Português

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Biografia / Vida de Aquilino Ribeiro


             Aquilino Ribeiro nasceu em Sernancelhe, freguesia de Carregal de Tabosa, distrito de Viseu, na Beira Alta, a 13 de setembro de 1885 e faleceu em Lisboa, a 27 de maio de 1963, após uma doença rápida, tendo os seus restos mortais sido trasladados para o Panteão Nacional em setembro de 2007, 44 anos após a sua morte. Era filho de Mariana do Rosário Gomes e do padre Joaquim Francisco Ribeiro e teve uma infância, ao que se sabe, de uma criança bastante travessa, a tal ponto que ainda recentemente era possível encontrar nessa zona quem tivesse ouvido contar histórias picarescas de um menino destinado pela família à vida de sacerdócio.

            A sua vida, tal como a de muitas das personagens a que deu vida, foi movimentada e aventurosa. Aos 10 anos, mudou-se com os pais para a aldeia de Soutosa, concelho de Moimenta da Beira, onde passou grande parte da infância. Estudou na escola de Soutosa e, seguidamente, no Liceu de Lamego, onde fez os estudos preparatórios, mais tarde em Viseu, em 1902, onde estudou Filosofia e Teologia. A pedido da sua mãe, entrou para o Seminário de Beja, onde fez apenas o primeiro e parte do segundo ano de Teologia, dado que não vocação religiosa. Em 1904, foi expulso do seminário, depois de ter dado uma réplica cortante a uma acusação do Padre Manuel Ançã, um dos dois irmãos que dirigiam a instituição na época.

            Em 1906, encontramo-lo em Lisboa, onde inicia a sua longa carreira de jornalista, com artigos de opinião (e princípio de um romance em folhetins – A Filha do Jardineiro) publicados em jornais como A Vanguarda, uma publicação republicana, o Jornal do Comércio, O Século (do qual foi, mais tarde, correspondente em Paris), A Pátria, Ilustração Portuguesa e o Diário de Lisboa. Dedicou-se também à tradução (traduziu, por exemplo, Il Santo, de Fogazzaro) e à redação, em colaboração com José Ferreira da Silva, do folhetim A Filha do Jardineiro, uma ficção simultaneamente de propaganda republicana e de crítica corrosiva às figuras do regime monárquico, incluindo o próprio rei D. Carlos. Além disso, foi um dos fundadores da Seara, onde também colaborou, escreveu em revistas como Homens Livres e Lusitânia e, juntamente com outros intelectuais seus amigos, entre os quais Raul Proença, constituiu-se como um dos animadores da publicação do Guia de Portugal.

            Verdadeiro homem de ação, um tipo social muito exaltado no início do século XX, aderiu ao movimento republicano, pelo qual se bateu, quer através da escrita, quer através da participação em iniciativas que acabaram por o levar à prisão. De facto, em 1907, foi acusado de bombista por causa do rebentamento de uns caixotes de explosivos que guardara no seu quarto e que levaram à morte de dois correligionários seus e detido na esquadra do Caminho Novo por fazer parte do Partido Republicano, de onde se evadiu em circunstâncias recambolescas, como se pode ler num volume de memórias. Chegou mesmo a correr um boato segundo o qual Aquilino teria sido, em 1908, a «terceira carabina», aliás inútil, já que os dois regicidas tinham levado a cabo a sua função de forma exemplar. Fugiu, portanto, da prisão e, após alguns meses de clandestinidade em Lisboa, refugiou-se em Paris, tendo frequentado na Sorbonne o curso de Filosofia e Sociologia. Aí, foi ensinado por mestres como George Dumas, André Lalande, Levy Bruhl e Durckeim, e contactou com a intelectualidade portuguesa que, igualmente por razõees políticas, se exilara fora de Portugal. Além disso, conheceu Grete Teidemann, a sua primeira mulher, com quem foi residir e casou na Alemanha, tendo o seu primeiro filho nascido, porém, em Paris. Visitou brevemente Portugal em 1910, depois de proclamada a República, tendo regressado em definitivo no ano de 1914, depois da eclosão da Primeira Guerra Mundial, deixando incompleto o curso de Filosofia, que abandonou já depois de se ter matriculado no quarto ano, como se pode comprovar pela consulta dos registos guardados no Centre d’Accueil et de Recherche des Archives Nationales de Paris.

            Em Portugal, nunca descurando o seu trabalho de escritor (escrita ficcional e cronística para a imprensa periódica, uma atividade que desenvolveu de forma regular ao longo de toda a vida), exerceu a carreira de professor no Liceu Camões durante três anos e foi, posteriormente, segundo bibliotecário – mais tarde conservador – na Biblioteca Nacional, para onde entrou a convite do amigo Raul Proença. Esta função, entre outras vantagens, deu-lhe a possibilidade de alimentar o seu amor pelos livros antigos e raros, um gosto que o levou a produzir trabalhos de investigação, publicados, por exemplo, nos Anais das Bibliotecas e Arquivos, e que se refletiu também na sua produção literária, de que é exemplo o seu primeiro romance, A Via Sinuosa. Além disso, como já foi referido anteriormente, fez parte de um grupo de intelectuais que desenvolveu uma significativa atividade cívica e cultural que teve a sua expressão mais visível na revista Seara Nova, uma publicação importantíssima quer na difusão dos ideais republicanos, quer na evolução da conturbada vida política da Primeira República.

Foi demitido do cargo de bibliotecário em 1927 novamente por razões políticas. Desta vez, participou na revolta frustrada contra a ditadura militar que, entretanto, fora instaurada no país após o golpe de 28 de maio de 1926. Fugiu para a Beira Alta e, em seguida, refugiou-se de novo em Paris – segundo exílio. Quando, clandestinamente, regressou a Portugal, escondeu-se em Soutosa. Entrementes faleceu a sua esposa. Em 1928, voltou a participar numa iniciativa antirregime (o chamado movimento do regimento de Pinhel), mas foi capturado e levado para a prisão do Fontelo, em Viseu, um edifício que ainda hoje pode ser visto na cidade. Na companhia de António Mota, conseguiu voltar a evadir-se serrando as grades do cárcere enquanto numa grafonola tocava um disco para abafar o som. Escondeu-se nas serranias beiroas e encetou uma difícil jornada que o levou de novo a Paris – terceiro exílio. Na capital francesa, casou em segundas núpcias [a primeira esposa havida falecido em 1927] com D. Jerónima Dantas Machado, filha do presidente da República Bernardino Machado, também homiziado aí depois de deposto por Sidónio Pais, e foi viver com ela para o Sul de França (Ustaritz e Baiona, onde, em 1930, lhe nasceu o primeiro filho do casal e o segundo de Aquilino). Enquanto isso, em Lisboa, em 1929, foi julgado e condenado à revelia. Viveu depois em Vigo e em Tui, cidades espanholas, até regressar clandestinamente a Abravezes, Viseu. Acabou por ser amnistiado em 1932, tendo ido residir para Cruz Quebrada.

            Acalmados os seus instintos revolucionários, embora tenha continuado a participar em ações críticas da ditadura salazarista, Aquilo Ribeiro pode, então, dedicar-se plenamente à escrita, prosseguindo a sua produção ficcional, o trabalho de tradução, o trabalho ensaístico (latu sensu) e a colaboração na imprensa, além das suas lendárias idas ao Chiado, ao final da tarde, para tertúlias à porta da Bertrand, a sua editora. Literariamente, nunca abdicou da originalidade nem alinhou com nenhum dos movimentos literários do seu tempo, desde o Modernismo (pela leitura de algumas cartas de Fernando Pessoa, ficamos a saber que Aquilino era apreciado pelo poeta) ao Presencismo, que o criticou fortemente, em especial José Régio (críticas essas publicadas em grande número na revista do movimento, a Presença), passando pelo Neorrealismo. Como foi indiciado atrás, não obstante a acalmia que a sua vida conheceu nesta época, o escritor jamais abdicou da sua consciência cívica e política, tendo continuado a criticar o regime, aderido ao MUD (Movimento de Unidade Democrática), publicado textos na imprensa diária de defesa da causa, apoiado a campanha presidencial de Norton de Matos, integrado, juntamente com outras figuras do saber, a Comissão Promotora do Voto e militado na candidatura do general Humberto Delgado à presidência da República, em 1958.

            Em 1933, o conjunto de novelas As Três Mulheres de Sansão foi galardoado com o Prémio Ricardo Malheiros, atribuído pela Academia das Ciências de Lisboa, e, em 1935, foi eleito sócio correspondente desta instituição, da qual se tornou sócio efetivo em 1957. Ao seu ativismo político soma-se a tenacidade com que, durante mais de duas décadas, lutou pela agregação forma e institucionalizada dos escritores até conseguir criar, apesar das forças políticas contrárias, a Sociedade Portuguesa de Escritores, em 1956, de que foi fundador, o primeiro presidente eleito e o sócio n.º 1. No ano seguinte, a Livraria Bertrand iniciou a edição das Obras Completas. Em 1959, foi publicado o romance Quando os Lobos Uivam, que, por causa do seu conteúdo incómodo para o poder político, que o considerou injurioso das instituições do poder, foi apreendido e o escritor processado, no entanto, em 1960, o processo foi amnistiado. Nesse mesmo ano, um grupo de intelectuais (entre os quais Francisco Vieira de Almeida, o proponente, José Cardoso Pires, David Mourão-Ferreira, José Gomes Ferreira, Maria Judite de Carvalho, Joel Serrão, Mário Soares, Vitorino Nemésio, Alves Redol, Luísa Dacosta, Vergílio Ferreira como subscritores) candidatou Aquilino Ribeiro ao Prémio Nobel da Literatura. Todos estes factos, juntamente com as homenagens que recebeu no Brasil quando lá se deslocou em 1952, o movimento de defesa que se gerou em seu torno a propósito da já citada publicação de Quando os Lobos Uivam (além da defesa formal, da responsabilidade do advogado Heliodoro Caldeira, o escritor recebe o apoio de cerca de três centenas de intelectuais portugueses, que elaboram um abaixo-assinado pedindo o arquivamento do processo e François Mauriac redigiu uma petição em seu amparo que foi assinada por figuras como Louis Aragon e André Maurois, além de ter sido publicado em vários jornais e revistas franceses) atestam o enorme prestígio que Aquilino Ribeiro possuía.

            No momento em que se preparava, nomeadamente através da Sociedade Portuguesa de Escritores, uma homenagem pública nacional, promovida por várias cidades e tendo por base a celebração do cinquentenário da publicação da obra Jardim das Tormentas, o escritor adoeceu repentinamente, vindo a falecer no Hospital da CUF a 27 de maior de 1963.

 

Bibliografia

AA. VV., Retratos para Aquilino, Câmara Municipal de Paredes de Coura, 2000.

ALMEIDA, Henrique, Aquilino Ribeiro e a Crítica, Porto, Edições Asa, 1993.

CENTRO DE ESTUDOS AQUILINO RIBEIRO (ed.), Cadernos Aquilinianos.

INSTITUTO PORTUGUÊS DO LIVRO (coord. Eugénio Rosa), Dicionário Cronológico de Autores Portugueses.

MALPIQUE, Cruz, Aquilino. O homem e o escritor. Porto. Divulgação, 1964.

MARTINS, Serafina, Aquilino Ribeiro, Instituto Camões.

MALPIQUE, Cruz, Aquilino. O homem e o escritor. Porto. Divulgação, 1964.

 

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Cona: etimologia


     A palavra cona designa, enquanto calão, o órgão sexual feminino, constituindo, por isso, um sinónimo de vagina.

    O termo provém do latim cunnus, que significava «vulva», mas também foi usado como representação metonímica de mulher pelo poeta Horácio.

    Cunnus deu origem ao português «cona», bem como ao castelhano «coño» (que pertence ao género feminino), ao italiano «conno», ao francês «con» e ao catalão «cony».

    Relativamente à origem indo-europeia, existem diferentes hipóteses, não se tendo chegado até agora a nenhuma conclusão definitiva.

domingo, 4 de setembro de 2022

Análise do poema "Profissão de fé", de Olavo Bilac


     Este poema é, no fundo, a «ars poetica» do Parnasianismo, cuja ideia básica de burilar a forma se encontra presente logo na epígrafe. É uma poesia racional, porque não é uma poesia inspirada, uma poesia que brota da alma. Fala-se em racionalização e trabalho intelectual.

    As imagens que aparecem estão ligadas ao divino pagão ou ao campo semântico do trabalhar o mármore ou o ouro. Predominam as imagens do campo semântico do artesanato, da arte escultória. As próprias divindades estão presentes, não como entidades, mas como esculturas. Chega a estabelecer-se uma oposição entre o trabalho épico e o trabalho do ourives, que ele inveja.

    Com efeito, Olavo Bilac era um poeta parnasiano, tão dotado que foi apelidado pelos seus contemporâneos e pelos críticos de «O príncipe dos poetas brasileiros». O título do poema relaciona-se com o facto de o texto apresentar o crédito estético do poeta. A expressão «profissão de fé» é de origem religiosa e é usada sempre que a Igreja católica recebe um novo membro no seu seio, constituindo ainda hoje um dos passos da chamada catequese, em cuja cerimónia o padre questiona esse novo membro se aceita Jesus Cristo como seu único senhor e salvador. Quando aceita, a pessoa faz, assim, a sua profissão de fé pública.

    Qual é a relação deste culto religioso com a escrita, com a poesia? Um poeta, quando apresenta o seu crédito estético, comunica ao seu leitor tudo aquilo em que acredita como essencial à sua atividade poética. No caso concreto do poema de Olavo Bilac, a profissão de fé estabelece um paralelismo entre o ateliê de um escultor, a oficina de um ourives e o escritório de um poeta, estabelecendo, assim, uma analogia entre três profissões. Porém, antes de levar o leitor a visitar a sua oficina de escritor, ocupa-se com a descrição da oficina das outras duas atividades. 

    Por outro lado, um dos temas abordados ao longo da composição poética é a língua portuguesa, que o poeta trata como uma deusa. Assim, ao referir-se-lhe, trata-a como alguém que a celebra diante de um altar, o que significa que o poema contém vários referências religiosas, exemplificadas pelas ideias de altar, de fé, de crença, de divindade, de celebração, etc. Neste sentido, o título é outro elemento de religiosidade.

    Enquanto parnasiano, Olavo Bilac introduz no poema elementos clássicos, entre os quais se destaca a mitologia, como atrás foi referido, ou determinado vocabulário, ou a inversão da ordem natural das palavras na frase (hipérbato ou anástrofe: «que outro a pedra corte», em vez de «que outro corte a pedra»).

    Mas qual é a ideia central do tal credo estético do poeta? Simplesmente, a escrita é trabalho, é esforço. Sem isto, não há escrita que tenha qualidade. Para demonstrar a sua «tese», o poeta vai comparar as ferramentas do escultor (o martelo, o camartelo, uma ferramenta mais pesada, pois destina-se a cortar o mármore) e do ourives (o cinzel, uma ferramenta mais delicada, vista que se destina a trabalhar pedras preciosas) à pena do escritor. Assim, ele recusa o material pesado, a construção grandiosa, monumental do ponto de vista física, preferindo aproximar a técnica do escritor aos elementos estéticos do ourives. É por isso que ele compara, de um lado, a oficina do escultor e, do outro, a oficina do ourives. Deste modo, procura mostrar que o material e as ferramentas são diferentes consoante a profissão que se exerce e o trabalho que tem de se executar.

    Além do trabalho em pormenor, que irá levar Gonçalves Crespo a chamar ao seu livro Miniaturas, Bilac quer ainda pedras raras e pequenas, como o cristal ou o ónix. É um escultório minucioso, daí que compare a pena do escritor ao cinzel do escultor. Ele imagina que a escrita é uma forma para vestir a ideia. É a velha oposição forma/conteúdo, com predomínio da primeira. É, de facto, um grande trabalho artesanal tentar colocar as ideias dentro dos limites do soneto. São várias as palavras ligadas ao campo da escultura: «pedra», «mármore», «cinzel», «ónix», «cristal», «prata», «lima, torce, aprimora, alteia», «ouro», «rubi». É esse fino trato, a elegância da delicadeza estética que o «eu» poético pretende aproximar à poesia. Mais: ele deseja sustentar-se no zelo, no tecnicismo, na minúcia do ourives para criar poesia.

    O «eu» poético começa o poema rejeitando a eloquência da arte clássica, os temas, os materiais, nomeadamente da grega. Que outro opte por isso e trabalhe dessa forma, com esse material, adote esse tipo de estética. Ele não. De seguida, afirma sentir inveja do ourives quando escreve, isto é, a sua técnica, que deseja para si e para a sua escrita, e declara que o imita. Abandona o mundo do Classicismo e abraça o que é característico da ourivesaria. É neste ponto que entra a comparação entre a pena, o seu instrumento de trabalho, e o cinzel do ourives: enquanto escritor, ele irá usá-la como o este último usa o cinzel. E desenvolve-a da seguinte forma: a pena corre, desenha, enfeita a imagem (metáfora), veste a ideia (outra metáfora), escreve com tinta azul ("Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem / Azul-celeste"), torce (como o ourives torce o metal, isto é, dá a forma à joia, como a pena dá a forma às letras). Ao terminar ("e enfim"), no «verso de ouro» (o último verso de um soneto clássico), engasta, ou seja, dá o acabamento, cuidando da rima como se se tratasse de um rubi (nova comparação). Isto também significa que a escrita exige a escolha da palavra precisa, a preocupação com a construção das frases/dos versos, com o seu polimento, para que o poema se torne um objeto preciso, semelhante a uma joia rara.

    Por outro lado, a preocupação primeira do poeta (parnasiano neste caso) prende-se com a produção de um poesia formalmente perfeita, isto é, dotada de uma linguagem elaborada, rima apropriada, sintaxe tradicional. Assim sendo, a sua preocupação central parece recair no estilo e não na profundidade das ideias e nas emoções e sentimentos. Ora, neste ponto, Bilac está a seguir um dos princípios do Parnasianismo: o da arte pela arte, ou seja, o culto da forma.

    O seu objetivo, a sua finalidade é que a poesia saia da sua oficina, onde a trabalha, sem um defeito, ou seja, perfeita, graças ao seu trabalho aturado, perseverante e minucioso ("E que o lavor do verso", o que requer tempo ("E horas sem conto passo, mudo"). O sujeito lírico dedica ao seu ofício o tempo que for necessário, por isso é que afirma que «não conta» as horas que gasta, totalmente concentrado no que está a fazer ("A trabalhar, longe de tudo / O pensamento"). Porque é que isto acontece? De acordo com o poema, a escrita, dentre todos os ofícios, é o que exige mais perícia e dedicação ("Porque o escrever - tanta perícia, / Tanta requer, / Que ofício tal... nem há notícia / De outro qualquer").

    Na estrofe 13, o «eu» associa a escrita e a poesia a uma divindade ("Por te servir, Deusa serena") e, nas seguintes, denuncia aqueles que escrevem e poetizam mal ("Blasfemo em grita surda e horrendo T Ímpeto, o bando / Venha dos bárbaros crescendo, / Vociferando...") e roga à Deusa, à Musa, que ignore esse «bando» ("Deixa-o"). Todo aquele que não se dedica ao cultivo da língua de forma aprimorada é apelidado de «infiel». Pode morrer tudo o que rodeia e é importante para o sujeito lírico, mas, desde que fique com a sua língua, sente-se feliz, mesmo que fique só e desamparado.

Análise do poema "Descrição da Vila do Recife"


     Este poema reflete sobre a sociedade de Pernambuco. O poeta fora deportado para Moçambique, mas agora regressa e vai viver para o Recife.
    A imagem da cidade que nos é mostrada é diferente da que nos é dada por Bento Teixeira, embora este já tenha criticado o elemento indígena (a língua dos índios), mas Gregório de Matos fala da sociedade propriamente dita.
    Além disso, o «eu» poético refere a invasão neerlandesa (Mauricestaad), que ocorreu entre 1624 e 1636. Apresenta uma visão portuguesa das «coisas», por exemplo quando chama ao neerlandês «ímpio», visto que professa outra fé, e «tirano», porque está a roubar o Brasil aos Portugueses.
    Outro aspeto tratado na composição é o aspeto da cidade e da população, que come pouco. Dentre a população, foca as mulheres e, a propósito, refere-se à prostituição. Por outro lado, critica o clero, porque são os padres que usam as mulheres e vivem de aparências. É curioso que Gil Vicente, o dramaturgo lusitano, aborda igualmente na sua obra estes aspetos relativos à sociedade portuguesa do século XVI.
    Em síntese, podemos afirmar que Gregório de Matos critica a sociedade da sua época em formação, fruto da Expansão.

Análise do poema "Ao padre Lourenço Ribeiro, homem pardo que foi vigário da freguesia de Passé"


     Este poema mostra bem a má vontade de Gregório de Matos para com os mulatos. O padre Lourenço era um mestiço que teve a ousadia de desdenhar publicamente de versos do próprio Gregório, que lhe responde nesta sátira.

        1. Mostra que a sociedade baiana é uma sociedade totalmente ocupada por mulatos, sem haver quase lugar para os brancos. Chega a usar expressões baixas para satirizar a sociedade baiana como «canaz», isto é, «cão grande».
    Ao gosto barroco, usa o sistema de oposições branco/mulato, coitado/atrevido, encolhido/ousado, etc. Termina com uma síntese. Este é o esquema seguido nas estrofes seguintes.

        2. Temos o mesmo esquema do anterior.
    Outra vertente crítica de Gregório dirige-se contra o clero: além de ser mulato, é padre. O nível de linguagem usado continua a ser de baixo calibre.

        3. Lembra a ascendência mestiça do padre: se da parte do pai poderia parecer branco, a mãe é claramente negra. O que importa a aparência, se o que está por baixo é negro? Mas ele é aceite, porque no Brasil a mestiçagem é bem aceite.
    Na primeira estrofe, generalizou; na segunda, começou a especificar e, na terceira, descreveu as origens do padre.

        4. Fala da família do padre e da sua atividade religiosa. Denigre o público que ouve o padre, dizendo que são negros e da sua família.

        5. Fala da ignorância do padre: nada sabe das Escrituras e o seu sermão é muito monótono.

        6. O cão é o símbolo maior de uma ordem de pregações, mas ele nunca faz sermões. O facto de ser padre resultou de um favor do Senhor, graças aos serviços da mãe.

        7/8. Fala não propriamente das prédicas do padre, mas sim da não vocação poética dele, que gostava de fazer veros.

        9. Apesar de tudo, haverá sempre alguém que defenda o mulato.

        10. Aqui fala da aparência do padre.
    Esta sátira é dirigida especificamente a uma pessoa, mas generalizando.

Análise do poema "Ao mesmo assunto"


     Este poema retrata alguém que, sendo descendente de índios, ostenta uma aparência de oriental, pela semelhança entre ambos. Como não consegue esconder a sua origem, quer radicá-lo no oriente - mascaramento da origem. Porém, a personagem é mais baiana do que oriental, apesar de ter um avô nascido «lá».
    Não obstante não se dizer claramente, pensa-se que o poema é dirigido a alguém da terra, provavelmente mestiço, que costuma criticar os portugueses.
    Gregório de Matos tem uma visão europeia do índio e do mestiço e, por isso, a sua poesia não é totalmente brasileira, embora se debruce em aspetos típicos do Brasil.

A escola do século XIX em imagens - VIII


John Frederick Lewis, Escola árabe (c. 1850)

    Embora a arte europeia tenda a representar sobretudo, como é natural e expectável, o mundo dos europeus, não faltam, a partir do Renascimento e da expansão europeia, exemplos de pinturas e outras obras artísticas que refletem a descoberta e o contacto com outros continentes, civilizações e culturas. Trata-se de um olhar, de início curioso e ocasional, que se vai tornando mais atento e sistemático à medida que as principais potências do Velho Continente constroem ou consolidam, no século XIX, os seus impérios coloniais.

    John F. Lewis, um inglês que viveu a sua infância no Cairo, registou, nesta pintura a guache e aguarela, o ambiente de uma típica maktab, a escola muçulmana que correspondia sensivelmente ao que hoje designamos por ensino básico. Os rapazes que desejassem prosseguir os seus estudos ingressariam depois numa madrassa. Umas e outras são escolas religiosas, sublinhando a ligação umbilical, também patente no mundo ocidental, entre a escola e a religião. Só que, enquanto na Europa a laicização progressiva da sociedade foi abrindo espaço à separação entre a escola pública, destinada a formar cidadãos, e as escolas da Igreja, vocacionadas para a formação do clero, no mundo muçulmano essa distinção entre religião e laicidade tem-se mostrado mais difícil e custosa.

    A pintura, de contornos difusos, mas onde não falta expressividade, foca-se nas figuras do professor, já idoso – a idade avançada é, neste contexto, um símbolo de sabedoria -, e de um dos seus alunos, que se prepara para recitar a lição. O apelo à memória, hoje tão criticado, era um elemento essencial dos sistemas de ensino mais tradicionalistas e conservadores. E será sempre fundamental, embora ninguém defenda hoje o decorar de matérias como um fim em si mesmo: a verdade é que só somos verdadeiramente conhecedores daquilo que conseguimos armazenar, de forma organizada e compreensiva, no nosso cérebro.

Análise do poema "Aos principais da Bahia chamados Caramurus"


     O nome «caramurus» foi atribuído a Diogo Álvares Correia, fidalgo português que naufragou na costa da Baía. Ao encontrar os índios, ficou assustado e puxou de uma arma, mas apenas matou uma ave, que os indígenas chamavam caramuru, deus do fogo. O português foi levado para a tribo índia e acabou por casar com Paraguaçu, filha do chefe. Esta história vai ser explorada no poema "Caramuru", de Santa Rita Durão.
    Começa aqui por especificar a genealogia dos caramurus: a linha materna ou feminina é indígena (uso da metonímia), enquanto a linha paterna ou masculina é obra do acaso: descende de uma índia com um branco reles. Isto mostra que os caramurus, apesar das suas pretensões de que são brancos, têm muito sangue índio. Isto é a síntese do poema.
    Um dos aspetos do ludismo barroco é a sonoridade das palavras indígenas.

Análise do poema "Ilha de Itaparica, Alvas areias", de Gregório de Matos


     Nesta composição poética, Gregório descreve um lugar já descrito por Manuel Botelho: a ilha de Itaparica. No entanto, a forma de concretizar a descrição é diferente, porque usa o grotesco a par de outros estilos. Esta mistura de estilos vem já da origem das artes, pois a própria pintura das cavernas misturava elementos da mitologia com elementos da Natureza (ex.: elementos da primavera com cara de deuses).
    Por outro, neste soneto sobressaem três aspetos:
        👉 louvor da paisagem;
        👉 crítica social em tom satírico;
        👉 tom encomiástico, porque louva a casa do capitão.
    A natureza do poema é, ao mesmo tempo, laudatória da ilha, satírica e encomiástica. Através da sátira, mostra a existência dessas «gentis moças» na Bahia. Se compararmos os textos literários com os documentos históricos, ambos atestam a existência da prostituição feminina. Já os jesuítas evidenciam a preocupação com este problema: as índias, tiradas do seu habitat, eram exploradas pelos brancos, mas também as negras eram aproveitadas como objeto sexual pelos «donos». Existia ainda a prostituição da mulher branca, muitas vezes originada pelo facto de os maridos terem ido morar com outra. Esta situação é mais frequente nos meios pobres e nas grandes cidades e está ligada à miscigenação racial, talvez por sele satirizada. Gregório, ocasionalmente, louva a figura feminina negra, mas isto é apenas o reflexo do petrarquismo no Barroco: louvor da mulher, que, no caso do Brasil, é a negra. Ele critica a miscigenação, sobretudo quando os negros se querem comparar aos brancos.

Análise do poema "Descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia", de Gregório de Matos


     Este poema é, no fundo, uma crónica, porque dentro da técnica da dispersão e recolha, ele descreve as pessoas que adoram meter-se na vida alheia, das pessoas metediças, dos bisbilhoteiros e boateiros.
    No primeiro terceto, sai da esfera social para falar do espírito de pequenez na cidade. É o provincianismo da Bahia; fala da quantidade populacional, salientando os mulatos, vistos por Gregório com olhos de europeu.
    O poema termina com a habitual síntese do poema barroco: "E eis aqui a cidade da Bahia". É uma crónica, porque se refere ao espírito de mesquinhez, do provincialismo, da inversão do mundo e da economia. Mas tudo isto é tratado em tom irónico. A sátira pode ser feita em tom elevado ou, por vezes, em tom vulgar.

sábado, 3 de setembro de 2022

Análise do poema "Buscando a Cristo", de Gregório de Matos


     Manuel Botelho é o poeta representativo do Barroco no Brasil, diferente dos que vimos até aqui e cuja produção é muito pequena e não ficou muito conhecida no Brasil, ao contrário da de Gregório de Matos, que foi muito popular.

    Por causa dessa sua popularidade, teve um problema semelhante ao de Luís de Camões: como não publicou nada em vida, não se sabe exatamente o que é ou não de sua autoria. Os seus poemas foram, na sua maioria, reunidos por James Amado.

    Em comum com Manuel Botelho, Gregório possui o facto de terem estudado juntos em Coimbra. A diferença é que, enquanto o primeiro escreveu versos sobre o emblema de um Barroco sério, de que Música do Parnaso é exemplo, apesar de aí encontrarmos poemas de outro caráter; o segundo, além da vertente séria, tem uma vertente satírica, que o tornou popular. Ela é de tal ordem que ele ficou conhecido por "Boca do Inferno". A sátira está muito dentro do espírito barroco (ver Fénix Renascida e Postilhão de Apolo). Assim, ele não transgride o espírito barroco e escreve poesia satírica, séria e também sacra.

    Gregório estudou em Coimbra, mas vai ser o primeiro a dar pistas sobre a sociedade brasileira. Manuel Botelho e Itaparica só falaram da riqueza da terra de forma ufanista. Por seu turno, Gregório fala da sociedade brasileira, o que faz sobretudo na vertente satírica da sua poesia.

    O texto "Buscando a Cristo" é um soneto de tema sacro, comum ao Barroco ibérico, o que evidencia sua matriz religiosa e católica.

    Apresenta as fases do próprio Cristo independentes, mas subordinadas a um todo, que é o corpo. Enumera as partes e vai-se dirigindo a cada uma: braços, olhos, pés. Isto é típico do Barroco. Usa também jogos de oposições: "Que para receber-me, estais abertos / E, por não castigar-me, estais cravados.". Mas esta oposição é aparente, porque, na realidade, há uma reiteração. Também na referência aos olhos, temos um jogo de palavras/oposições, mas igualmente aparente, porque a ideia é sempre de perdão. Isto faz parte de um certo gosto que o Barroco tem pelo ludismo, visto que deste movimento faz parte o espírito de jogo, que tem a ver com a participação do leitor, que tem de pensar para compreender o jogo. É por isto que a poesia experimental do século XX vai buscar as suas bases ao Barroco, pela forma como este pressupõe a participação do leitor. Claro que esta participação não é intencional como o é na poesia do século XX. No Barroco, a participação do leitor dá-se pelo gosto do próprio poeta em ser hermético e camuflar as suas ideias. Não parte do conceito de que o leitor é um criador, mas que o poeta é que tem recursos para dizer ou não dizer, de acordo com a ocasião.

    Outra característica barroca é o uso da gradação (ex.: "Para ficar unido, atado e firme"), que ao mesmo tempo é uma forma de recolher de elementos que ficaram mais ou menos dispersos.

    Camões escreveu o soneto "Alma minha gentil que te partiste", enquanto Gregório "Alma gentil, espírito generoso". O primeiro insere-se na sua linha temática do neoplatonismo e todo o poema gira em torno disso. Isto não aparece no poema de Gregório, que opõe mais as ideias de vida e de morte, ao passo que Luís Vaz fala de um amor que permanece mesmo depois da morte.

    A forma de tratar a figura feminina é diferente: Camões usa formas mais suaves e equilibradas; Gregório de Matos socorre-se de uma forma mais retorcida, usando oposições ("Senão por dar-te a mágoa de perder-te") e a ideia de um prazer quase erótico na vida e na morte; o amor de Camões é mais espiritual.

    Encontramos ainda em Gregório de Matos como característica barroca o espírito de imitação, próprio do Classicismo.

    Uma última nota para o facto de a oposição vida/morte se manifestar de modos diversos: em Camões, valoriza-se o amor que continua, mesmo depois da morte; em Gregório, valoriza-se a moral. 

Análise do poema "À Ilha de Maré Termo desta Cidade da Bahia - Silva", de Manuel Botelho


     Manuel Botelho de Oliveira estudou em Coimbra e foi colega de Gregório de Matos, famoso pela sua língua viperina (era chamado "Boca do Inferno") e pela beleza da sua linguagem.

    Manuel Botelho chegou a escrever um livro intitulado Música do Parnaso, que é muito curioso, porque em nenhum momento fala do Brasil. Aqui, faz jogos de palavras bem barrocos como "caavo", "anarda", por exemplo. Fala da caça ao javali, na Fonte das Lágrimas de Coimbra e de tudo, menos do Brasil. O mais curioso é que, no prefácio, afirma que escreveu o livro para mostrar que as musas, por um momento, também se fizeram brasileiras. Por outro lado, Manuel Botelho escreveu em várias línguas: português, castelhano, latim.

    Apesar de brasileiro, adquiriu uma visão de colonizador. No fim da obra, coloca um poema que é o único que se refere ao Brasil de uma forma curiosa, com os mesmos objetivos do colonizador. Ele elege não a cultura, mas a natureza brasileira. Não se refere a acontecimentos citadinos nem à mulher brasileira, mas ao pescado, à fruta, aos legumes. O seu olhar para a terra é semelhante ao do colonizador, embora haja quem veja aí uma certa dose de brasilidade. Este poema apêndice tem uma inspiração nativa e um tom ufanista.

    Silva é uma forma de composição bastante usual no Barroco.

    O poema pode dividir-se em várias partes:

        👉 Numa primeira parte, o poeta define a situação da ilha e a sua forma. Há uma quase personificação da ilha, com recurso à mitologia: Neptuno. Este trecho mostra que o Barroco denota uma herança clássica: apego às figuras da mitologia.
    Outro elemento barroco é o jogo de palavras: «mar/maré» e o uso de «marés» em várias expressões: «marés de rosas», «marés vivas», «maré de saudade». Este jogo de palavras traduz uma ideia de inconstância e amor.
    Ainda característico do Barroco é o gosto pela imagem visual: "Vista por fora é pouco apetecida / porque aos olhos por feia é parecida; / porém dentro habitada / é muito bela, muito desejada...". Temos ainda aqui presente o jogo de oposições, que continua na estrofe seguinte, com a oposição «monte/vale».
    Na sexta estrofe, temos ainda outra característica barroca: "e na desigual ordem / consiste a fermosura na desordem", ou seja, a desordem é a ordem barroca. Por exemplo, em Gregório de Matos, o Barroco manifesta-se na dispersão, isto é, todo o poema é uma manta retalhada, mas no final há uma ordem perfeita. Isto também se manifesta na arquitetura.

        👉 Numa segunda parte do poema, o «eu» poético fala dos habitantes da ilha, que são os «pescadores em saveiros». Aproveita a palavra «peixes» para expressar uma ideia que não tem nada a ver com o que está a falar: "ser pequeno no Mundo é desventura".

        👉 A partir da oitava estrofe, o poeta começa a mostrar o seu ufanismo, que chega a um tom exagerado. Esta parte pode subdividir-se em partes consoante a realidade descrita:
                    = elogio do peixe, que é de tal modo bom, que já vem do mar como que "a gosto
                       preparado";
                    = louvor das plantas: usa o barroquismo da linguagem para dizer que as plantas
                       são sempre verdes. Usa uma imagem que é uma herança europeia, pois a
                       primavera, na Bahia, atinge o seu auge em setembro: "... esmeraldas de abril
                       em seus verdores...". Tudo é caracterizado por uma imagem de abundância, o
                       que é típico do Barroco. O peninsular cai muito na exuberância, enquanto, em
                       França, não houve propriamente, mas sim o Rococó;
                    = louvor das frutas: mais uma vez, deparamos com o uso do jogo de palavras com
                       «salgado/sal». Inicia-se, então, a enumeração dos frutos, outra característica
                       barroca, os quais são de origem europeia, mas que no Brasil são ainda melhores,
                       mostrando bem o seu ufanismo, talvez movido pela saudade: canas, laranjas,
                       limão, cidra, uvas, melões, melancias, figos, romãs. Temos, neste caso, sempre
                       confrontado o padrão europeu com o brasileiro, com o objetivo de valorizar a
                       natureza brasileira, não falando do homem. Só com Gregório de Matos se 
                       começa a mencionar o homem do Brasil, também porque ainda não há o verda-
                       deiro homem brasileiro.

    Desde a Carta de Caminha que a literatura mostra as preocupações económicas do colonizador com a exploração da terra, que é boa para qualquer tipo de plantação. Mesmo os frutos tipicamente europeus são aí produzidos em maior quantidade e qualidade.

    Segue-se a enumeração dos frutos tipicamente brasileiros: coqueiros, cajus (variação de cor e sabor; jogo de palavras - " e como vários são nas várias cores"), castanha, pitangas, pitombas (exploração do sensorialismo), araçázes, bananas (inclui a referência à característica barroca da "ordem na desordem": apresenta diversos fragmentos e no fim faz uma síntese: "... é fruto, é como pão, serve em conduto...").

    A enumeração da fruta prossegue: pimenta (caracterizada pela qualidade, quantidade e superioridade); mamão, maracujá (em toda a poesia brasileira, o maracujá pelo seu sabor e o ananás pela sua forma aparecem como rainhas das frutas do Brasil. No texto Sermão da Fruta, do franciscano A. Pereira, comparam-se os frutos aos pecados e aí o maracujá ocupa um lugar de destaque), ananás (temos o jogo visual, quando se refere à casca do ananás e outro elemento barroco, que é concetualismo: aproveita a fruta para falar de um conceito - "não há c'roa no mundo sem espinhos". É a descrição do ananás que ocupa um maior número de versos e termina com uma síntese, depois da dispersão), mangavá (caracterizado pela cor, forma e abundância; gosto barroco pelo sensorial), maracujá.

    Segue-se o louvor dos legumes: mangarás, batatas, mandioca (há uma lenda que diz que a mandioca foi dada a conhecer aos índios por Tupã ou Sumé - figura mitológica saída das águas -, aqui tomado como S. Tomé. Há uma apropriação da lenda por motivos religiosos, que aparece noutros autores. É caracterizada por uma série de elementos barrocos: abundância, gradação, comparação com o pão de trigo para vincar a superioridade do beiju; sensualização, jogo concetual), arroz.

    Depois de caracterizar todos os elementos referidos, faz um jogo com o A, que é também um elemento barroco e faz parte do seu ludismo, pois gosta de jogos formais e concetuais. O autor chega a imitar Camões, o que também é típico do Barroco, bem como um certo tom grotesco, resultante da mistura do clássico (Camões) com a descrição de frutos e legumes.

    Em resumo, podemos dizer que, em todos os aspetos, se marca a superioridade dos elementos brasileiros em relação aos europeus. O poema termina com uma espécie de síntese, onde se fala da Ilha da Maré e se recorre à mitologia: Vénus e Fénix, que morre para renascer e ela faz parte do espírito de renovação barroca. Subjacente está um fundamento religioso, quando se considera Maria superior a Vénus.

    Itaparica segue os mesmos passos de M. B. de Oliveira; apenas acrescenta a pesca da baleia.


sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Análise do poema "Prosopopeia", de Bento Teixeira


    Apesar de a literatura brasileira ter nascido sob o signo do Barroco, a primeira poesia feita no Brasil a respeito do Brasil é uma poesia de transição, embora seja dada como marco da poesia brasileira, feita em moldes camonianos (literatura «kitsch camoniana»): "Prosopopeia", de Bento Teixeira, é um poema em louvor do governador de Pernambuco e a sua família. Contém duas ou três estrofes dedicadas ao Brasil, mas, mesmo cantando as vantagens da terra, o autor possui uma ótica externa de ver as coisas brasileiras.

    Bento Teixeira faz uma tentativa de imitar Camões, fazendo uma epopeia reduzida, mesmo em termos de impacto. É uma epopeia que fala da família dos Albuquerques, o que reduz o âmbito do poema, que inaugura a lisonja na literatura do Brasil: louva, pois, a família dos Albuquerques, que pertencem à família dos donatários da capitania de Pernambuco.

    A composição poética começa com uma Proposição parecida com a de Os Lusíadas, mas não se refere a Luís da Camões, antes a Virgílio, designado como "o Mantuano", cantando Eneias. A Eneida foi uma das fontes da epopeia camoniana. Assim, vai imitar Camões a partir dos versos de Os Lusíadas e refere-se à catábase de Eneias (quando desce ao Hades). Esta é uma literatura que surge no Brasil, mas com gostos importados de raízes europeias: a imitação de um poema lusitano. Bento Teixeira tenta fazer de Albuquerque o grande herói do seu poema e não de Camões ou Eneias.

    Na Invocação, invoca Deus e não as musas, o que mostra a sua origem cristã. As referências ao mundo grego e latino são referências características do Renascimento, sendo que a alusão a Deus também aparece em Camões, que usa a mitologia e a cultura clássicas como ornamento. O poema refere-se ao Renascimento tardio, ao poema camoniano e está filiado numa cultura europeia e religiosa.

    Na realidade, este texto é uma paródia a Os Lusíadas, havendo, no entanto, uma referência à situação do poema: a sua ligação com o Brasil ("Dos casos vários da olindesa gente...").

    No canto IV, afirma a sua ligação não só ao cristianismo, mas ao catolicismo. O poema tem, de facto, um vínculo ideológico com o catolicismo..

    No V, existem várias referências à Antiguidade Clássica: Talia é uma musa do canto épico e da comédia; o motivo da humildade do poeta, que é fingida, como se comprova quando ele refere o seguinte: "Doutro licor melhor que o de Aganipe". O uso da humilitas é uma característica clássica.

    O VI diz-nos que, com o seu canto, Bento Teixeira pretende mostrar feitos tais que espantem todos os elementos: ar, fogo, mar e terra. Depois dos seis primeiros cantos, onde propõe e invoca, passa a descrever. Mas o quê? O espaço de Pernambuco. Ele vai situar Pernambuco e, mais concretamente, a cidade de Recife, referindo-se sobretudo às vantagens do porto da cidade, formado por uma barreira de coral.

    Se alguém podia pensar que ele se humildava por escrever no Brasil, no canto XIX, mostra que não estava inserido no ambiente descrito; trata os índios como bárbaros, o que mostra que tem uma visão de colonizador. Transfere para a linguagem uma propriedade que atribui aos indígenas: hipálage. Ele faz uma distinção e eleva-se a si mesmo. A única referência ao Brasil é a referência a um espaço do porto do Recife. De resto, o poema não serve para louvar o país, mas os Albuquerques. Ele louça o espaço, como é comum nesta primeira literatura, mas denigre as gentes.

    Caminha, apesar de ter achado a terra ótima e as índias belas, tem como preocupação vestir o índio; aqui a referência ao porto subentende uma situação de exploração. O louvor a Pernambuco tem a ver com o progresso que esta capitania vai alcançar com a produção da cana de açúcar.

    No canto XX, mostra preocupações com a posse colonial e não com a terra. Este poema não tem pontos de vista brasileiros, mas coloniais, até porque ainda não havia o verdadeiro brasileiro resultante de uma fusão do índio, do branco e do negro. Logo, não se pode exigir uma literatura brasileira.

    No último canto (XXI), prepara a narração dos feitos dos Albuquerques de Pernambuco.

    Temos, assim, na "Prosopopeia" um louvor da terra, como é visível também na Carta de Caminha. Nesta fase, estamos já num segundo período, sendo que o primeiro era o da descoberta e informação acerca da nova terra, de que a obra de Caminha é o modelo.

    O segundo período afasta-se um pouco do que se possa dizer em termos de literatura, porque é uma literatura para o Brasil e uma literatura de catequese. Mas os jesuítas também produzem uma literatura sobre o Brasil nas cartas que enviam para Portugal e onde falam da terra e das almas.

    Este período do século XVI e uma época em que se produz uma literatura sobre o Brasil, a par da qual surge uma literatura para o Brasil (ex.: Anchieta). Por seu turno, no século XVII, deparamos com uma literatura que se começa a formar. É produzida no Brasil, mas ainda não se pode chamar brasileira. No século XVIII, começa a haver um sistema literário iniciado com o Barroco, porque há brasileiros que vêm estudar para Portugal e regressam. É o caso de Manuel Botelho.

A escola do século XIX em imagens – VII


George Haanen, Escola nocturna (1835)

    Eis uma faceta da escola oitocentista que não poderia faltar nesta série: a escola noturna. As aulas à noite têm hoje uma presença pouco mais do que residual nos sistemas educativos, mas foram cruciais em épocas em que a maioria da população começava a trabalhar com uma escolarização mínima, ou mesmo sem ter tido oportunidade, na infância, de frequentar a escola. Neste contexto, e à medida que os trabalhadores vão percebendo que a formação escolar lhes pode abrir novas perspetivas profissionais e de desenvolvimento pessoal, a vontade e a necessidade de voltar a estudar começam a impor-se.

    Na imagem, percebemos que boa parte dos alunos que chegam a esta escola, iluminada a velas e candeias, é ainda criança: na primeira metade do século XIX, o trabalho infantil era uma realidade muito frequente, o que remetia estas crianças desafortunadas para a escola noturna, única forma de escaparem ao analfabetismo. Posteriormente, graças sobretudo à luta sindical, esta situação começará a mudar, com o aparecimento de legislação restritiva do trabalho de menores e o aumento progressivo da idade mínima para trabalhar. Aliás, e já que se fala em sindicalismo, refira-se também o papel importante que os sindicatos tiveram, praticamente desde o seu aparecimento, na promoção do ensino e da formação profissional entre os seus associados.

    Nesta escola, o ambiente de aprendizagem parece pouco formal, reinando algo parecido com o que hoje chamaríamos diferenciação pedagógica, o que é natural tendo em conta as diferenças de idades, as motivações e os níveis de conhecimento de uns e outros. Assim, enquanto uns alunos estudam autonomamente, outros fazem uma pausa no estudo e aquecem-se junto à salamandra. Um dos discentes, vestido de verde, ouve a explicação do professor, que por sua vez mira de relance aqueloutro – talvez um novo aluno? – que acaba de chegar à escola, trazido pela mãe…

Fonte: Escola Portuguesa.

Análise do poema "De São Maurício", de José de Anchieta


    Este poema de José de Anchieta mostra a dupla conversão do índio: à religião católica e à ação portuguesa. Ou seja, quando os Portugueses chegaram ao Brasil, houve tribos que ficaram do lado de outros povos europeus, como os franceses. Então, os jesuítas, ao mesmo tempo que tentavam manter a fé, porque os invasores eram protestantes, procuravam conservar o império, visto que os invasores eram franceses.
    Este poema compõe-se de dez subdivisões de duas estrofes, sugerindo, como acontece nas danças que encerram algumas peças, dez pessoas que declamem. Deve ter sido apresentado em Vitória, por ocasião de alguma entrada a incursões protestantes.
    Nele, faz-se a exaltação de S. Maurício, santo guerreiro que chefiava uma legião conhecida por "Legião Tebana". Ficou famosa por se ter recusado a participar numa perseguição contra os cristãos, o que lhe valeu a ira do imperador e o consequente massacre, em 286.
    A perspetiva que a literatura de finais do século XX nos dá do índio oscila entre o herói selvagem, bravo e cruel, e a quase criança inocente.
    Até ao quarto grupo de estrofes, temos a exaltação do santo; a partir daí conta-se a sua história. Da mesma forma que S. Maurício venceu os infiéis pagãos com as suas hostes romanas, também agora os Portugueses o invocam na vitória sobre os franceses, que são protestantes. É uma invocação ao mesmo tempo didática, religiosa e festiva. Temos uma situação de festa motivada pela vitória, que é aproveitada para invocar um herói religioso, para propagar a religião e para ensinar um pouco da história da Igreja. Os franceses são inimigos religiosos e políticos, porque querem a mesma terra. Eles procuravam uma nova terra para fundarem a França Antártida. A vila de Vitória - capital do Espírito Santo - foi consagrada à vitória dos portugueses sobre os protestantes.
    As poesias jesuítas, mesmo as que eram destinadas a comemorar algo, apresentam-se com ar festivo, porque a festa era um importante veículo de catequização. Está sempre apresente a ideia de oposição cristão / pagão, a qual vai persistir na literatura para o Brasil, que é uma literatura de conversão, de catequese.
    No grupo 8, há uma referência ao «pecado» que pode ser a invasão da terra pelos protestantes ou uma condenação a uma certa maneira de viver dos índios, que tinham várias mulheres, praticavam a antropofagia, trocavam de mulher, andavam nus e amantizavam-se com os Portugueses. Nesta estrofe tão simples, está patente uma ideia importante: a ideia da expansão de um império e da fé não era apenas portuguesa, mas também francesa e inglesa.
    No grupo 9, faz-se referência à partida dos jesuítas nas «entradas», que eram incursões feitas ao interior do Brasil, para explorar ouro, trazendo no regresso índios para a catequese. Claro que as cidades foram construídas no litoral, porque era mais fácil a defesa e o abastecimento. Mas a expansão para o sertão era importante para ver se aí havia algum interesse. Muitas vezes traziam índios como escravos, mas que eram libertados pelos jesuítas. Eles participavam nas entradas para darem apoio espiritual aos brancos e prestígio junto dos índios e para evitarem a escravização do índio, que eles pretendiam trazer para os colégios de índios no litoral. As entradas não eram normalmente de grande extensão. As incursões mais longas chamavam-se «bandeiras» e levavam mais pessoas que as «entradas», mas esta é uma distinção didática, porque houve várias confusões. A consequência das entradas e das bandeiras foi a ajuda dada à configuração atual do território brasileiro, porque ambos os processos ultrapassaram em muito a linha imaginária do Tratado de Tordesilhas e, quando os espanhóis, deram conta, já aí havia cidades com uma cultura portuguesa bem arreigada.
    Este tipo de literatura visa a cristianização do índio e daí a constante invocação de Deus. O espírito que rege a expansão da fé entre os índios brasileiros e os filhos dos colonos é um espírito festivo. Mesmo as procissões descritas pelos jesuítas têm um caráter festivo, em que as pessoas vestiam as melhores roupas, havendo ainda uma série de invenções de espírito barroco que chamavam a atenção, o que se vai acentuar com a descoberta do ouro.
    A literatura brasileira vai nascer como literatura brasileira no século XVII, sob o signo do Barroco, com autores como Manuel Botelho de Oliveira e Frei Manuel Maria de Itaparica. É uma poesia de transição. A primeira poesia é feita a respeito do Brasil, que é dada como marco do início da literatura brasileira. É uma poesia muito camoniana ainda, uma espécie de Lusíadas «kitsch».
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...