Ofício
Ofício
Os poemas que não fiz não os fiz
porque estava
dando ao meu corpo aquela espécie
de alma
que não pôde a poesia nunca
dar-lhe
Os poemas que fiz só os fiz porque
estava
pedindo ao corpo aquela espécie de
alma
que somente a poesia pode dar-lhe
Assim devolve o corpo a poesia
que se confunde com o duro sopro
de quem está vivo e às vezes não
respira
Este
poema, da autoria de Gastão da Cruz, poeta, crítico literário, escritor,
encenador e tradutor português, nascido em 1941, em Faro, e falecido em 2022,
em Lisboa, aborda a questão da criação poética.
O
título – “Ofício” – remete para a ideia de trabalho, profissão, rotina. Deste
modo, escrever poesia é apresentado no texto como um trabalho, um ofício, e não
uma mera atividade criativa. Por outro lado, trata-se de um ato ligado ao
viver, ao sentir e à procura de sentido entre corpo e alma. O «eu» poético não
perceciona a escrita como «simples» passatempo, mas antes como um “ofício vital”,
que exige sacrifício e entrega. Ou seja, o título valoriza a poesia como tarefa
de vida, como luta constante entre expressão e introspeção, entre matéria e
espírito.
O
primeiro dos três tercetos alude aos poemas que o sujeito lírico não escreveu,
justificando o facto com uma necessidade que era mais premente: espiritualizar
o corpo, dando-lhe “uma espécie de alma”, o que aponta para a ideia de que
possuir essa alma é mais importante do que aquilo que a poesia lhe pode
proporcionar. Neste sentido, esta é apresentada como insuficiente, pois não
pode dar ao corpo do poeta aquilo que o seu corpo necessita: uma alma mais
visceral, mais viva, “aquela espécie de alma / que não pôde a poesia nunca
dar-lhe”. A repetição do verso 1 sugere precisamente a tentativa de justificar
a ausência der criação poética – ele estava ocupado com algo mais importante, mais
essencial.
O
segundo terceto, ao contrário mas em paralelo com o segundo, refere-se aos
poemas que o sujeito poético escreveu e apresenta, igualmente, a justificação
para tal. De facto, nesta estrofge, há uma inversão lógica da anterior: desta
vez, ele escreve, ele cria poesia porque necessita de algo. Igualmente em
contraste com a estrofe precedente, agora é o corpo quem necessita de alma, e o
«eu» procura-a através da poesia: “Os poemas que fiz só os fiz porque estava /
pedindo ao corpo aquela espécie de alma / que somente a poesia pode dar-lhe”. A
alma, que antes o corpo recebia fora da poesia, agora é procurada dentro dela.
Assim, a poesia aparece como o único meio de transmitir ao corpo uma certa
essência espiritual ou transcendente.
A
partir das duas estrofes iniciais podemos concluir que a composição poética
reflete sobre a tensão entre corpo e alma, mostrando que ora um dá sentido ao
outro, ora se afasta dele, havendo uma espécie de duas formas de «alma»
evocadas: uma, que o corpo recebe e é exterior à poesia, e a outra, que o corpo
só pode receber através da poesia. Assim, o corpo é simultaneamente recipiente
e agente dessa busca espiritual. Quando o «eu» poético está em busca de dar
alma ao corpo (primeira estrofe), não escreve. Por seu turno, quando o corpo
carece de alma, é a poesia que pode supri-la (segunda estrofe). Deste modo, a
relação que existe entre corpo e alma é uma relação de interdependência, dado
que ambas as dimensões coexistem em tensão e se alimentam mutuamente.
Por
outro lado, nas duas estrofes iniciais existe um paralelismo entre “Os poemas
que não fiz” e “Os poemas que fiz” que dá origem a uma estrutura especular, que
serve vários propósitos. Em primeiro lugar, mostra o equilíbrio instável entre
criação e experiência: há momentos em que o viver impede o escrever e outros em
que a escrita é a forma essencial de viver. Em segundo lugar, possibilita
contrastar a procura de alma e a ausência de escrita e a necessidade de
escrever para recuperar sentido ou alma. Por último, reforça a circularidade do
processo poético: viver e escrever poesia são duas faces da mesma moeda, ou
seja, uma não existe sem a outra, mas não coexistem plenamente em simultâneo.
O
terceiro terceto tem um caráter conclusivo ou demonstrativo, como o mostra o
uso inicial de «Assim». Há um ciclo: o corpo, que deu ou recebeu algo da
poesia, posteriormente devolve. A poesia é comparada ao “duro sopro”, algo
essencial, vital, mas difícil, que funciona como uma metáfora da própria vida e
do processo de criação poética. O nome «sopro» remete para a respiração, sinal
de vida, mas o adjetivo que o qualifica («duro») associa-se às ideias de esforço,
resistência, trabalho. Mas que sopro duro é esse? A tarefa da criação poética,
de traduzir por palavras a existência? Viver e escrever são atos de
resistência, que implicam esforço, sacrifício, trabalho aturado. O verso final
é profundamente paradoxal: estar vivo sem respirar sugere um sofrimento silencioso,
uma existência angustiada, sem paz e alívio.
Curiosamente,
no poema, a poesia possui um papel ambivalente, mas crucial. Por um lado, é
limitada, dado que não pode dar ao corpo uma determinada alma, que apenas a
experiência vivida permite. Por outro lado, é indispensável, já que é o único
meio de o corpo obter outra «espécie» de alma. Assim, a poesia funciona como
uma espécie de mediadora entre corpo e espírito, entre o mundo real e o mundo
interior. A poesia é o «sopro» necessário à vida, mesmo que aquele seja difícil,
árduo, duro – como o de quem vive sem fôlego. A arte poética configura uma
forma de respirar quando a existência se torna sufocante.
Em
suma, o presente poema de Gastão Cruz reflete sobre o ato de criação poética,
apresentando-o como uma relação entre corpo e alma, entre vida e arte. A
escrita é um processo dinâmico e aturado, um ofício vital, por vezes doloroso,
como o “duro sopro de quem está vivo e às vezes não respira”, em que o corpo
ora busca uma alma que a poesia não fornece, ora clama por uma alma que só a
poesia pode oferecer. Poesia e existência alimentam-se mutuamente – ambas são
indispensáveis, ambas são incompletas sozinhas.