo comparativo com a dita escola do século XIX e encontramos estes referentes às provas de aferição:

     Nem tudo o que é velho será, necessariamente, bom nem tudo o que pretensamente é novo corresponderá ao que se apregoa.



terça-feira, 2 de julho de 2019

"Uma fábrica de desigualdades"



27 de Junho de 2019, 2:05

“Ainda bem que já estou de férias!”
A frase não me surpreendeu. Apesar de estudioso e bom leitor, o meu filho é um rapaz saudável e, como todos os outros, aspira pelo tempo de piscina, praia, passeio, televisão e outros divertimentos. Não dei andamento à conversa. Para minha surpresa, o miúdo resolveu no entanto desabafar enquanto punha a mesa e eu temperava a salada.
“Até que enfim estou livre daquelas ‘oficinas’ em que levámos o ano inteiro a fazer projectos e nunca saímos do mesmo sítio... Uns trabalhavam e outros ficavam a ver. O costume... Nas apresentações ninguém se preocupava se estava bem feito ou não, se tinha sido copiado da Internet ou escrito por nós... Além disso, eu pensava que os projectos eram para fazermos coisas úteis, giras... O nome engana... ‘oficinas’... São uma seca e das grandes!”
Resolvi dar-lhe alguma atenção, mas silenciosa. Sem que eu lhe perguntasse coisa alguma, do alto dos seus onze anos, não teve papas na língua: “Os professores andam aborrecidos. Toda a gente vê. Não os deixam dar as aulas como querem e não têm tempo para dar a matéria toda. Fica sempre a meio, agora com a mania das disciplinas semestrais… Eles tentam disfarçar, mas nós bem vemos o que está a acontecer. Dizem que para o ano que vem as aulas vão ser todas assim. Só projectos e trabalhos de grupo. Que raiva! Estou mesmo a ver no que vai dar... Mas nem quero pensar muito nisso. Já estou de férias. Quem me dera que as aulas normais voltassem e acabasse esta porcaria que inventaram para aí.”
Perguntei-lhe se era o único a pensar assim. Poderia ter chamado a irmã, avançada um ano nos estudos, mas quis saber o que ele me responderia. “Não sou o único a dizer isto. Os meus colegas estão fartos como eu e só aqueles que não se importam com nada é que andaram contentes porque não precisaram de fazer nenhum. Trabalham uns e eles assobiam, portam-se mal nas aulas e chateiam toda a gente, porque sabem que vão passar na mesma... Ninguém chumba no meu ano nesta escola, mesmo que faça porcaria e não aprenda. A directora diz que chumbar dá mau nome à escola... Que temos de acabar com o insucesso…”
A interrogação final veio de chofre: “Achas justo? É justo dar o mesmo prémio àqueles que trabalham e àqueles que não se ralam e não querem trabalhar?”
A opinião do catraio não me apanhou desprevenido, confesso. Já ao longo do ano lectivo notara um certo desalento no miúdo quando se aproximava o dia das “aulas diferentes”. Ia como cão por corda para a escola. A irmã, tanto quanto me era dado ver e ouvir, tinha o mesmo sentimento. Em conversas com outros pais e encarregados de educação, das suas turmas e de turmas diferentes, fui-me apercebendo de que era um sentimento alargado. Também conhecia a opinião de um grupo alargado de professores daquela escola. Ano após ano, várias dezenas tinham saído da instituição, mesmo tendo-lhe dado uma, duas ou até três décadas de serviço e dedicação. Muitos dos que permanecem no “degredo” desejam, dizem, seguir o mesmo caminho, perante as atitudes da tutela e da gerência. Pura e simplesmente, não aguentam – segundo afirmam – as pressões diárias de que são alvo para porem em prática uma “doutrina pedagógica” com traços totalitários.
Não foi inesperado o desabafo do miúdo. Mas deixou-me porém preocupado, sabendo eu o que é possível fazer e desfazer com os cinquenta por cento de autonomia que o governo quer “oferecer” às escolas, em troca da aplicação cega e militante da “flexibilidade curricular”. Também eu sou professor, embora tenha a graça de leccionar num Agrupamento de Escolas onde ainda vai reinando o equilíbrio, o bom senso e a sensibilidade humana. Como docente, consigo todavia ser camaleão, se for necessário. Como pai, a minha grave inquietação vai crescendo.
Com as mãos livres e acalentadas pela 24 de Julho, há dirigentes escolares que estão a pôr em prática uma autêntica anarquia educativa, travestida contudo pelas melhores intenções, que não passam de vassouras para esconder os problemas que existem na nossa escola pública. E não lhes faltam coadjuvantes ou cúmplices: alguns docentes que esperam receber benesses (no horário, na distribuição de serviço ou quiçá em viagens ao estrangeiro, pagas pela União Europeia) e alguns pais que não enxergam um palmo à frente do nariz. Bom seria que alguém verificasse se os dirigentes escolares mais ferrenhos na aplicação da nova via “pedagógica” não serão muito próximos do partido do governo (ou mesmo seus militantes); há quem diga que sim. Não é por acaso que, para estranheza de muitos e estupefacção de alguns, dois dos secretários de Estado do Ministério da Educação marcaram presença conjunta (!) na inauguração (!) da remodelação parcial (!) de um dos blocos de salas de aula de uma das escolas mais fundamentalistas na aplicação da “flexibilidade”… Não há almoços grátis, como se diz por aí.
Vítimas de teorias e práticas pedagógicas que já eram velhas há quarenta anos, porque lhes dão jeito para camuflar o insucesso que realmente existe e continuará a existir por este caminho, há escolas (e cada vez são mais) que vivem um autêntico PREC educativo, com traços de maldade e insanidade, cujas consequências plenas são ainda difíceis de alcançar. Uma delas é todavia evidente. Os alunos com bom respaldo familiar conseguirão sobreviver a tudo isto, com grande dispêndio de tempo e de dinheiro, que não há outro modo de compensar o que lhes é tirado nessas escolas públicas. Alguns, filhos de agregados mais abonados, partirão para bons colégios privados – onde a conversa é outra… Aqueles a quem falta o dinheiro ou a família ou tudo isto junto serão vítimas a médio prazo de uma escola que, assim, se demite de lutar contra as desigualdades, em benefício de uma “inclusão” que é, na realidade, exclusão social ao longo da vida.
Os colegas dos meus filhos que não fazem testes de avaliação, que se alegram por passar de ano sem trabalhar e sem melhorar o seu comportamento, que deixam de ter aulas baseadas no conhecimento sólido dos seus professores, que não são treinados para o esforço que o estudo implica e implicará sempre, que são vítimas da “flexibilidade” e da “inclusão”, poderão agora exultar com as suas famílias, alheados do que se passa, do que motiva esta “nova pedagogia” e dos seus resultados futuros. Estou certo disso, porque os vejo, os ouço e converso com alguns dos seus pais. Os efeitos futuros não serão, todavia, algo que seja bom de ver. Sem se terem habituado à exigência, ao trabalho, à atenção, à concentração e ao estudo – enganados por sereias maviosas e sorridentes que, desse modo, dizem “levar habilmente a escola rumo ao sucesso” – ver-se-ão a braços com uma violenta e frustrante desigualdade de oportunidades. E tal não é digno de um país que afirma defender a dignidade de todos os seres humanos.
Ruy Ventura
Escritor e investigador


sábado, 29 de junho de 2019

Regência de "assistir"

1. Com o sentido de "ver, presenciar", «assistir» é um verbo transitivo indireto. pelo que rege a preposição a:
     . No sábado, assisti ao programa de Ricardo Araújo Pereira.

2. Quando significa "prestar auxílio médio", "dar assistência", ou "servir de advogado ou procurador de alguém", seleciona um complemento direto, pelo que é usado sem preposição:
     . O médico assistiu os doentes.
     . O advogado que assiste Sócrates no processo veio de Marte.

3. Quando significa "caber a alguém, ser seu por direito, por justiça", rege a preposição a ou liga-se ao complemento indireto:
     . Votar é um direito que assiste a todos.
     . Meu amigo, votar é um direito que lhe assiste.

Mordillo


Guillermo Gordillo

(04/08/1932 - 29/06/2019)

quarta-feira, 26 de junho de 2019

"Presságio"

            O poema “Presságio” foi escrito por Fernando Pessoa em 24 de abril de 1928, já na fase final da sua vida (13 de junho de 1888 – 30 de novembro de 1935).
            O tema da composição poética é o amor, mais concretamente a dificuldade em o revelar à pessoa amada (em última análise a impossibilidade de viver um amor correspondido), abordado em cinco quadras de redondilha maior (bem ao gosto popular), com rima cruzada, segundo o esquema rimático ABAB.
            Na primeira quadra, o sujeito poético apresenta o mote do texto, isto é, o tema que vai ser desenvolvido, bem como o seu posicionamento face ao mesmo: quando o sentimento amoroso se revela, quando surge, não sabe como se revelar, como se confessar (note-se a antítese construída em torno da repetição de formas do verbo “revelar” nos dois versos iniciais: “revela” e “revelar”). Recorrendo à personificação, ele representa o amor como uma entidade autónoma, que age independentemente da vontade do sujeito. Assim, sem conseguir controlar aquilo que sente, apenas pode olhar a mulher amada, mas não consegue conversar com ela, não sabe o que dizer.
            Na segunda estrofe, o sujeito poético reforça a incapacidade de expressar devidamente o seu amor, parecendo acreditar que o sentimento não pode ser traduzido por palavras, pelo menos por ele: “Quem quer dizer o que sente / Não sabe o que há de dizer.”. O «eu» é um inadequado relativamente ao «outro» e tem dificuldade em comunicar com ele, a qual resulta na sensação de que está sempre fazendo algo de errado.
            A observação e a opinião dos outros restringem os seus sentimentos. O sujeito acredita que, se falar sobre eles, vai parecer que mente, mas, se os calar, vai ser julgado por deixar (a amada? O amor?) cair no esquecimento. Assim sendo, sente que não pode agir de nenhum modo.
            Na terceira estrofe, o sujeito lírico, triste e desalentado, lamenta-se e, socorrendo-se do pretérito imperfeito do conjuntivo (modo verbal do desejo) e de uma oração subordinada adverbial condicional, manifesta um desejo: que ela pudesse compreender o amor que sente através do olhar. Atente-se na sinestesia dos versos 9 e 10 (“Ah, mas se ela adivinhasse, / Se pudesse ouvir o olhar”), que exprime a crença do sujeito, segundo a qual o modo como olha a amada denuncia mais o seu sentimento do que qualquer declaração. O «eu» suspira (“Ah”), imaginando como seria se ela percebesse, sem que ele tivesse de dizer por palavras. Porém, a presença do conjuntivo (“adivinhasse”, “pudesse”) e da oração condicional nega desde logo a possibilidade de se concretizar essa vontade.
            Na estrofe seguinte, defende que “quem sente muito, cala”, ou seja, aqueles que estão realmente apaixonados calam o seu sentimento. Para ele, quem tenta expressar o seu amor “fica sem alma nem fala”, “fica só, inteiramente”. Falar do que sente irá sempre levá-lo ao vazio e à solidão absoluta. Assim, é como se assumir um amor fosse, automaticamente, uma sentença de morte para o sentimento, que passaria a estar condenado.
            A última quadra é passível de diferentes leituras:
a) Se o sujeito poético pudesse explicar à mulher a dificuldade que tem em exprimir o seu amor, não mais seria necessário fazê-lo, porque já se estava a declarar, mesmo que indiretamente. Porém, a realidade é que não consegue verbalizar o sentimento nem discutir essa sua inabilidade. Assim sendo, o relacionamento está condenado a não passar do plano platónico.
b) O texto é, na verdade, uma declaração de amor. Neste caso, o «eu» usa a poesia como forma de falar, de mostrar o que sente; o poema diz/fala aquilo que ele não consegue. Porém, para que esta forma de comunicação se concretizasse, seria necessário que ela lesse o poema e soubesse que lhe era dirigido. Como não o lê não sabe, o relacionamento também não se concretiza deste modo.
c) O verdadeiro amor é incomunicável, não pode ser expresso através de palavras, caso contrário desaparece. O sujeito poético conclui que só conseguiria declarar o seu amor, caso o sentimento não existisse mais.
            A conjunção coordenativa adversativa “mas” estabelece uma oposição entre aquilo que tinha sido dito antes e a quadra que encerra o poema. Embora lamente não poder expressar o seu sentimento, está conformado, pois sabe que não pode ser revelado, sob pena de desaparecer.
            Ao longo de todo o poema, transparece a atitude derrotista do sujeito poético face ao amor.



https://www.culturagenial.com/poema-pressagio-de-fernando-pessoa/

Análise de "O Grito", de Edvard Munch

 O Grito é considerado a obra-prima de Edvard Munch, pintor norueguês nascido em Loten, em 12 de dezembro de 1863, e aí falecido em 23 de janeiro de 1944, um dos precursores do Impressionismo e do Expressionismo. Pintado pela primeira vez em 1893 a óleo e pastel sobre cartão, o quadro conheceu quatro versões, três das quais dispersas por museus e outra na posse de um empresário norte-americano, Leon Black, que a comprou por 119,9 milhões de dólares.          
            A pintura situa-nos num cenário natural, constituído por céu, água e arvoredo, representado de forma impressionista, no qual são visíveis três figuras: uma em primeiro plano e as outras duas ao fundo, todas situadas numa ponte, que é o único elemento do cenário caracterizado por linhas direitas, pois todos os restantes elementos estão representados com linhas ondulantes e curvas, criando um efeito de redemoinho, de abismo que tudo engole, nomeadamente as duas embarcações que parecem à deriva. Este movimento, conjugado com as cores, é gerador de tensão e sugere um grito da própria natureza.
            À semelhança do cenário, a figura humana em primeiro plano caracteriza-se por linhas curvas: trata-se de um corpo contorcido, em sofrimento, estado sugerido pelo seu grito e pelas mãos que apertam a cabeça, em atitude de desespero, contrastando com as outras duas figuras, direitas e de costas, que se afastam, acentuando a ideia de solidão e de profundo desespero. O rosto da primeira pessoa é fantasmagórico, os seus olhos estão desmesuradamente abertos, mas, ao mesmo tempo, as cavidades oculares parecem estar vazias, evocando uma caveira, o que torna este rosto uma prefiguração da morte. Em suma, este ser grita em uníssono com a natureza ou porque não quer ouvir o grito dela, dado que as mãos na cabeça podem indiciar o seu desejo ou recusa de escutar. De facto, cada vez mais surgem interpretações, baseadas nas palavras do próprio Munch, segundo as quais a figura não grita, antes cobre os ouvidos enquanto ouve os gritos da natureza. Mais: segundo Giulia Bartrum, curadora de uma exposição dedicada ao artista no Museu Britânico, a pintura é a reprodução de um pôr do Sol, de um céu vermelho-sangue que gerou nele um efeito de muita ansiedade. Assim sendo, a figura e as mãos nos ouvidos está praticamente em êxtase, a tentar bloquear o grito da natureza. No fundo, o quadro seria uma metáfora para uma emoção muito intensa e muito pessoal.
            Igualmente importantes são os efeitos cromáticos. De facto, as cores do quadro são fortes e vivas, mas simultaneamente soturnas: o amarelo e o vermelho remetem para as nuvens do pôr do Sol, divisando-se ainda réstias de azul; o azul-escuro identifica a água (o mar talvez, ou um lago); enquanto os tons verdes e castanhos assinalam as árvores e a terra. Por outro lado, as cores que caracterizam o céu parecem contaminar todos os outros elementos que ganham tonalidades sangrentas. O elemento cromático assume, assim, um significado simbólico, não sendo somente um reflexo da realidade, até porque esta pintura não pretende constituir a sua representação objetiva.
            Várias curiosidades rodeiam também este quadro. Por exemplo, ele inspirou a saga de filmes Scream, protagonizada pela atriz Neve Campbell, na qual os «serial killers» usam máscaras baseadas na expressão da figura principal da pintura. Além disso, apareceu duas vezes na série Os Simpsons, a primeira na aberta do episódio Treehouse of Horror IV (exibido nos EUA em 1993) e a segunda no episódio See Homer Run, de 2005, no qual foi satirizado o roubo de duas versões da pintura.
            Em suma, segundo as interpretações mais antigas, O Grito constitui a representação de um determinado estado psíquico, expressando um intenso sentimento de desespero e angústia. Neste sentido, a figura em primeiro plano simboliza o ser humano na sua íntima e intrínseca solidão. Pelo contrário, tendo em conta interpretações mais recentes, o quadro representa o êxtase de uma figura perante o «grito da natureza».


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