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sábado, 4 de janeiro de 2020

Análise da Cena XII do Ato I de Frei Luís de Sousa

Assunto: o incêndio do palácio.


Consequências do ato de Manuel de Sousa
-» partida da família para o palácio de D. João;
-» aumento do terror e da angústia de D. Madalena;
-» criação das condições para o desenlace trágico.

De facto, o incêndio do palácio de Manuel de Sousa:

a) é um acontecimento imprevisto: só na última cena se consuma, pois Manuel de Sousa não revelara a ninguém os seus intentos;

b) é um acontecimento significativo e dinâmico: implica o antagonismo entre o patriotismo de Manuel de Sousa e a “tirania” dos governadores, em nome de um rei estrangeiro; entre o pundonor do cidadão, senhor e dono de sua casa, e a “afronta” de estes hóspedes indesejados imporem a sua presença, sem ao menos uma consulta, ou uma atenção com o proprietário;

c) altera gravemente a situação das personagens: D. Madalena, esposa ilegítima, adúltera e bígama, volta novamente para o palácio onde tinha sido (não o era ainda?) esposa legítima de D. João de Portugal (como, aliás, ela temia – cena 8); por seu lado, Manuel de Sousa vai para o palácio de D. João como um intruso e usurpador de um lugar que não podia ocupar legitimamente;

d) precipita o desfecho pelo retorno de D. Madalena ao passado, à casa fatal, onde irão suceder os acontecimentos trágicos mais importantes e significativos, ou seja, as desgraças profetizadas por Telmo, vividas na consciência atormentada de D. Madalena, indiciadas pela perda do retrato de Manuel de Sousa, anúncio fatal da “perda” da personagem retratada, e ainda o incêndio do palácio, destruidor da “casa”, no duplo sentido de edifício e de família.


Simbologia do incêndio
▪ O incêndio e a destruição do retrato representam a antecipação da morte de Manuel de Sousa.
▪ Por outro lado, o mesmo fogo que consome o quadro vai permitir igualmente a purificação da personagem. De facto, após a morte de Manuel de Sousa para a vida mundana, dá-se a sua ressurreição espiritual como Frei Luís de Sousa, um dos grandes prosadores portugueses do século XVII.


Caracterização das personagens

Manuel de Sousa Coutinho:
- guiado pela razão, toma as suas decisões à luz de um conjunto de valores universais: a liberdade, a moral, a honra, o patriotismo (ex.: a resposta dada às tentativas dos governadores, incendiando o seu palácio);
- generoso e nobre de alma;
- bons instintos morais, servidos por uma fé cristão vivida;
- sentido de serviço para com a comunidade a que pertence, no exemplo de resistência ao rei estrangeiro;
- irónico (“Ilumino a minha casa…”; “Suas Excelências podem vir, quando quiserem.”): exprime o desrespeito que sente pelos governadores [a ironia e a metáfora presentes na primeira expressão contêm um duplo sentido: remetem para a luminosidade que receberá os governadores, proveniente do incêndio do palácio; por outro lado, a expressão traduz o patriotismo de Manuel de Sousa, que receberá os governadores com fogo e destruição. Segundo o manual Entre nós e as palavras, «D. Manuel afirma que aceita a vinda dos governadores; mas o ato de destruir demonstra a sua oposição. A ironia verbaliza a revolta da personagem e contrasta o que os governadores esperavam que D. Manuel fizesse (submeter-se) e o que ele faz (insurge-se).”];
- sereno na decisão que toma: note-se, por exemplo, no eufemismo repleto de ironia que usa para se referir ao incêndio que está a atear à sua própria casa (“Ilumino a minha casa…”);
- Manuel de Sousa é um herói romântico, porque se deixa levar pelas suas paixões de forma violenta, impulsiva e até precipitada na defesa dos conceitos de honra e patriotismo.

D. Madalena:
- aterrorizada com o ato do marido;
- dominada pelo Destino e pelo fatalismo e impotente contra ambos: a tentativa de salvar o retrato do marido, parecendo prever o que daí adviria;
- ao ver o palácio a arder, a sua única preocupação consiste em salvar o retrato, parecendo adivinhar na sua destruição algo muito grave. De facto, para ela a destruição do retrato pelo fogo prenuncia a destruição do marido e da própria família;
- o cerco vai-se fechando à sua volta e os seus contínuos medos e terrores começam a ser justificados: D. João de Portugal não regressou, mas D. Madalena vai ao encontro do passado.

NOTAS:

1.ª) Estas derradeiras cenas do primeiro ato são bastante rápidas. Aliás, desde a chegada de Manuel de Sousa, o ritmo, até então algo lento, torna-se rápido e, depois, muito rápido, o que está em sintonia com o final espetacular do ato e com a peripécia: a intriga adensa-se e afunila. Esta aceleração do ritmo da ação é traduzida pela pontuação usada: frases muito pontuadas, pausadas por vírgulas, pontos e vírgulas e reticências, mostrando o precipitar das ações; os pontos de exclamação marcam o sentimentalismo das cenas.

2.ª) Manuel de Sousa afirma conceitos e características do Barroco: nada perdura, tudo muda, a vida é perpétua mudança, tudo é aparência e sonho.


Discurso das personagens

Nesta cena, há um contraste evidente entre o discurso de D. Madalena e do de Manuel de Sousa.
Assim, ela mostra-se emocionalmente descontrolada, aterrorizada, e esse estado de espírito é visível no recurso a frases curtas, interrogativas e exclamativas, nas invocações a Deus e no uso da interjeição «ai».
Por sua vez, o marido mostra-se tranquilo, pois está convicto da decisão que tomou. Quando se refere aos governadores, é irónico e sarcástico.


Elementos trágicos das cenas

Hybris de Manuel de Sousa

A hybris de Manuel de Sousa manifesta-se de duas maneiras:

1.ª) Anteriormente ao início da ação: o amor-paixão por D. Madalena é, para ele, legítimo, porque a julga «viúva». Todos os indícios, todos os testemunhos apontavam para a certeza da morte de D. João, ao fim dos 7 anos já passados desde o desastre de Alcácer Quibir. Na sua boa fé, julga não haver qualquer impedimento para o matrimónio. No entanto, inconscientemente:
a) colabora na mentira;
b) profana o sacramento do matrimónio;
c) comete adultério;
d) passa a viver em bigamia;
e) usurpa o lugar que a outro pertence, de direito.

2.ª) Dentro da ação: rebeldia para com as autoridades de Lisboa:
. Miguel de Moura, «um vilão ruim»;
. o conde de Sabugal e o conde de Santa Cruz «que deviam olhar por quem são, e que tomaram este incargo odioso… e vil, de oprimir os seus naturais em nome dum rei estrangeiro!»;
. o arcebispo é «o que os outros querem que ele seja», isto é, uma personagem sem vontade e sem caráter, muito acomodatícia, facilmente manobrável.
É, portanto, pelos mais nobres ideais que Manuel de Sousa recusa a hospitalidade aos governadores:
-» patriotismo que não tolera essa «afronta»;
-» resistência ao rei estrangeiro nas pessoas dos seus representantes;
-» lição aos fidalgos degenerados, e a «este escravo povo que os sofre, como não tiveram tiranos há muito tempo nesta terra» (I, 7).
Revela, assim, um sentido heroico da honra, na ética feudal, paralelo à virtude romana (virtus) e à excelência grega (aretê).
Por isso:
. recusa receber, no seu palácio de Almada, os governantes de Lisboa;
. incendeia o palácio;
. desafia as autoridades e o próprio Destino (I, 11);
. entra em conflito aberto e voluntário com as autoridades (I, 8);
. aceita o risco calculado, até às últimas consequências: renúncia e perda de bens, generosa entrega da própria vida (I, 11);
. recusa o perdão dos governadores, «se ele quisesse dizer que o fogo tinha pegado por acaso» (II, 1);
. sofre presumível perseguição, mas prefere estar escondido, naquele «homizio», como diz Maria, naquela «quinta tão triste d’além do Alfeite, e não poder vir aqui senão de noite, por instantes, e Deus sabe com que perigo» (II, 1).

Manuel de Sousa faz ainda sucessivos desafios ao Destino. De facto, quando afirma «Meu pai morreu desastrosamente caindo sobre a própria espada. Quem sabe se eu morrerei nas chamas ateadas por minhas mãos? Seja.» (I, 11):
. evoca uma fatalidade que parece existir sobre a sua estirpe;
. se o pai morreu desastrosamente (à letra, desastre é a maléfica influência de poderes ocultos e cruéis, manifestados através dos astros, sobre os destinos humanos), também lhe poderá acontecer algo de terrível, ao incendiar o próprio palácio por suas mãos. As figuras paralelas do pai e do filho como que se sobrepõem, unidas em comum desgraça. Com efeito, Lopo de Sousa Coutinho é atravessado pela própria espada: quem com ferros mata… Manuel de Sousa, o filho, tem a intuição profética de que as «chamas ateadas por suas mãos» o poderão destruir, e com ele todos aqueles que o amam e a quem ama, D. Madalena e Maria: quem brinca com o fogo…
  De resto, não serão essas «chamas ateadas por suas mãos», simbolicamente, as chamas do amor adúltero (descontada embora a sua boa fé) a uma mulher casada com outro, que o irão queimar e destruir? Cupido, além de fatal, também é, por vezes, cruel.

Presságios / indícios:

1.º) O incêndio, que destrói o palácio onde as personagens viviam numa certa acalmia e precipita o desenlace fatal:
* pode ser o prenúncio de morte para o mundo de Manuel;
* pode significar que o homem é vítima do seu fogo, da sua paixão, que o conduz inevitavelmente à destruição;
* pode ainda significar que é a ação do Homem que cria o destino, determina o seu futuro;
* pode, igualmente, apontar para um possível renascer das cinzas de Manuel de Sousa (com a tomada do hábito).

2.º) A destruição do retrato de Manuel de Sousa, queimado também pelo fogo, e a tentativa infrutífera de D. Madalena o salvar simbolizam a destruição que também cairá sobre a família brevemente e a impotência das personagens para travarem o Destino, bem como a morte psicológica da personagem retratada.

Peripécia:
-» o incêndio do palácio;
-» a mudança para o palácio de D. João de Portugal.

▪ O páthos de D. Madalena vai-se intensificando progressivamente (clímax), até ao incêndio do palácio (acmê, o ponto culminante) e perda do retrato.

▪ O caráter trágico desta cena e de todo o final do ato é ainda evidenciado:
a) pelo apelo insistente à fuga;
b) pelas informações das didascálias:
- o deflagrar das chamas;
- os gritos;
- o rebate dos sinos;
- o cair do pano (pode simbolizar a queda que conduzirá à desagregação da família).


Marcas do drama romântico:
. o fundo histórico: a presença dos governadores, o incêndio do palácio por Manuel de Sousa;
. os valores representados por Manuel de Sousa: a honra, o patriotismo representativo da identidade nacional, a oposição à tirania, etc.;
. o culto dos sentimentos fortes: os gritos e os movimentos agitados e precipitados.

"Waiting for her", A-ha


1990

Análise da Cena XI do Ato I de Frei Luís de Sousa

Retrato de Manuel de Sousa
Este monólogo de Manuel de Sousa exemplifica a sua determinação, coragem e patriotismo.
De facto, “como homem de honra e coração”, o seu foco está no afrontar os governadores: se for caso disso, está disposto a perder os seus haveres e até a sacrificar a própria vida, que considera efémera (“vida miserável que um sopro pode apagar em menos tempo ainda!”), para se opor à tirania.
Por outro lado, a cena enfatiza os valores que Manuel de Sousa representa e que já conhecemos: a honra, o amor à pátria e à liberdade, o despojamento dos bens materiais.


Função da cena: só nesta cena se compreende cabalmente o plano de Manuel de Sousa e, por conseguinte, a necessidade de abandonar a sua casa.


Presságio
A evocação por Manuel de Sousa da morte desastrosa do pai (caiu sobre a própria espada) associa esta morte a uma morte provável, no meio das “chamas ateadas por suas mãos”. É mais uma prolepse da desgraça que irá suceder. Por outro lado, esta passagem chama a atenção para a ideia de que é o homem que constrói o seu destino e de que todas as ações acarretam consequências.

Análise da Cena X do Ato I de Frei Luís de Sousa

Assunto: saída precipitada das personagens da casa
a) Jorge e Telmo acompanham as senhoras;
b) Manuel de Sousa fica sozinho em cena e seguirá depois.

Análise da Cena IX do Ato I de Frei Luís de Sousa

Assunto:
a) Telmo traz a notícia da súbita chegada dos governadores de Lisboa (à exceção do arcebispo, que ficou hospedado n convento de Almada);
b) Manuel de Sousa sente-se enganado por eles, mas não o apanharam desprevenido.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Vida de Manuel de Sousa Coutinho

Antes de ser frade, chamava-se Manuel de Sousa Coutinho, nascido em Santarém cerca de 1555. Cavaleiro da Ordem Militar de Malta, Manuel de Sousa foi aprisionado por piratas e esteve algum tempo cativo em Argel (1576-77?), onde teria conhecido outro cativo ilustre, Cervantes. Por volta de 1584-86, de regresso a Portugal depois de dois anos passados em Valência, casou com D. Madalena de Vilhena, viúva de D. João de Portugal, desaparecido com D. Sebastião em Alcácer Quibir. Em 1599, foi nomeado capitão-mor de Almada. Em 1600, lançou fogo a uma das suas casas, para impedir que ali se hospedassem os governadores do Reino em nome do rei Filipe de Espanha, fugidos da peste que grassava em Lisboa. A causa do incêndio assenta em razões pessoais e não em hostilidade ao rei castelhano, de quem até recebera, em 1592, uma recompensa de 200$000.
Em 1613, quando já lhes falecera a única filha, Manuel e D. Madalena seguiram o exemplo recente dos Condes de Vimioso, professando ambos, ele no convento de S. Domingos de Benfica e ela no convento, dominicano também, do Sacramento. Sobre esta sua decisão de professar, entre várias opiniões que corriam, o primeiro biógrafo de Frei Luís de Sousa, Frei António da Encarnação, elegeu a seguinte e pouco verosímil versão: um peregrino trouxera a nova inesperada de que D. João de Portugal, desaparecido trinta e cinco anos atrás, vivia ainda na Terra Santa; assim, a vida em comum de Manuel e D. Madalena tornara-se impossível, pois este segundo casamento era nulo e insustentável. Foi esta versão que constituiu o ponto de partida do Frei Luís de Sousa.
No convento, levou uma vida austera e dedicou-se à escrita, tendo desempenhado também a função de enfermeiro – ele que fora guarda-mor da Saúde de Lisboa. Da sua pena saiu a obra Vida de Frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga. Ainda se dedicou à ordenação e redação da História de S. Domingos particular do Reino e Conquistas de Portugal, um conjunto de monografias sobre os conventos dominicanos do país. Finalmente, escreveu por incumbência de Filipe III uns Anais de D. João III, publicados por Alexandre Herculano em 1844. Consta que terá escrito ainda outras obras, que se perderam.
Faleceu em 1632.

Análise da Cena VIII do Ato I de Frei Luís de Sousa


Assunto: diálogo entre Madalena e Manuel de Sousa, durante o qual aquela o tenta demover da decisão de se mudarem para o palácio de D. João e este se mostra inabalável.


Caracterização das personagens

Manuel de Sousa:
- sempre respeitou D. João de Portugal;
- não teme o passado;
- sereno e decidido (observe-se a sua linguagem);
- forte;
- patriota: “Há de saber-se no mundo que ainda há um português em Portugal.” (pleonasmo);
- amor à pátria e à liberdade;
- desrespeito pelos argumentos da esposa, que considera “caprichos”, “agouros”, “vãs quimeras de crianças”, preferindo magoá-la a esquecer os seus princípios;
- inabalável e firme nas suas decisões;
- crente em Deus: “Não há senão o temor a Deus”;
- ironia das repetições dos pronomes num discurso duplo para o espectador: “E o presente, esse é meu, meu só, todo meu…”;
- é o modelo do herói clássico:
. age segundo a razão;
. orienta-se por valores aceites como universais:
- a honra cavalheiresca;
- o culto do dever;
- a lealdade;
- o patriotismo;
- a liberdade.

D. Madalena:
- obediente ao marido: “eu nunca me opus ao teu querer, nunca soube que coisa era ter outra vontade diferente da tua; estou pronta a obedecer-te sempre, cegamente, em tudo”;
- amargurada e angustiada;
- aterrorizada por constantes agouros e pelo passado: “… que vou achar ali a sombra despeitosa de D. João, que me está ameaçando com uma espada de dous gumes… que a atravessa no meio de nós, entre mim e ti e a nossa filha, que nos vai separar para sempre…”;
- gradação crescente e hipérbole dos seus temores – menciona todas as preocupações e profetiza mesmo a morte: “(…) a violência, o constrangimento de alma, o terror (…) viu ser infeliz, que vou morrer (…) sem que todas as calamidades do mundo venham sobre nós.”;
- convicta, até ao final, de que consegue demover o marido;
- é o modelo da heroína romântica:
. vive obcecada pelos fantasmas do passado;
. age pelo coração, pelo sentimento.

Concretiza-se nestas cenas a ideia de que, em Madalena, a contradição entre a felicidade aparente e a desgraça íntima revela uma consciência moral atormentada pela imagem sempre obsessivamente presente de D. João, mordida pelo remorso proveniente da consciência de pecado. Motivações de ordem psicológica e moral profundamente enraizadas na psicologia desta personagem, movimentada dentro do quadro de uma sociedade cristã, onde o matrimónio é um vínculo indissociável que só a morte poderá quebrar, conduzem a reações e ao comportamento desta figura, cheia de ambiguidades, tão rica, tão modelada, “mulher e muito mulher”, forte no amor, na paixão por Manuel de Sousa, fraca perante os agouros, os presságios, os indícios de “uma grande desgraça” iminente, terna, lutando até ao fim pela felicidade, procurada mas nunca alcançada plenamente, rendida contra vontade perante o irremediável Destino que a destrói, liquidando todos os sonhos de felicidade neste Mundo, junto do homem que amou. As reticências são uma abertura pela qual os espectadores observam o seu íntimo conflito de consciência.

NOTAS:

1.ª) Existe um contraste nesta cena entre a linguagem serena, decidida, de Manuel de Sousa e a de D. Madalena, hesitante, titubeante, emotiva e excitada. Estão frente a frente dois mundos: o universal e o individual; estão frente a frente dois tempos: o presente e o passado; um terá de vencer. Ela tem um discurso sentimental, marcado por emoções violentas. De acordo com a época em que vive, é submissa ao marido, apelando ao seu coração para o dissuadir, mas ele tem um discurso racional, mostrando-se forte e seguro, impondo a sua decisão, baseado em argumentos sólidos.

2.ª) As duas personagens vivem, pois, um conflito dominado pelo tempo. Neste campo, a palavra caprichos tem um significado diferente para ambos. Para Manuel de Sousa, trata-se de uma teimosia incompreensível; para D. Madalena, trata-se de uma questão de vida ou de morte, um dilema fatal. Um minimiza a situação, o outro empola-a.

3.ª) Manuel de Sousa desvaloriza os argumentos da esposa. De facto, D. Madalena argumenta com base na emoção, condicionada pelo medo e pelo terror de que a figura de D. João interfira na felicidade da família. Os seus argumentos são óbvios: pressente que não vai ser feliz e pressente que irá encontrar, na outra casa, a sombra despeitosa de D. João. O marido considera que esta argumentação não é razoável, tratando-se de um mero capricho, causado pela “fraqueza de acreditar em agouros”. Pelo contrário, ele mostra ser racional e pragmático. No final, chama D. Madalena à razão e lembra-lhe a sua condição e as responsabilidades que tem, o que implica que tenha um comportamento digno e firme, visto que a situação assim o exige.

4.ª) Os argumentos de Manuel de Sousa para contraditar a esposa e afastar os seus receios são os seguintes:
- não há outro lugar para onde ir, de repente;
- não lhe custa viver onde viveu D. João com D. Madalena;
- ela não deve acreditar em agouros; a única crença que deve ter é em Deus;
- nada tem a temer porque nunca pecou;
- não deve recear a perseguição por parte da alma de D. João.

5.ª) A afirmação de Manuel de Sousa de que “não há espectros que nos possam aparecer senão os das más ações que fazemos” significa que apenas se devem temer os erros que se cometem conscientemente e mostra que desconhece a motivação profunda de D. Madalena para recusar mudar para o palácio de D. João.

6.ª) A alternância de tratamento de D. Madalena (senhora / tu) explica-se assim: no primeiro caso, realça-se a sua condição social – Manuel de Sousa pretende mostrar severidade para chamar a sua mulher à razão e aos seus deveres de membro da aristocracia; no segundo, a sua situação de esposa – ele manifesta ternura e compaixão pelo sofrimento da mulher (“Minha querida”).

7.ª) Na sua fala final, Manuel de Sousa reitera a sua intenção de dar uma lição aos tiranos e um exemplo ao povo, afirmando que se tratará de algo que os há de «alumiar». Este verbo pode ser interpretado de duas formas: por um lado, com o sentido de “dar luz”, revelando a decisão de incendiar o próprio palácio (cena XI); por outro, com o sentido conotativo de “esclarecer”, como um incentivo à oposição e à recusa da submissão e tirania.

8.ª) A frase “Há de saber-se no mundo que ainda há um português em Portugal” significa que nem todos os portugueses aceitaram o domínio filipino e explica a insurreição de Manuel de Sousa, bem como o seu gesto de rebeldia e desobediência.

9.ª As figuras dos esposos apresentam traços psicológicos que se opõem claramente:
Manuel

Madalena
- Razão
- Honra
- Fidelidade ás suas ideias
- Firmeza
- Patriotismo
- Luta pela liberdade e pela independência

- Coração
- Temores e agouros permanentes
- Pressentimentos fatais
- Fragilidade
- Descontrolo emocional


Elementos trágicos (cenas 7 e 8)

Agón de D. Madalena:
- com Manuel de Sousa:
Manuel de Sousa, no regresso de Lisboa, resolve incendiar o seu palácio, para não hospedar os governadores Luís de Moura, o conde do Sabugal, o conde de Santa Cruz, “que tomaram este incargo odioso… e vil, de oprimir os seus naturais em nome dum rei estrangeiro”. O arcebispo já estava alojado no convento dos domínicos de Almada.
Tomando esta atitude dos governadores como opressão, prepara-se para dar “uma lição aos nossos tiranos que lhes há de lembrar,… um exemplo a este povo que os há de alumiar”, numa frase ambígua e profética. Para não “sofrer esta afronta”, diz, “é preciso sair desta casa”.
D. Madalena interroga-se, aterrada, diante do inevitável (voltar de novo para o palácio onde vivera com D. João), acerca do novo local de habitação. É a partir desta premente necessidade de mudar de residência que se manifesta o conflito de D. Madalena com Manuel de Sousa. As razões de D. Madalena são óbvias:
1.ª) “a violência, o constrangimento de alma, o terror com que eu penso em ter de entrar naquela casa”;
2.ª) “parece-me que é voltar ao poder dele, que é tirar-me dos teus braços, que o vou encontrar ali”;
3.ª) “vou achar ali a sombra despeitosa de D. João, que me está ameaçando com uma espada de dous gumes… que a atravessa no meio de nós, entre mim e ti e a nossa filha, que nos vai separar para sempre”;
4.ª) “sei decerto que vou morrer naquela casa funesta, que não estou ali três dias, três horas, sem que todas as calamidades do mundo venham sobre nós”.
        Por fim, um pedido ansioso:
5.ª) “Meu esposo, Manuel, marido da minha alma, pelo nosso amor to peço, pela nossa filha… vamos seja para onde for, para a cabana de algum pobre pescador desses contornos, mas para ali não, oh, não!...”.
Ouvem-se as lágrimas, sente-se o sofrimento íntimo e atroz nestas palavras proféticas, dolorosas e ambíguas, carregadas de duplo sentido, cheias de motivações profundas, claras apenas para D. Madalena, só obscuras para Manuel de Sousa, desconhecedor do mistério e do segredo nelas contido.
Por isso, Manuel de Sousa, a princípio, interpreta esta repugnância como «capricho» bem feminino, e leva-a à conta de «fraqueza de acreditar em agouros». Se o coração e as mãos de D. Madalena «estão puras», colo ele crê, em sua boa fé, então «não há espectros que nos possam aparecer». Espectros só os das «más ações». Tudo isso são «quimeras de criança». Por fim, chama-a à razão e lembra-lhe as responsabilidades que ela tem, por si e pelos antepassados: «Vamos, D. Madalena de Vilhena, lembrai-vos de quem sois e de quem vindes, senhora…».
Vencida, mas não convencida, nada mais adiantará para D. Madalena perante o irremediável: incendiado o palácio de Manuel de Sousa, vê-se forçada, muito a contragosto, a mudar de residência, a regressar a casa de D. João de Portugal.
- com D. João de Portugal: manifesta-se na relutância de voltar a viver sob o mesmo teto em que fora (não o era ainda?) esposa de D. João, e nas razões que apresenta (I, 7 e 8).

▪ A presença do Destino, que estabelece um clima de fatalidade que paira sobre as personagens.

▪ Os agouros e pressentimentos de destruição e morte, como o da espada, que sufocam D. Madalena.

▪ O pathos de D. Madalena


Características românticas
. crença em Deus;
. nacionalismo e patriotismo;
. interioridade / sensibilidade;
. adequação da linguagem às personagens: coloquialidade e emotividade – reticências, pausas, exclamações, interjeições, repetições;
. Manuel de Sousa representa o herói romântico que luta pela liberdade e pela pátria, contra a tirania;
. D. Madalena é a figura romântica da mulher dominada pelo sentimento (medo, culpa, agouros, terror…).

Análise da Cena VII do Ato I de Frei Luís de Sousa


Assunto: chegada de Manuel de Sousa com a decisão de partir, com a família, para o palácio de D. João, em virtude de os governadores castelhanos quererem hospedar-se no seu palácio.


Estrutura interna da cena

1.ª parteChegada de Manuel de Sousa decidido a abandonar o seu palácio.

A chegada de Manuel de Sousa não seria, só por si, um acontecimento imprevisto, se não fossem certas circunstâncias presentes (as desta cena até ao final do ato) e passadas, como, por exemplo, a sua demora em Lisboa para além do que prometera a D. Madalena: «prometeu de vir antes de véspera e não veio; que é quási noite, e que já não estou contente com a tardança” (I, 3). A hora de véspera correspondia às seis horas da tarde; “quási noite”, em agosto, seria pelas nove. D. Madalena presume a ocorrência de impedimentos graves, para Manuel de Sousa faltar à palavra dada. Manda, por isso, chamar Frei Jorge, o qual a põe ao corrente do que lhe “mandaram dizer em muito segredo de Lisboa”: os governadores, para fugirem à peste, resolveram vir para Almada e escolheram o palácio de Manuel de Sousa para “aposentadoria”.

Caracterização de Manuel de Sousa:
. nobre;
. agitado e nervoso: mover-se em várias direções e dá ordens a diferentes personagens;
. autoritário: “Façam o que lhes disse”;
. decidido e determinado: “nós forçosamente havemos de sair antes de eles entrarem”;
. caráter inflexível;
. precipitado;
. audaz e corajoso;
. culto, de acordo com o seu estatuto social: o uso do latim «mea culpa» e «pecavi»;
. belo e nobre, qualidades que, aliadas à inteligência e à cultura universitária, o tornam invejado pelos poderosos.
Manuel de Sousa informa as outras personagens da sua decisão de saírem daquela casa, naquela mesma noite, antes da chegada dos governadores. Tenso e inquieto, mostra-se revoltado e indignado porque os governadores ao serviço de Espanha querem hospedar-se no seu palácio e ele, como patriota, opõe-se a esse propósito. A resolução imperativa e irremediável está presente nesta fala: «É preciso sair desta casa, Madalena”. Ora, a expressão «é preciso» marca a fatalidade, combinada com a irreversível imediatez do advérbio: «sair já».
Por outro lado, a casa é o edifício, mas também o símbolo da família, a própria família. Parece que o Destino fala pela boca de Manuel de Sousa, que lhe vai pegar na palavra, a ele que pensa agir apenas pelo patriotismo e na qualidade de senhor da sua própria casa, para o empurrar, numa autêntica reviravolta da Fortuna, para uma situação equívoca, em casa alheia.

Tempo
Partindo das informações contidas na cena, podemos concluir que a ação decorre pelas oito horas do dia 28 de julho de 1599, de noite: “É noite fechada.”; “são oito horas”.
A mudança do «fim da tarde» para «noite fechada» está de acordo com o que vai acontecer, quer na família, quer no palácio; neste, permite um final espetacular e simbólico.

2.ª parteReações das personagens à decisão de Manuel de Sousa.
. Madalena:
- inquieta;
- receosa;
- preocupada;
- pressente desgraças;
- procura chamar o marido à razão e demovê-lo, temendo a vingança dos governadores.
. Maria:
- orgulhosa;
- contente;
- vibrante;
- apoia totalmente o pai.
. Frei Jorge:
- mediador de conflito (concordando com D. Madalena, aconselha prudência; concordando com Manuel, aceita a mudança de morada;
- assume a função de coro, aconselhando as personagens.

3.ª parteDecisão de mudar a família para o palácio de D. João de Portugal.

Esta mudança é absolutamente necessária ao desenrolar dos acontecimentos, dadas as circunstâncias. A Fatalidade parece falar pela boca de Manuel (“… a única parte para onde poderemos ir…”): aquela era, de facto, a única saída, a única alternativa, perante o aperto em que as personagens parecem encurraladas.

Postura e retrato de Manuel de Sousa
Ao longo da cena, a postura e o estado emocional de Manuel de Sousa alteram-se. Inicialmente, mostra-se agitado e nervoso, mas, à medida que a cena se desenrola, vai ganhando tranquilidade, para não assustar a mulher e a filha, mas mantém a decisão e a determinação de agir e com rapidez.
Manuel de Sousa, quer no discurso quer nas ações, mostra-se um homem honrado, patriota, valente e corajoso, ao enfrentar e insurgir-se contra o poder espanhol, pretendendo dar-lhe uma lição exemplar (a eles e a “este escravo deste povo que os sofre”), pois essa rebeldia poderia acarretar uma punição severa. Assim sendo, essa coragem vive de mãos dadas com o patriotismo e a defesa da liberdade. De facto, quando se recusa a acatar as ordens dos governadores, mostra que não aceita o domínio filipino e a união com Espanha. Como não pode agir a nível nacional, decide fazê-lo a título particular, a nível da sua casa.

Reação das personagens

A reação das personagens é novamente diferenciada:
- Maria: exulta com a decisão do pai, que apoia, elogiando o seu patriotismo;
- Frei Jorge: apoia também a decisão, mas aconselha o irmão a ser prudente;
- D. Madalena: a reação desta personagem varia ao longo da cena. Assim, no início mostra-se inquieta com a decisão do marido, alertando-o para as consequências de atos imoderados, temendo a reação dos governadores. Porém, quando fica a saber que Manuel de Sousa quer mudar a família para o palácio de D. João, fica apavorada, como se pode constatar pela sua linguagem repleta de reticências, pausas, interrupções, hesitações, repetições (“Ouve… ouve…”) e no pedido para ficar só com o marido na tentativa de o demover. De facto, inicialmente, controla o pânico, com dificuldade, para não atemorizar a filha, por isso espera que esta saia para reagir. As razões dos eu terror são óbvias e plenamente justificadas.

Dimensão simbólica da atitude de Manuel de Sousa

As atitudes de Manuel de Sousa são de antipoder. Tendo em conta que, em 1844, ano da publicação de Frei Luís de Sousa, Portugal era governado pela ditadura de Costa Cabral, o gesto de revolta da personagem pode simbolizar (e assim foi entendido na época, por isso o poder vigente proibiu a representação da peça) a revolta contra esse governo cabralista.

Análise da Cena VI do Ato I de Frei Luís de Sousa

● Nesta cena, de extensão muito reduzida, Miranda anuncia a chegada de Manuel de Sousa.


● Por outro lado, nela é revelada a doença de Maria, que manifesta mais um sintoma de tuberculose, a acuidade auditiva e visual: “É extraordinária esta criança; vê e ouve em tais distâncias…”. Os tuberculosos possuem uma acuidade especial ao nível da visão e da audição.


Papel de Frei Jorge

Nesta cena, Frei Jorge é o mensageiro portador de notícias: é por ele que D. Madalena sabe que os governadores que representam o rei espanhol se pretendem alojar no palácio de Manuel de Sousa.
Ocasionalmente, Frei Jorge cumpre a função/o papel semelhante à do Coro da tragédia clássica, enquanto conselheiro (revelando moderação e sensatez), portador de notícias, veículo de expressão de temores e sinais (indícios) do que o futuro poderá trazer.


Elementos trágicos da cena

Agón de Maria:
- com o pai: a hipótese de falta de patriotismo do pai aventada na cena 3 não tem fundamento;
- com os governantes de Lisboa (I, cena 5):
1. a razão de Maria é simples e sábia: os governantes ilegítimos, no momento das desgraças provocadas pela peste, fogem do meio do povo; o rei natural, «pai comum de todos», fica junto do seu povo, «onde a miséria fosse mais e o perigo maior, para atender com remédio e amparo aos necessitados». E acrescenta: «Eu entendia, se governasse, que o serviço de Deus e do rei me mandava ficar…»;
2. por isso, no momento em que o pai resolve lutar, à sua maneira, contra os tiranos, também ela resiste à tirania e lança a ideia de lutar e organizar a defesa, para que os governadores não entrem no seu palácio: «Fechamos-lhes as portas. Metemos a nossa gente dentro; o terço de meu pai tem mais de seiscentos homens, e defendemo-nos. Pois não é uma tirania?... E há de ser bonito! Tomara eu ver seja o que for que se pareça com uma batalha».

Presságio/indício: na sua última fala, Frei Jorge expressa a sua preocupação com a saúde de Maria, podendo presumir-se que ela não irá resistir à tuberculose.

Análise da Cena V do Ato I de Frei Luís de Sousa

Surgimento das personagens em cena

As personagens não surgem todas em cena em conjunto, mas de forma gradual. Primeiro, Madalena e Telmo; depois, Maria; nesta cena, Frei Jorge; a seguir, Manuel de Sousa. Esta sucessão corresponde ao que se deveria passar no primeiro ato de uma tragédia – prólogo –, em que se apresentam as personagens e se mostra o conflito latente entre elas.


Assunto da cena – notícias trazidas por Frei Jorge:
. saída dos governadores de Lisboa;
. intenção de se hospedarem na casa de Manuel de Sousa e D. Madalena.

Entre 1598 e 1602, houve peste em Lisboa. As notícias trazidas por Frei Jorge contribuem diretamente para o desenvolvimento do conflito. De facto, os governadores tencionam sair de Lisboa, para fugirem à peste, e instalar-se em Almada, na casa de Manuel de Sousa.


Reações das personagens

a) Maria

Maria, graças ao seu temperamento juvenil e gosto pela aventura, manifesta todo o seu patriotismo e considera a intenção dos governadores um ato de cobardia, visto que abandonam o povo, deixando-o entregue à peste e à miséria, e um ato de tirania que deve ser combatido pelo exército do seu pai.
Por outro lado, revela um grande sentido cívico e grande sensibilidade para com as injustiças: ela não aceita que os governadores, que deveriam zelar e cuidar do povo e do seu bem-estar, o abandonem à sua sorte, para se protegerem.
Relativamente a recebê-los em casa, rejeita impetuosamente essa hipótese, defendendo que se deve pegar em armas para os combater. Esta é uma visão romântica do poder e das reais forças das partes em conflito.

b) D. Madalena

D. Madalena reage à notícia de forma mais comedida, mas não deixa de se mostrar indignada com a situação, que considera uma desconsideração pelas senhoras da sua casa.
Por outro lado, perante o sebastianismo da filha, que defende o regresso de D. Sebastião, no qual acredita convictamente, fundamentando a sua posição com a crença do povo, mostra a sua descrença, apoiando-se em elementos mais concretos, isto é, nos relatos dos tios Frei Jorge e Lopo de Sousa, e defende que as crenças do povo são ilusões.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Missa do galo

Primitivamente, havia apenas uma missa, que se celebrava no dia 25 de dezembro, na igreja de S. Pedro. Em meados do século V, começou a rezar-se uma outra missa, numa capela em Roma, chamada Santa Maria do Presépio, construída à imagem da gruta de Belém, e que se celebrava ainda de noite, mas quase ao romper do dia 25, quando os galos começavam a cantar. Daí surgiu a designação missa do galo.
Mais tarde, surgiu uma terceira missa, chamada missa da aurora, dedicada à mártir Santa Anastácia de Sírmio, cujo aniversário ocorria a 25 de dezembro. Esta missa foi intercalada entre a da noite (a missa do galo) e a do dia (a missa em S. Pedro), sendo a missa do galo progressivamente antecipada até à meia-noite. No século VIII, espalhou-se o uso das três missas no dia de Natal.

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