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quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Análise da Cena I do Ato I de Frei Luís de Sousa

Monólogo lírico-dramático de D. Madalena

Assunto: monólogo de D. Madalena, em que esta estabelece um paralelo/uma comparação entre a sua vida (desditosa) e a relação amorosa infeliz e trágica de Inês de Castro e D. Pedro.


Estrutura do monólogo

. 1.ª parte (do início da fala até “… pode-se morrer.”): D. Madalena abandona a leitura d’Os Lusíadas e mostra-se enleada na ideia de felicidade que bebeu no texto.

. 2.ª parte (de “Mas eu…” até ao final do monólogo): D. Madalena reflete sobre a sua situação e revela o seu estado de espírito, marcado pela angústia, pelo medo e “contínuos terrores”. O que marca a divisão entre os dois momentos da cena é a conjunção coordenativa adversativa «mas», que possui o valor de oposição, contraste.


Estado de espírito de D. Madalena:
. melancólica (“um livro aberto no regaço, e as mãos cruzadas sobre ele”; “repetindo maquinalmente e devagar”), solitária (“só”), infeliz;
. sonhadora: anseia experimentar a felicidade, nem que seja por pouco tempo;
. sofredora e infeliz ao constatar a ausência de felicidade na sua vida, devido ao medo e aos constantes terrores que a atormentam;
. insegura, preocupada e angustiada, sente-se destinada à morte;
. frágil, sensível e sentimental, bem ao gosto romântico;
. emocionalmente instável
. o seu nome evoca a figura bíblica da “pecadora” (prostituta) que depois foi Santa Maria Madalena. As duas figuras – a imaginada e a real – ficam ligadas, sobrepostas, e o caminho ascensional da personagem bíblica, do pecado à redenção, através da penitência, traça a linha a percorrer por D. Madalena: pecado → remorso → penitência → ascese → redenção.
            Além destes traços psicológicos, trata-se de uma mulher culta e letrada (está a ler, neste caso Os Lusíadas), pertencente à aristocracia.


Causa do estado de espírito

            Os sentimentos e emoções evidenciados por D. Madalena ficam a dever-se (mesmo que só o confirmemos num momento posterior da peça) ao receio de que o seu primeiro marido ainda esteja vivo e regresso, cobrindo-se e à família de vergonha. A leitura do episódio de Inês de Castro insinua-lhe o drama de um segundo casamento, realizado sob a ameaça velada de que D. João não tivesse morrido.


Relação entre D. Madalena e Inês de Castro

. Madalena e Inês são duas personagens para quem a felicidade não foi total, visto esta ter, em ambos os casos, sofrido a intervenção do destino. A alegria e a felicidade de Inês de Castro foram breves, pois terminaram com a sua morte. A interrupção da leitura feita por D. Madalena, precisamente nos dois versos que sugerem a efemeridade desse sentimento, remete para uma relação de semelhança entre os dois casos:
- D. Madalena estabelece o confronto entre a situação de Inês, feliz “naquele ingano de alma ledo e cego / que a Fortuna não deixa durar muito”, felicidade essa que, em seu entender, não se mede pela duração, mas pela intensidade: “Viveu-se, pode-se morrer”, e a sua situação em busca da felicidade própria, pelos contínuos terrores, ou seja, pelos remorsos da consciência moral, recalcada e abafada, mas sempre viva, atuante e martirizante;
- as imagens das duas figuras femininas de pecadores por amor-paixão, embora diferentes, sobrepõem-se e ajustam-se admiravelmente;
- Inês de Castro é a heroína trágica no amor, na beleza, na desventura e na morte;
- D. Madalena é igualmente trágica no amor, na beleza, na desventura, no desfecho infeliz e trágico que a destrói: ambas são perseguidas pelo destino, inexorável e cruel, que as irmanou na paixão impossível; ambas são infelizes no meio da ventura, sendo que há uma diferença assinalável: Inês ainda teve um “ingano de alma”, isto é, um momento fugaz de felicidade, ao passo que Madalena, mais consciente talvez, nem esse breve “ingano” pôde ter.
. Porém, a reflexão posterior de D. Madalena permite deduzir um certo contraste: esta deseja a felicidade, ainda que seja de curta duração, após o que morreria feliz; constata que a sua vida tem sido assolada pela desgraça, o que é visível no recurso à conjunção coordenativa adversativa “mas” e à interjeição “Oh”.
. Esta analogia entre a vida de Inês e de Madalena constitui um presságio trágico, se tivermos em conta que os amores daquela e de D. Pedro terminaram tragicamente com a morte dela.


Traços românticos de D. Madalena:
. a sobreposição dos sentimentos à razão;
. o completo domínio da personagem pelas suas emoções;
. o sentimento de culpa e de medo que a impedem de viver plenamente a sua felicidade;
. o conflito interior que a sua fala deixa transparecer;
. a angústia, o medo e os terrores que marcam o seu quotidiano;
. a grande paixão por Manuel de Sousa;
. a sensibilidade a cultura que demonstra;
. o uso de uma linguagem adequada ao real, ao estado de espírito das personagens: o discurso de D. Madalena está repleto de hesitações, repetições, frases curtas, suspensas, elípticas, exclamações e reticências, o que reflete com precisão os estados de melancolia e introspeção da personagem, os quais são igualmente elementos românticos;
. a leitura como refúgio.


Recursos expressivos

. Pontuação (reticências, exclamações, interrogações): revela o estado emocional de D. Madalena, refletindo as suas hesitações e angústias.
. A enumeração, a gradação crescente, realçada pela anteposição dos adjetivos “contínuos” e “imensa”, as interrupções, as pausas e as repetições (“… o estado em que eu vivo… este medo, estes contínuos terrores, que ainda me não deixaram gozar um só momento de toda a imensa felicidade…”) contribuem para o adensar do estado de espírito da personagem, marcado pela melancolia, angústia, medo, etc.
. A construção anafórica [“que o não saiba ele ao menos, que não suspeite (…)”; “que amor, que felicidade… que desgraça (…)”], a repetição do determinante demonstrativo “este”/”estes” (“este medo, estes contínuos terrores”) traduzem igualmente o estado de espírito da personagem.
. A antítese “que felicidade… que desgraça…” marca o contraste entre o estado de felicidade que seria de esperar que vivesse e os contínuos terrores que a assolam.
. Na cena, predominam os nomes abstratos, que traduzem os sentimentos que marcam a personagem.
. A cena contém um caráter circular, dada a semelhança que existe entre o seu início, onde encontramos Madalena em meditação, o que remete para uma total prostração da personagem, e o seu final, em que volta a descair em profunda meditação. Estes dois momentos foram interrompidos pela reflexão, pela lamentação sobre a sua própria existência.


Elementos trágicos da cena

. Hybris: está presente indiretamente, já que o sofrimento (pathos) de D. Madalena advém da ousadia de ter casado segunda vez sem ter encontrado o corpo do primeiro marido.

. Pathos: é o causador do seu estado de melancolia e de medo, o qual faz adivinhar a presença de um destino firme e inflexível, ao qual a personagem não se poderá furtar, constituindo assim indícios de uma situação que se irá verificar no futuro.

. Presságio: a leitura do episódio de Inês de Castro.

. Agon de D. Madalena (de consciência): o monólogo-meditação mostra a profundidade da luta que lhe vai na consciência, carregada de culpa, e aponta para a dupla personalidade de Madalena:
- personalidade aparente, feliz, ligada a Manuel de Sousa pelo amor-paixão;
- personalidade real ou oculta, infeliz ou “desgraçada”, ligada a D. João de Portugal, pela memória do passado, pelo remorso do presente.
Esta consciência atormentada de D. Madalena, em que o remorso a não deixa repousar um só momento, remete para o seu conflito com o primeiro esposo.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Informação inicial de Frei Luís de Sousa

Informação inicial da obra:
. classificação da obra: drama;
. local e data da representação: Teatro da Quinta do Pinheiro, em 4 de julho de 1843;
. espaço geográfico: Almada;
. teor da obra: trágico.

            O texto desta primeira representação deu origem à primeira edição da obra, que foi publicada em 1944, e é conhecida por “Edição da Quinta do Pinheiro”.
            Nesse ano, foi publicada nova edição da peça, incluída numa edição das obras dramáticas de Almeida Garrett.

Didascália inicial do ato I de Frei Luís de Sousa


Funcionalidade da didascália: conjunto de informações fornecidas pelo dramaturgo (sobre as personagens, os efeitos de luz e som, o guarda-roupa, etc.) que complementam o texto principal.

Localização temporal da ação da peça:
. princípios do século XVII (ficaremos a saber, mais adiante, através das palavras de D. Madalena, que a ação se desenrola em 1599);
. fim da tarde (28 de julho de 1599, sexta-feira).

Localização espacial – espaço físico:
. Almada:
. sala de um edifício, de cujas janelas se vê o rio Tejo (a margem esquerda) e “toda Lisboa”.

Espaço social:
. aristocracia/nobreza abastada: sala (de um palacete ou solar) ampla e decorada de forma moderna, requintada, luxuosa e rica (um quadro, mobília elegante e moderna, porcelanas, etc.);
. família culta e instruída (a presença de livros)
. e religiosa (retrato de cariz religioso).

Espaço cénico:

Atmosfera sugerida:
. felicidade e harmonia:
- a luminosidade e a abertura ao exterior (as duas grandes janelas rasgadas);
- as sugestões cromáticas (o verde, o branco, o azul do rio, as flores, etc.);
- a liberdade de movimentação das personagens (as duas portas);
. esta sensação de felicidade poderá ser aparente e pouco duradoura, se atentarmos na incompletude das “obras de tapeçaria meias feitas”.

Recursos expressivos e sua expressividade:
- enumeração: “Porcelanas, xarões, sedas, flores”, etc.;
- adjetivação expressiva: “Câmara antiga, ornada com todo o luxo e caprichosa elegância portuguesa”;
- a enumeração e a adjetivação, por um lado, contribuem para que o leitor visualize o espaço cénico em pormenor e, por outro, possibilitam a reprodução do cenário com fidelidade (por exemplo, para quem quiser encenar a peça, para os atores que a representam…). 

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Uma cultura nova numa sociedade nova


            O triunfo do liberalismo foi acompanhado por mutações decisivas no panorama cultural português: novas ideias, novos gostos, novos nomes. A mudança foi intensa e rápida nas cidades; as serras continuaram analfabetas, mas agitadas agora pelo caciquismo, pela estrada e pelo comboio, pelo regresso de algum emigrante bem-sucedido que restaura a igreja e constrói um chalé.
            Os árcades pré-românticos – Cruz e Silva, Filinto Elísio, Nicolau Tolentino, Tomás Gonzaga, Bocage – morreram todos antes de 1820. Morreram a tempo, porque os seus versos refinados, pretensiosos e difíceis não teriam sido apreciados depois da revolução como o foram antes dela. Era uma literatura de elites a que não falta valor: observação humorista dos ridículos de uma burguesia que despontava, confissão dos primeiros anelos românticos velados ainda pelo pudor da linguagem muito elaborada, carregada de termos e de alusões mitológicas que só os iniciados podiam perceber. Mesmo Bocage, o que de todos eles mais viveu a rua, usava expressões como “Zéfiros abafado, plácidas camenas, margens do Letes”, para dizer coisas simples como “vento, poesia, morte”. Era, portanto, uma geração que não exprimia o ideal nascente, embora pessoalmente os homens que a compunham fossem liberais e tivessem dedicado copiosos poemas aos anseios de liberdade.
            Os grandes vultos eram agora outros. Acima de todos, Garrett e Herculano, que são os nomes que hoje recordamos: mas ao lado deles havia uma falange muito numerosa de escritores que deixaram extensa produção. Tinham assentado praça no exército liberal, bateram-se, foram vencidos, emigraram, voltaram a bater-se, saíram vencedores. Durante a emigração tinham absorvido as formas e os conceitos básicos de processos culturais muito mais avançados do que o nosso. Quando Garrett e Herculano, que seriam em Portugal os corifeus da primeira geração romântica, estiveram em Inglaterra, já tinham morrido todos os grandes poetas da segunda geração romântica inglesa. Mas eles aprenderam-lhes a lição e trouxeram para Portugal, nas mochilas de soldados, os ingredientes do Romantismo.
            O Romantismo é a expressão literária e plástica da consciência burguesa. Acredita no progresso, porque o progresso foi a mola económica da burguesia; entoa o canto da liberdade, porque para o burguês parece evidente que a liberdade não é senão o exercício do poder por ele próprio; exalta o sentimento contra a barreira das convenções, porque o sentimento é ele e as convenções são as sobrevivências das barreiras sociais que ainda se opõem à sua caminhada triunfal; inventa a alma do povo, ou o espírito nacional, porque se considera o legítimo representante desses mitos; reinventa a história porque a história lhe permite reconstituir um pergaminho colectivo e apresentar-se como sendo ele o verdadeiro nobre, o representante das gerações que, durante séculos, desbravaram o caminho da liberdade.
            O piano e também o pechisbeque são pontos de passagem da sociedade velha para a sociedade nova; o primeiro foi, além disso, um importante instrumento de cultura por meio do qual se difundiu nas famílias burguesas o gosto aristocrático da música que, no século anterior se cultivava só nas capelas e nos palácios. Em 1848, um jovem pianista, que tinha aprendido música numa capela, associou-se a um capitalista e fundou em Lisboa a casa Sasseti, cujo negócio era a música. O piano era um instrumento caríssimo que não se fabricava em Portugal. Entre 1848 e 1899, ano em que morreu, Sasseti importou muitos milhares de pianos; a sua empresa foi uma das poucas que sobreviveram a tudo e chegaram até hoje. Ao princípio, o piano só entrou nas casas dos barões, mas não tardou muito a transformar-se numa espécie de sinal distintivo da classe média e a sua difusão é um bom indício da rapidez com que essa classe média se desenvolveu a partir do meado do século. O pechisbeque é outra dimensão, muito típica da cultura material dos burgueses. A palavra vem de um operário inglês, Pinchbeck, que descobriu a forma de, misturando cobre e zinco, obter uma liga que tinha uma cor parecida com a do ouro. A função do pechisbeque foi exactamente essa: parecer o que não era, permitir à mediania imitar a opulência. Teve uma carreira fulgurante: dos botões das librés e das lanternas das caleches passou ao interior da casa, enchendo-a de ferragens brilhantes, molduras, “appliques”, e acabou em pulseiras cravejadas de pedras falsas. Além do pechisbeque metal, houve muitos outros: as paredes de mármore fingido, a escultura de gesso, a seda de papel que forrava as salas, os tapetes persas fingidos. A casa do burguês recordava as antigas casas dos nobres. Para o fim do século, os grandes burgueses sentiram mesmo necessidade de se distinguir dos pequenos e começaram a desencantar pelos sótãos da província e nos pardieiros que tinham comprado quando da venda dos bens da Igreja velhos arcazes e armários que falavam de um passado ilustre e mesmo telas com retratos desconhecidos, que adoptavam como antepassados. E eram-no, se não deles, pelo menos da sociedade que eles iam reconstituindo.
            O fim das guerras civis e a inauguração de um período em que, não obstante os sobressaltos verificados, o regime liberal se estabiliza e uma nova sociedade encontra os seus mecanismos de equilíbrio, marca o aparecimento de padrões de vida do tipo romântico que se convertem no gosto dominante. Três grandes símbolos, funcionando embora em diferentes níveis, todos eles complementares, contribuíram poderosamente para esta nova realidade cultural: o Teatro D. Maria II, o Passeio Público e o Palácio da Pena.
            Ponto programático de um vasto plano de reformas visando criar um teatro nacional, que teve em Garrett o principal impulsionador, a construção da casa de espectáculos do Rossio foi iniciada em 1842, segundo o projecto do italiano F. Lodi, e inaugurada quatro anos depois.
            Mas a sociedade que agora passa a frequentar o teatro declamado encontrou perto dele um novo hábito elegante acorrendo ao Passeio Público, jardim que, embora remodelado com gradeamentos, lagos e repuxos, permanecera um local deserto até que D. Fernando de Saxe-Coburgo lhe conferisse uma actualidade romântica. Com o exemplo do rei consorte, artista amador e coleccionador esclarecido, muito se modificou no sentido das vivências quotidianas. E foi a este príncipe germânico, vindo de um pequeno ducado da Turíngia, que coube uma das mais fecundas intervenções na arte portuguesa, não apenas pelos artistas que apoiou, como sobretudo pelo palácio que ergueu no grandioso cenário de Sintra, já celebrado por Byron.
            A fundação de duas academias, uma em Lisboa e a outra no Porto, foi uma das aspirações finalmente concretizadas pelo liberalismo, em 1836, devidas a Passos Manuel e ao Setembrismo, depois de vários anos de arrastado processo. Dificuldades de toda a ordem faziam prever uma vida difícil a estas instituições, comprometendo as esperanças de uma renovação profunda da arte em Portugal. Dentre as imposições estatutárias, figurava a da realização de exposições trienais, o que fomentava um outro tipo de integração das obras no espaço cultural do país e estimulava o exercício regular da actividade crítica, difundida por uma imprensa em crescimento.

                                               Carlos Moura, “A Arte em Portugal”, in História de Portugal

Estabilização política – Regeneração, Rotativismo, Caciquismo


À violência da guerra civil sucedeu um período de decepção e de amolecimento político. Entre 1874 e 1851 nada aconteceu: não se legislou nada de importante, não houve conflitos graves, mas apenas rotinas parlamentares (a 1849 chamou-se o «ano da caleche», porque o facto político dominante foi a revelação no Parlamento de um caso de corrupção: Costa Cabral recebeu de um negociante uma caleche em troca de uma encomenda). É nesta penumbra que ocorre o que parecia não ser mais do que uma tentativa de revolução sem importância, porque não tinha ideias, e, portanto, não tinha nem partidários nem adversários. O marechal Saldanha, que tinha sido o comandante das tropas que combateram a Patuleia, aborreceu-se porque o substituíram no lugar de mordomo-mor e foi proclamar a revolta num quartel de Sintra. Ninguém aderiu. Dali foi a Mafra à procura de adeptos, mas em vão. Correu os quartéis de Coimbra, Viseu, Porto: só decepções. Já estava refugiado na Galiza quando soube que os regimentos do Porto resolviam aderir. Voltou à cidade e foi aclamado com entusiasmo no Teatro de São João. Um orador disse aí que não se tratava de uma revolução mais, mas do início de uma regeneração da vida nacional. Essa ideia vinha ao encontro das aspirações de todos depois dos escombros da guerra civil. E foi por Regeneração que o movimento ficou conhecido.
            A mesma dificuldade que Saldanha teve em obter soldados encontrou-a o Governo para se opor à revolta. A rainha teve de escrever para o Porto: “Faço justiça aos sentimentos do marechal Saldanha. Peço-lhe que venha imediatamente a Lisboa.” E entregou-lhe o governo.
            A política portuguesa entrou então numa longa fase de estabilidade. A Carta continuou em vigor, mas o Acto Constitucional deu satisfação a algumas reclamações setembristas: a eleição dos deputados passou a fazer-se por sufrágio directo e o Parlamento ficou com o direito de nomear comissões de inquérito aos actos do governo. Com essa emenda deixava de haver cartistas e anticartistas; a corrente conservadora assumiu a forma de Partido Regenerador, que é um cartismo adoçado, e a corrente democrática deu origem ao Partido Histórico e um pouco mais tarde ao Partido Progressista, de reminiscência setembrista. Eram, tanto um como outro, posições de centro. Ambos afirmavam a sua dedicação à realeza, ambos eram sinceramente liberais, ambos se propunham iniciar a reconstrução económica do país e meter mãos à solução da questão financeira, que, entretanto, se tinha agravado constantemente.
            Esta contiguidade ideológica e programática tornou possível que a passagem do poder de um para outro partido se processasse sem crises violentas. Estabeleceu-se então o rotativismo, que dominará a actividade política até ao fim do século.
            O rotativismo bipartidário era, na Europa, um mecanismo típico do liberalismo parlamentar. O modelo era dado pela Inglaterra: o rei, após cada acto eleitoral, entregava o Governo ao partido que saísse vencedor nas eleições; deste modo obtinha-se que o Executivo exprimisse a opinião da maioria. Mas no rotativismo português as coisas passavam-se ao contrário: não era quem ganhava as eleições que subia ao poder, mas sim quem subia ao poder que ganhava as eleições. O método para obter a concordância entre Governo e resultado eleitoral era este: de cada vez que o rei nomeava novo Ministério, decretava a dissolução das câmaras e marcava novas eleições. Destas saía sempre vencedor o partido a que pertencia o Governo que o rei tinha nomeado.
            O sistema foi muito criticado. Ficou famoso um epigrama do poeta João de Deus:
Há entre el-rei e o povo
Por certo um acordo eterno:
Forma el-rei Governo novo,
Logo o povo é do Governo
Por aquele acordo eterno
Que há entre el-rei e o povo.
Graça a esta harmonia,
Que é realmente um mistério,
Havendo tantas facções,
O Governo, o Ministério, ganha sempre as eleições!
            O “mistério” estava nas condições sociais do país. A imensa maioria da população que o sistema de sufrágio directo levava às urnas não tinha consciência política nem independência económica e os partidos não dispunham de organização para a realização de campanhas eleitorais. Para que o direito de voto se exercesse, era necessária a intervenção dos “caciques” (palavra que, através da Espanha, nos veio das Caraíbas, onde tinha o sentido de chefe de aldeia indígena). O caciquismo desempenhou função básica no sistema eleitoral: era o cacique que estava em contacto com o povo e era ele quem mandava votar. Mas, por sua vez, o cacique dependia de um chefe político e este devia pagar a corretagem dos votos a favor do seu partido. O pagamento fazia-se com nomeações, protecção e outros favores. O Governo está em condições de fazer mais favores do que a oposição e isso, além das irregularidades eleitorais, explicava que o Ministério ganhasse sempre as eleições. O caciquismo foi, pois, um sistema de facto de sufrágio indirecto, que se sobrepôs ao sistema de direito do sufrágio directo.
            A vida política baseada nesta engrenagem carecia de autenticidade; as eleições tornaram-se um dos temas predilectos do sarcasmo e da caricatura nacional. Herculano chamou-lhes uma “vil comédia”. Perdeu-se a confiança nas instituições e na representatividade dos quadros políticos. O aparelho político não tinha raiz popular e o país popular não tinha expressão política. O rotativismo foi-se assim esgotando a si mesmo e começou a desagregar-se nas últimas décadas do século pelo processo das “dissidências”, isto é, por perdas de unidade partidária que levavam ao aparecimento de novos partidos. O bipartidarismo converteu-se em pluripartidarismo, tornando impossível o funcionamento do sistema rotativo e acabando por conduzir à queda do constitucionalismo monárquico.

                                               José Hermano Saraiva, História Concisa de Portugal


A extinção das Ordens Religiosas e a venda dos bens do Clero


            Mouzinho da Silveira secularizou, ainda nos Açores, alguns conventos. Mas foi o decreto de 1843, devido a Joaquim António de Aguiar (a que, por isso, se chamou depois o Mata-Frades), que pôs termo à maioria das ordens religiosas e lhes nacionalizou os bens. O processo de extinção e confisco prolongou-se depois por muito tempo e em 1864 e após a implantação do regime republicano voltaram a verificar-se secularizações em grande escala.
            A propriedade eclesiástica tinha, em 1820, uma extensão enorme. Começara a formar-se muito antes da monarquia; muitos solos nacionalizados durante o século XIX pertenciam à Igreja desde a época visigótica. Geração após geração, esse património tinha sido aumentado por dádivas e legados testamentários, porque, durante muitos séculos, os fiéis acreditaram que o que neste mundo dessem à Igreja seria levado em conta no julgamento dos pecados, habilitando-os, portanto, a um lugar no Paraíso. Os reis lutaram, a partir de D. Afonso II, contra essa acumulação de riqueza, mas nunca conseguiram impedi-la por completo; e o que entrava uma vez na posse da Igreja não voltava a sair, porque o direito canónico proibia a alienação de bens. Não existe um cálculo seguro sobre o valor da riqueza imobiliária da Igreja e do clero ao iniciar-se a revolução liberal, mas as estimativas andam à volta de uma terça parte do conjunto das terras cultivadas. Havia, além disso, muitas centenas de edifícios e avultados bens imóveis, designadamente valores artísticos. Era nos conventos e igrejas, não nos palácios dos nobres, que se acumulava o tesouro artístico nacional.
            Tudo foi posto em hasta pública e vendido. A afluência ao mercado imobiliário de muitos milhares de grandes e pequenas propriedades, numa fase de crise económica, provocou uma grande baixa de valores e a venda rendeu muito menos do que o previsto. Poucas pessoas tinham dinheiro para comprar; em 1837, o número de prédios vendidos era já de sete mil e quinhentos, mas o número dos compradores era dez vezes menor.  O resultado social também não correspondeu às expectativas; julgava-se que da venda iria resultar a divisão, o acesso à propriedade dos cultivadores pobres, e, portanto, uma reforma agrária. De facto, os pobres eram pobres de mais para poder comprar e a operação favoreceu especuladores que dispunham de dinheiro, ou principalmente de crédito, e levou à constituição da grande propriedade. Mesmo assim, não foi possível vender tudo. Durante muitos anos, os antigos bens da Igreja, agora denominados bens nacionais, foram uma espécie de reserva a que o Estado recorria nas alturas de aperto, que aliás eram constantes. Quando, por exemplo, foi preciso pagar à Câmara de Lisboa dezasseis contos pelo terreno em que se ia construir o Teatro Nacional, em Lisboa, o Governo, para realizar esse dinheiro, teve de mandar vender o Convento da Cartuxa, de Évora, e mais três grandes herdades no Alentejo, e tudo reunido não valeu mais do que quinze contos. Por fim, na posse do estado ficaram só os grandes conventos, onde foram instalados quartéis, repartições públicas e tribunais.

                                               José Hermano Saraiva, História Concisa de Portugal


A instabilidade: Setembrismo e Cartismo


            Os primeiros dois anos da vida política constitucional foram marcados pelo desentendimento entre o Governo e o Parlamento. A rainha substituiu quatro vezes o Governo e por fim dissolveu o Parlamento e mandou fazer novas eleições. O texto constitucional em vigor era a Carta e a oposição via nisso uma das causas da inércia governativa e da deterioração política e pretendia o regresso ao regime da Constituição de 1822.
            Em Espanha, em agosto de 1836, uma revolta de sargentos (motim de Granja) forçou à reposição da Constituição democrática de 1812. Mais uma vez se manifestou a estreita ligação entre a política portuguesa e a espanhola. Em setembro do mesmo ano, um movimento revolucionário em Lisboa obrigou a rainha a pôr em vigor a Constituição de 1822.
            A revolução de setembro não foi, como as anteriores o haviam sido, um pronunciamento de chefes militares, mas um movimento popular a que depois as tropas aderiram. Este facto tem levado os historiadores a prestar-lhe muita atenção e já se tem querido ver nela uma primeira manifestação de luta do operariado e da pequena burguesia. A revolução de setembro teria sido, segundo essa tese, uma revolução do povo, que os políticos burgueses teriam depois empalmado. A militância e capacidade de mobilização popular voltaram a manifestar-se nesse ano de 1836 e foi o povo que sufocou o contragolpe da Belenzada, tentado em novembro. Mas depois disso desaparece sem vestígio, o que seria inexplicável se ela correspondesse aos impulsos de uma cada social cujos problemas depois não foram resolvidos. Mas em 1836 faltam completamente as condições económicas de base pressupostas por uma forte e activa consciência de classe; não havia indústria nem operariado e a maior parte dos empregados nas actividades fabris (arsenais e cordoaria) eram funcionários públicos. É preciso procurar outra explicação. Ela está, possivelmente, em que os revoltosos de 1836 eram antigos combatentes do exército liberal recentemente desmobilizados e que haviam acorrido a Lisboa em grande número, porque só a capital, e em especial os serviços do estado, oferecia alguma possibilidade de emprego. A sua doutrinação política era ainda a obtida nas fileiras durante a guerra, mantida depois em clubes políticos. Esse facto ajuda a compreender a capacidade de actuação militar de que deram prova em 1836-1838, a solidariedade que encontraram nas tropas, e explica que o movimento popular de Lisboa não tenha tido qualquer continuação: era o fruto de uma situação passageira e não de condições estruturais.
            O Governo saído da revolução ficou conhecido pela designação de setembrista e a palavra setembrismo serve, até ao meado do século, para exprimir a ala mais avançada do liberalismo. A sua duração política não foi longa: vai de 1836 a 1840, e esse período foi cortado por reacções violentas. Logo em 1836, partiu do palácio real uma tentativa de golpe de estado para a restauração da Carta; por detrás dela estava o apoio da Bélgica e da Inglaterra e chegou a prever-se que, em troca desse apoio, Portugal entregaria uma das suas províncias de África. A rainha anunciou a demissão do Governo, um batalhão inglês chegou a desembarcar, mas as forças populares que tinham feito a revolução de setembro pegaram em armas, ameaçaram marchar sobre o Palácio de Belém, onde a rainha se encontrava, e fizeram falhar o golpe, que fiou conhecido por Belenzada.
            Em 1837 revoltaram-se e proclamaram a Carta os quartéis de muitas cidades da província; Saldanha e Terceira assumiram o comando do movimento, que por isso se chamou revolta dos marechais. Os setembristas atribuíram-na a maquinações inglesas provocadas pela legislação tributária, que procurava diminuir a importação pela agravação da pauta alfandegária. A revolta durou de julho a setembro e acabou por ser vencida, depois de combates sangrentos.
            Entretanto, os grupos civis que tinham feito a revolução sentiam-se desapontados com ela e preparavam-se para fazer outra. Os batalhões da Guarda Nacional (organização paramilitar com armamento próprio, incluindo artilharia) eram a força do movimento. O mais activo desses batalhões era o dos arsenalistas, formado por artífices do Arsenal, e comandados por Soares Caldeira, que havia sido o verdadeiro chefe civil na revolução de setembro. O Governo da época etiquetou o movimento de anarquista, mas Caldeira era deputado e os seus discursos não revelam qualquer pensamento ou programa político próprios, mas apenas radicalismo exacerbado. De qualquer modo, os arsenalistas amedrontaram a consciência burguesa: tinham deixado crescer as barbas, diz um escritor de então, “para meterem mais terror à população inerme da capital” Na noite de 13 de março de 1838, as tropas do Governo cercaram os arsenalistas no Rossio e metralharam-nos implacavelmente.  Os mortos elevaram-se a várias centenas, ou não passaram de uma dúzia, consoante a atitude política dos narradores perante o episódio, que ficou sempre na penumbra da historiografia liberal. O «massacre do Rossio» foi, porém de consequências definitivas para o setembrismo, porque o deixou sem força que lhe servisse de esteio. O efémero movimento popular de Lisboa mergulhou a partir de então numa clandestinidade mortiça e todas as outras forças políticas eram tendencialmente conservadoras.
            As inovações legislativas de maior relevo da administração setembrista deram-se no campo da cultura:  criação dos liceus, fundação das Academias de Belas-Artes de Lisboa e do Porto, da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, da Escola Politécnica, em Lisboa. O prosseguimento da política ultramarina visou a criação, em África, de um segundo Brasil; começou então a colonização dos planaltos de Angola e foi proibida, em 1836, a importação de escravos ao sul do equador, medida que se apresentou como destinada a provocar o investimento dos capitais envolvidos no comércio da escravaria sem empreendimentos de valorização económica.
            No Parlamento, revestido de poderes constituintes, preparou-se nova Constituição (1838), que representa uma tentativa de compromisso entre a Carta e a Constituição de 1822: volta-se à divisão tripartida dos poderes, desaparecendo, portanto, o poder moderador do rei, mas mantém-se-lhe o veto absoluto e robustece-se a chefia do executivo. O Parlamento continuou, como na Carta, a ser formado por duas câmaras, mas a Câmara Alta passou a ser constituída por senadores eleitos e temporários, e não vitalícios e de escolha régia, como sucedia na Carta.
            A Constituição de 1838 não teve vida longa. Em 1842, depois de um golpe de Estado desencadeado no Porto por Costa Cabral, a rainha mandou proclamar outra vez a Carta como constituição política do País.
            Costa Cabral, de origem popular e camponesa, tinha sido um dos chefes dos arsenalistas. Em breves anos passou da esquerda radical para a direita cartista; em 1839 era já ele o homem do poder, onde representava aquilo a que se chamava a linha «ordeira». Esta viragem, agravada pela situação sem precedentes de se ter revoltado e ter derrubado o próprio Governo de que fazia parte, fez enorme escândalo. Mas a severidade das censuras que, de todos os lados, fulminaram o ministro não se explica tanto pela acrobacia política (por exemplo, Saldanha deu saltos desses durante toda a vida) como pelo facto de ter rompido o quadro dos conceitos românticos que pautavam a acção política. Costa Cabral foi o primeiro representante do realismo político. Como todos os realistas, preocupou-se menos com os princípios do que com os factos, menos com o futuro do que com o presente. Os objectivos que se propôs atingir foram a restauração da ordem no Estado, a eficiência do serviço público, a docilidade da opinião política. Algumas reformas importantes recaíram sobre o sistema tributário e a contabilidade pública, os serviços de saúde, a organização administrativa, na qual abandonou o rumo romântico de uma descentralização para a qual se invocava a tradição medieval e optou pela subordinação das autarquias ao poder central. Entre essas duas linhas abriu-se a partir de então uma contradita que chegaria aos nossos dias.
                                               José Hermano Saraiva, História Concisa de Portugal


A guerra civil


            A situação de guerra civil dominou o país de 1828 até 1834. A primeira reacção militar contra o novo absolutismo deu-se logo em 1828, com uma revolta que, centrada no Porto, alargou a quase todas a s cidades para o norte do Mondego, com a adesão de oficiais que sublevaram as guarnições. Já nessa altura estavam refugiados em Inglaterra os principais chefes da causa liberal: Palmela, Terceira, Saldanha. Ao saberem dos acontecimentos de Portugal, fretaram um velho vapor, o Belfast, que os levou ao Porto, onde instalaram um Governo provisório. O mesmo navio lhes serviu para abandonarem a cidade à aproximação do exército miguelista. Esse episódio serviu para crismar a revolta, que ficou conhecida como a Belfastada. As tropas liberais saíram da cidade e conseguiram chegar à Galiza, onde uma parte embarcou para Inglaterra. O rescaldo da revolta foi o ensejo da primeira grande manifestação de terror miguelista: mais de mil prisões, julgamentos sumários, numerosas condenações à forca, das quais só se puderam cumprir doze porque a maioria dos condenados estava em Inglaterra. As profissões dos enforcados são boa amostra da composição social do partido liberal: quatro juristas, quatro funcionários públicos, quatro militares (três oficiais e um sargento). Desde 1820, as ideias liberais tinham conquistado muita gente e agora já não apenas no sector intelectual, mas em todas as camadas da população. A lista dos seiscentos e dezoito presos políticos que, entre 1828 e 1833, entraram na cadeia de São Julião da Barra é muito expressiva: 277 militares, 93 estudantes, professores e membros de profissões universitárias, 87 de profissões ligadas com o comércio, 78 com profissões populares, 52 funcionários públicos, 44 eclesiásticos, 31 proprietários e lavradores.
            Pela mesma altura revoltaram-se a favor dos liberais a Madeira e a ilha Terceira. A primeira foi dominada pelos miguelistas, mas a revolta terceirense aguentou-se firmemente e veio a ter consequências decisivas. Para ali se dirigiram os refugiados da Inglaterra quando o Governo inglês lhes começou a criar dificuldades e ali se puderam reunir forças dispersas do liberalismo perseguido.
            Mas em 1830 deu-se uma viragem na política europeia. Em Paris, a revolução de julho derrubou de vez a sobrevivência do Antigo Regime, representada pela monarquia aristocrática de Carlos X. A Santa Aliança revelou ter perdido então toda a sua força de dique anti-revolucionário e os movimentos liberais reanimaram-se fogosamente na Europa. Em Lisboa houve duas revoltas em 1831, uma delas movida pelos sargentos e liquidada por furiosos combates que fizeram mais de duzentos mortos. No próprio Brasil o vento de 1830 se fez sentir, aumentando a oposição popular ao Governo do imperador. Em 7 de Abril de 1831, perante um tumulto, D. Pedro abdicou da coroa imperial e embarcou para Inglaterra, parece que com a intenção de recuperar o trono português. Mas não encontrou apoio político da França nem da Inglaterra e passou a usar o título de duque de Bragança, regente de Portugal até que a rainha, sua filha, pudesse exercer o poder.
            Durante os meses que passou em Londres, conseguiu dinheiro emprestado, comprou navios de guerra, armas, recrutou mercenários. No ano imediato seguiu para os Açores e ali organizou a expedição que, em 8 de julho de 1832, desembarcou no Mindelo, numa praia escusa que ficava a cerca de três léguas da cidade do Porto.
            A esperança em que D. Pedro ia de ser recebido triunfalmente como libertador não se confirmou. O primeiro oficial enviado a terra para convencer as tropas miguelistas a aderir foi ameaçado de fuzilamento e reembarcou entre apupos e vivas a D. Miguel. A resistência ao desembarque ficou por aí. O exército invasor avançou sobre o Porto, que o exército miguelista abandonou sem combater.
            Durante um ano, a guerra limitou-se ao cerco do Porto. A desproporção das forças era grande: cerca de 80000 homens do lado miguelista, 7500 liberais. Mas uma hábil linha de fortificação foi criada à volta da cidade todos os esforços esbarraram contra ela. A esquadra garantiu sempre o acesso ao mar e isso permitiu o abastecimento de armas, mantimentos e soldados comprados ou recrutados em Inglaterra e França. A população portuense aderiu com firmeza à causa de D. Pedro e ajudou-o com dinheiro, trabalho, contingentes de soldados. Mas a situação agravava-se de mês para mês. A derrota chegou a parecer inevitável e fizeram-se diligências para uma mediação inglesa.
            Em junho de 1833 foi enviado ao Algarve um corpo de tropas para obrigar o exército absolutista a distrair forças, aliviando a pressão sobre o Porto. As províncias do Sul não estavam preparadas para a guerra e a pequena expedição pôde, quase sem resistência, apoderar-se do Algarve e marchar depois para Lisboa, onde entrou sem luta em 24 de julho.
            A ocupação da capital decidiu a guerra. A Inglaterra e a França reconheceram o Governo liberal. A luta continuou ainda, sangrenta e movimentada, por mais um ano, mas os absolutistas, enfraquecidos pelo desânimo, pelas deserções e pelas sucessivas derrotas, acabaram por depor as armas em maio de 1834 (Convenção de Évora Monte). D. Miguel embarcou para o exílio entre vaias populares, protegido por um esquadrão de cavalaria do exército vencedor.

                                               José Hermano Saraiva, História Concisa de Portugal


O regresso ao Absolutismo


            A evolução política espanhola decidiu a sorte da primeira experiência constitucional portuguesa. Fê-la nascer e fê-la morrer. Em 1823, um exército francês, agindo na execução do programa político antiliberal da Santa Aliança, penetrou em Espanha, derrotou os partidários da Constituição de 1812 e restaurou a monarquia absoluta. O facto não demorou muito a repercutir-se em Portugal.
            Por outro lado, a independência do Brasil (setembro de 1822) infligiu um golpe mortal nas Cortes e emprestou aos liberais grande impopularidade. Muita gente notava agora que um dos principais objectivos da Revolução, o de trazer de novo o Brasil à condição de colónia, falhara, disso culpando as Cortes. De forma semelhante, a crise económica iniciada por volta de 1817 e que afetava sobretudo a burguesia, impelindo-a para a Revolução, chegara ao seu termo, retirando a esta a sua justificação principal e empurrando aquela para uma prudência compreensível. O partido liberal, no poder, depressa se viu isolado e falho de apoio.
            Em Lisboa, o próprio palácio real conduzia a reacção às novas instituições. Os conspiradores uniam-se à volta de D. Carlota Joaquina, irmã do rei de Espanha e aguerrida adversária dos liberais, que chegou a recusar-se a jurar a Constituição. O infante D. Miguel, servia-lhe de instrumento para os manejos contra-revolucionários. Entretanto, o entusiasmo nos milagres que se esperavam da Constituição ia arrefecendo; o clero e a nobreza hostilizavam abertamente a revolução e o Governo parlamentar, cujas leis já não deixavam dúvidas de que os seus privilégios iam acabar. A burguesia ligada aos negócios sentiu-se desapontada com o rumo tomado pela questão do Brasil.
            Em 27 de Maio de 1823, o infante D. Miguel lançou em Vila Franca de Xira o pregão da revolta e proclamou a restauração do Absolutismo: “É tempo de quebrar o férreo jugo em que ignominiosamente vivemos.” O jugo era o liberalismo. A guarnição de Lisboa foi juntar-se aos revoltosos. Sem forças para resistir, as Cortes dissolveram-se e o rei aceitou os factos consumados, suspendendo a vigência da Constituição de 1822 e prometendo a promulgação de nova lei fundamental que garantisse «a segurança pessoal, a propriedade e os empregos». A essa revolta, que marca o fim do primeiro período constitucional, se ficou a chamar a Vila-Francada.
            Embora o infante D. Miguel se apresentasse como a cabeça do movimento anticonstitucional conhecido por Vila-Francada, não era de facto mais do que um instrumento nas mãos de vasto grupo de pessoas, onde alguns dos revoltosos de 1820 desempenhavam papel de relevo. Todavia, e exactamente como sucedera em 1820, a contra-revolução podia agora definir-se como um movimento «contra» qualquer coisa, mais do que a favor de um ideário e de uma acção precisos. Tudo isto se tornou claro à medida que o tempo foi passando e os contra-revolucionários se dividiram numa ala direita extremista chefiada por D. Miguel e por sua mãe, e numa ala moderada do centro, simbolizada pelo rei e pelo Governo. Descontente e impaciente, a primeira voltou a conspirar e revoltou-se uma vez mais em abril de 1824 (Abrilada).
            D. João VI procurou refúgio a bordo de um navio de guerra inglês surto no Tejo e, daí, apoiado pela Inglaterra, obrigou D. Miguel a submeter-se. O infante deixou o país e o partido do centro voltou ao poder. Até à morte do rei (março de 1826), Portugal foi governado por um absolutismo moderado, ainda que, sem dúvida, mais virado para a Direita do que para a Esquerda. A prometida Constituição nunca se concretizou, anunciando até o monarca a sua intenção de convocar as Cortes á maneira antiga. Numerosos liberais fugiram do país, exilando-se em Inglaterra e em França.
            A morte de D. João VI veio criar um problema de difícil resolução. O filho primogénito, D. Pedro, era o imperador do Brasil. E embora ninguém tivesse, até à data, posto em dúvida os seus direitos ao trono de Portugal, parecia óbvio que nem brasileiros nem portugueses aceitariam uma reunião das suas coroas, mesmo com estatutos separados e autónomos. Assim, D. Pedro, aclamado em Portugal como D. Pedro IV logo que seu pai morreu, abdicou sem demora (uma semana depois de o falecimento do rei ser conhecido no Brasil) a favor de sua filha Maria da Glória – uma menina de sete anos – sob a condição de ela casar com seu tio D. Miguel, ao qual era confiada a regência do Reino. Ao mesmo tempo, D. Pedro outorgava a Portugal uma constituição conservadora (Carta Constitucional), apressadamente redigida. Concedeu também uma amnistia e nomeou os primeiros Pares do Reino, escolhidos tanto entre os partidários do Absolutismo como do Liberalismo. D. Pedro tentava assim continuar a política de compromisso de seu pai, até ao extremo de chamar D. Miguel, cabeça da facção extremista, e de lhe confiar plenos poderes governativos durante, pelo menos, onze anos.
            Em Portugal, e apesar de muita gente criticar as abruptas decisões de D. Pedro (tomadas sem primeiramente jurar o tradicional voto de fidelidade à Nação) e rejeitar a ideia de uma Constituição, aquela solução foi geralmente aceite. A regente interina, infanta Isabel Maria, fez aclamar a nova rainha (D. Maria II) e jurara a Carta em todo o país, organizando ao mesmo tempo as eleições para as novas Cortes. Em Viena (onde D. Miguel estava a residir), o infante e futuro regente aceitou as condições do seu irmão, jurou a Carta e realizou os esponsais com a sobrinha. Nos fins de 1827 deixou a Áustria, chegando a Portugal, via Paris e Londres, em fevereiro de 1828.
            Já então se desvanecera por completo o primitivo clima de conciliação. Os liberais, dotados novamente de uma constituição e de um Parlamento, gritavam vitória e exibiam-se nas ruas em manifestações arrogantes. Os absolutistas davam-se conta de que a manutenção do statu quo significava derrota e um regresso ao odioso período constitucional. Não tardaram a invocar toda a espécie de razões para provar que D. Pedro não tinha direito à coroa – visto que proclamara a independência do Brasil e traíra, consequentemente, Portugal – e que, portanto, não a podia transmitir a ninguém. D. Miguel, alegavam, era o legítimo herdeiro e soberano. Aqui e além registaram-se levantamentos militares e guerrilhas. Por curto espaço de tempo, em 1826-27, houve mesmo um esboço de guerra civil com auxílio espanhol.
            O Governo tinha pouca força e menos decisão para conter as erupções de violência. Mas era claro que se inclinava mais para a corrente absolutista do que para a liberal. A fim de se proteger a si próprio e à situação vigente, solicitou até ao Governo inglês o envio de um contingente militar que se manteve estacionado em Lisboa durante algum tempo.
            De regresso ao país, D. Miguel jurou novamente fidelidade a D. Pedro e a D. Maria II, assim como à Constituição. Estava, todavia, sujeito a pressões constantes, oriundas de todos os grupos sociais e, principalmente, dos seus conselheiros mais chegados, para esquecer juramentos e se fazer proclamar rei absoluto. Os Governos austríaco e espanhol também se mostravam favoráveis à restauração do Absolutismo. Em março de 1828, D. Miguel dissolveu as Cortes, voltando a convocá-las em maio seguinte, mas à maneira antiga, por ordens. Nelas foi proclamado rei (julho de 1828), ao que imediatamente anuiu. As potências estrangeiras retiraram os seus representantes diplomáticos até 1829, data em que quase todas elas – mas não as três principais, Inglaterra, França e Áustria – formalmente reconheceram a realeza miguelista.

                                               A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal


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