● Assunto:
a donzela chama o amigo e lembra-lhe que agora, nas manhãs frias, já não a
procura de madrugada. Quando ele vinha, as aves cantavam as alegrias daquele
amor.
O amor arrefeceu da parte do amigo e tudo
se transformou: as aves deixaram os ramos e as fontes.
● Tema:
o amor desfeito:
- a ferida do
abandono, da falta de atenção por parte do amigo;
- a
acusação / apelo, não em nome próprio, mas em nome das aves, dos ramos, das
manhãs, das fontes;
- a
ausência do amor e o seu reflexo destrutivo na natureza.
● Estrutura
interna
Tudo se modifica
pela ausência do amigo e o espaço fica vazio, sem a presença das aves, tal como
o espaço do seu coração está vazio sem a presença do amigo = amor.
O refrão, na
segunda parte, adquire um sentido humorístico-trágico, uma vez que a alegria da
donzela já não existe.
Esta
cantiga é uma alba, ou seja, a acção ocorre nas primeiras horas da manhã e
põe fim a uma noite de amor entre a donzela e o amigo.
Quando
fala no presente, estamos perante uma relação que acabou, que, de ardente, se
tornou fria. Ocorre-lhe então a lembrança do amor feliz da Primavera. O
pretérito perfeito marca a ideia de que ele é que cortou os ramos e secou as
fontes do amor de ambos. Em suma, o pretérito perfeito marca a
irreversibilidade da situação.
De
acordo com os autores do manual Entre nós
e as palavras 10, o apelo da donzela, expresso logo no verso 1 da cantiga,
traduzirá o seu apelo dirigido ao amigo, para que este se levante depois de
terem passado a noite juntos. Assim sendo, não obstante o facto de o amigo se
ter vindo a distanciar gradualmente da donzela e da relação entre ambos, é
possível considerar que ela ainda se mantém no presente.
Por
outro lado, o pormenor de as manhãs serem caracterizadas como «frias» significará o arrefecimento da
relação amorosa, pelo que o apelo da donzela poderá representar,
simbolicamente, o seu desejo de que o amigo deixe de dormir (isto é, de assumir
um papel passivo) e faça algo no sentido de reverter o processo de destruição
da relação amorosa. (Alexandre Pinto e Patrícia Nunes, in Entre nós e as palavras 10, Santillana, pág. 34).
●
Dupla leitura do texto
O
gesto do amigo, ao tirar os ramos onde estavam as fontes e ao secar as fontes
onde bebiam e tomavam banho, poderá significar que pretendia afastá-las, de
modo que o amor existente entre si e a donzela se mantivesse secreto.
Por
outro lado, esses atos podem significar o fim do seu amor pela donzela e,
consequentemente, da relação entre ambos.
● Cenário: natural ® aves, ramos,
fontes.
● Relação amor/natureza
Esta
cantiga evidencia um tópico/tema que posteriormente será desenvolvido por
autores como Petrarca ou Camões: a natureza reflete a relação
amorosa entre o par amoroso – canta e espalha a alegria amorosa; reflete o
esfriar amoroso, através das "manhãs frias", da queda dos ramos e da
secagem das fontes.
Por
outro lado, está também presente a oposição clássica entre a mudança cíclica da
natureza e a irreversibilidade da mudança do sentimento amoroso. De facto,
essas ações e o desaparecimento das aves remete para a destruição de um cenário
primaveril, conotado com a juventude, o amor, a esperança e a harmonia, e a sua
redução a um espaço de tom invernal, associado à tristeza, à solidão, ao
abandono, à esterilidade e à morte. Assim se sugere a destruição do amor por
parte do amigo.
●
Simbologia das aves
As
aves, através do seu canto, simbolizam o amor e a felicidade dele resultante.
Por outro lado, também através do canto, poderiam divulgar o amor vivido entre
a donzela e o amigo, daí surgirem personificadas.
● Recursos poético-estilísticos
1.
Nível fónico
.
Estrofes:
oito estrofes heterométricas de 3 versos.
.
Metro:
versos de 12 sílabas e 8 no refrão.
. Rima -
AAR / BBR;
- emparelhada;
- toante
("frias" / "diziam") e consoante ("dizian" /
"havian");
- rica
("frias" / "dizian") e pobre ("dizian" /
"havian");
- grave.
.
Ritmo
binário, lento, de acordo com a tristeza da donzela pela indiferença do amigo.
. Refrão: na 1.ª parte, traduz a alegria da
donzela por amar e ser amada e feliz; na 2.ª parte, adquire um sentido
humorístico-trágico, uma vez que a alegria da donzela já não existe.
.
Aliteração:
repetição das consoantes v e s.
.
Assonância
em i e á.
2.
Nível morfossintáctico
.
Paralelismo perfeito.
.
Leixa-prem.
. Substantivos: aves ® refletem a felicidade amorosa,
cantando o amor, e a ausência do amor;
aves, manhãs, ramos, fontes ® substantivos que
refletem, num primeiro momento, a felicidade amorosa, e, num segundo momento, a
ausência e o seu reflexo destrutivo na natureza.
. Adjetivos: frias ® caracteriza a
frieza amorosa presente, isto é, a ausência do amor;
leda ® refere-se, na 1.ª parte, à
felicidade da donzela e, na 2.ª, adquire um tom irónico.
.
Funções da linguagem:
. apelativa:
- verbos no
imperativo;
- vocativos;
. expressiva:
- adjetivos;
- refrão.
.
Verbos:
. modos:
® indicativo: o modo
da realidade;
® imperativo: o
apelo da donzela ao amigo para que se levante, ou seja, que retome o amor por
ela;
. tempos:
® pretérito
imperfeito - "as aves
cantavan" \ nosso amor -
Primavera
- "en ment'
avian" /
® pretérito perfeito - "vós lhi tolhestes os
ramos" \ destruição do amor
- "vós lhi
secastes as fontes" /
® presente - "levade" \ manhãs frias - Inverno
-
"dormides" /
.
Anáfora.
.
Hipérbato.
.
Frases:
declarativas.
.
Construção oracional:
predomínio da coordenação.
3.
Nível semântico
.
Apóstrofe
dirigida ao amigo, apelando-lhe ao retorno e ao amor.
. Personificação das aves, que
reflectem a relação amorosa, nos bons e maus momentos.
.
Metáforas:
- "vós lhi
tolhestes os ramos em que siian" \ significam que o amigo destruiu o amor
-
"e lhis secastes as fontes u se banhavam" / de ambos, destruiu o sustento e a habitação
do amor.
. Hipérbole: “todalas aves do
mundo” – o canto melodioso das aves sugere a intensa alegria causada pela
paixão.
● Classificação
1.
Cantiga de amigo.
1.1. Temática: alba / alvorada / serena.
1.1.1. Relação com
as albas provençais: a alba tem como cenário o amanhecer, que desperta os
amantes, acordados pelo corneteiro da corte ou por um amigo do amante. Por isso
se diz que a lírica provençal fala de um amor adúltero.
Na
lírica galego-portuguesa, não há albas como na lírica provençal e, como tal, a
sua designação é difícil. Na lírica galego-portuguesa, fala-se do amanhecer,
mas nunca da relação adúltera e da separação dos amantes.
1.2. Formal:
- cantiga
paralelística perfeita;
- cantiga de
refrão.
O
refrão mantém-se inalterado ao longo da cantiga, não obstante o seu valor ser
diferente em casa uma das partes.
Com
efeito, na primeira, ele traduz a alegria e a felicidade vividas pela donzela,
a evocação dos momentos idílicos da relação amorosa, enquanto na segunda
traduzem o lamento amargurado da jovem face à destruição progressiva do
relacionamento.
Por
outro lado, a ênfase posta na alegria por parte da donzela poderá sugerir que
esta ainda não perdeu totalmente a esperança de reverter a situação e de
regressar à alegria e felicidade experimentadas no passado.