Português: 19/01/20

domingo, 19 de janeiro de 2020

Análise da Cena 12 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto: o Romeiro entra em cena, Maria morre e os pais tomam o hábito.


Acontecimentos da cena

▪ O Romeiro, numa derradeira tentativa de reparar a situação que criou e por que se sente responsável, manda Telmo intervir e dizer aos presentes que é um impostor.

▪ Maria ouve a sua voz e reconhece-o imediatamente. Sendo tuberculosa, tem uma acuidade auditiva mais desenvolvida. Cumpre-se, assim, a última etapa da anagnórise: o reconhecimento da identidade do Romeiro por Maria e pelos circunstantes.

▪ Para Maria, o Romeiro/D. João é o “homem do outro mundo”, morto e ressuscitado para trazer a desgraça e confirmar a sua ilegitimidade. Ela não aguenta a “vergonha” de ser filha ilegítima e morre. De facto, é possível considerar que o trauma psicológico que sofreu tenha agravado o seu estado de saúde debilitado (pela tuberculose), contribuindo para a sua morte.

▪ A tomada de hábito configura um duplo suicídio: Manuel de Sousa e D. Madalena abandonam voluntariamente o mundo profano (morte para o mundo), para se entregarem à religião.

▪ D. Madalena e Manuel de Sousa tudo deixam para trás: bens materiais, lugar de relevo na sociedade, amigos, parentes e até o nome. Como diz o Prior, despiram “o homem velho”, para se sepultarem vivos, embrulhados naquelas “mortalhas”, um na solidão do convento de S. Domingos de Benfica e a outra no convento do Sacramento.

▪ Na cena 2 do ato II, Telmo deixa escapar o seguinte presságio: “… tenho cá uma coisa que me diz que, antes de muito, se há de ver quem é que quer mais à nossa menina nesta casa.”. O terceiro ato vem confirmar esse presságio, visto que acaba por ser a única personagem que se mostra disposta a abdicar de um princípio que o norteava – o de nunca mentir – em nome do seu amor por Maria. É por este motivo que tenta levar a cabo a missão de que foi encarregado pelo Romeiro, passando a mensagem de que é um impostor.

▪A derradeira fala da peça, saída da boca do Prior (“Meus irmãos, Deus aflige neste mundo aqueles que ama. A coroa de glória não se dá senão no céu.”), aponta para a possibilidade de uma felicidade futura (a “coroa de glória… no céu”), embora à custa de sofrimento redentor, neste mundo, pela contrição, pela penitência, pela ascese. Estas palavras de conforto apontam para a esperança, só possível na mundividência cristã.
Por outro lado, desta fala pode concluir-se que o desenlace da tragédia se projeta em dois planos. No plano humano, as personagens não têm saída, não podem voltar atrás, tal como na tragédia grega, que reflete o mundo clássico-pagão, mundo sem esperança, nem redenção, em que o Destino, entidade cega e cruel, parece ter ciúmes da grandeza das personagens e só se satisfaz com a sua destruição e o aniquilamento das vítimas, sejam elas culpadas ou não. No plano da mundividência cristã, as personagens, embora destruídas como tal, infelizes no plano humano, desgraçadas no relacionamento familiar ou social, podem mesmo assim suportar todas as dores, todos os sofrimentos, porque lhes será sempre possível, mesmo neste mundo, atingir a paz de consciência, e, com os esforços próprios de uma vida de penitência, aspirar, com a ajuda da graça de Deus, a uma suprema felicidade futura.
Por outro lado, no mundo antigo clássico, a morte era vista como o aniquilamento total, o fim de tudo: nada mais se poderia esperar para além dela. A lei da morte era o esquecimento, do qual só se salvavam, como escreveu Camões, “… aqueles que por obras valerosas / se vão da lei da morte libertando”. As obras valorosas eram os feitos guerreiros dos heróis, os feitos intelectuais dos poetas, os feitos atléticos dos jogos. Só esses eleitos tinham direito à imortalidade, sublinhada pela ereção de uma estátua (ou retrato), duplo da personagem. A imortalidade, ou glória, era, portanto, a memória do herói, do poeta, do atleta nas gerações vindouras.
Na mundividência cristã, a alma humana é imortal; o homem morre, mas a alma não é destruída, antes tem um destino feliz ou infeliz, para além da morte. Os santos são os heróis da Fé, só eles atingem a bem-aventurança, simbolizada na estátua, ou imagem, com honras e culto nos altares. É neste sentido que apontam as palavras do Prior.

▪ É, pelo exposto no ponto anterior, que para Sóror Madalena das Chagas, no Convento do Sacramento, se abre uma possibilidade de reabilitação e redenção, pela contrição, pela oração, pela penitência, que a poderá levar, com a ajuda da graça de Deus, à felicidade e à bem-aventurança no Céu.
É, por isso, que, para Frei Luís de Sousa, no Convento de Benfica, as perspetivas são mais largas ainda, se juntar à penitência e à oração, a ascese que o levará à glória do escritor (o mito romântico do escritor/poeta) e a uma quase santificação, promissora da suprema glória no Céu.
Por fim, Maria, a vítima inocente das paixões dos pais (sobretudo da mãe), a morte que a destrói leva-a imediatamente à glória do Céu (“este anjo que Deus levou para si” – III, 12), nimbada pelas virtudes que a exornam, pelos sofrimentos e provações a que foi sujeita, pela inocência e pela beleza. Do ponto de vista transcendente, é a personagem mais feliz de todas.


Funções das didascálias

As indicações cénicas salientam o estado de espírito de Maria, nomeadamente a sua dor, o seu desespero e a sua revolta. Elas indicam os movimentos e os gestos feitos por Maria para se juntar aos pais, procurando neles um refúgio: ela agarra-os, abraça-nos, procura proteção no hábito do pai e no rosto da mãe, dirige-se aos presentes, aponta para o Romeiro, em sinal de reconhecimento, acabando por cair no chão, morta.


Características românticas:
▪ a exacerbação dos sentimentos;
▪ o domínio da emoção e da sensibilidade;
▪ a morte como solução para os problemas;
▪ a intenção pedagógica: a problemática dos filhos ilegítimos.


Características trágicas

Catástrofe:
- O Romeiro sofre uma morte psicológica: o anonimato. Ele é atingido pela dor que causou nos outros, pela morte de Maria, uma inocente, e por não ter remediado o mal que involuntariamente causou. Consigo transporta as memórias da breve felicidade passada e dos infortúnios com que o Destino o sobrecarregou. Nunca quis desonrar a sua viúva, mas também não deseja a honra para si. Bastar-lhe-á um nome honrado e uma memória sem mancha.
- Telmo morre psicologicamente também. Conseguirá ele sobreviver a tantos desgostos e a tão grande sofrimento?
- Manuel de Sousa e D. Madalena morrem para o mundo com a tomada de hábito, para suportar a sua dor. No lugar de Manuel de Sousa, surge um novo ser: Frei Luís de Sousa. No de D. Madalena, igualmente outro ser: Sóror Madalena das Chagas.
- Maria é a vítima inocente de um destino trágico e morre fisicamente, revoltada, de vergonha. Como era usual na tragédia grega, a catástrofe faz-se sentir na vítima (mais) inocente.

Peripécias:
- a tomada de hábito;
- a morte de Maria.

Pathos (sofrimento) das personagens.

Éleos (piedade) e phobos (medo): Garrett pretendia levar os espectadores a sofrer os terrores (phóbos) perante os castigos do Destino (neste caso, da Justiça de Deus) e sentir a piedade (éleos) pelas vítimas.

Catarse: a purgação das paixões humanas. Os espectadores viveram (e vivem) as paixões, as angústias, os desesperos das personagens, com quem idealmente se identificaram. Sofreram os terrores de D. Madalena, choraram as lágrimas de Manuel de Sousa, morreram com Maria, antipatizaram com a dureza do Romeiro, sensibilizaram-se com a «traição» do Romeiro, de modo que, no final de contas, no momento do julgamento final, o prato da balança se inclina a favor das vítimas.
              Garrett quis combater os preconceitos e a condenação da chamada “moral social” contra os filhos ilegítimos (como era o caso de Maria Adelaide, sua filha), mas, mais ainda, atrair a simpatia, a desculpa, a absolvição para os amores românticos (os “direitos da paixão”), à margem das leis de Deus e das leis humanas (como era o seu próprio caso).

Bibliografia: MENDES, João. Introdução à Leitura do Frei Luís de Sousa. Livraria Almedina.

Análise da Cena 11 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto

Maria entra em cena e interrompe a cerimónia da tomada de hábito dos pais, produzindo um discurso prenhe de revolta contra tudo e todos os que responsabiliza pela tragédia que se abateu sobre si e a sua família.


Didascália inicial:
- entrada precipitada de Maria na igreja;
- estado de Maria (“de completa alienação” física e psicológica);
- reação dos presentes na cerimónia (“Espanto geral”);
- interrupção da cerimónia.


Caracterização de Maria

▪ Maria surge em cena “em estado de completa alienação”, despenteada (“os cabelos soltos”), vestida de forma imprópria (“traz umas roupas brancas desalinhadas e caídas”), com o “rosto macerado mas inflamado com as rosetas hécticas, os olhos desvairados”, como se pode ler na didascália inicial. A sua entrada precipitada mostra o quão perturbada está.

▪ De seguida, doente (febril) e desesperada, profere um discurso violento, revoltado e desafiador das normas vigentes na época, acabando a desejar a morte.

▪ Esse discurso é extremamente emotivo, como se pode verificar pelo recurso aos modos imperativo e conjuntivo com valor exortativo (“Mate-me”, “deixe-me”), às apóstrofes, repetições e interrogações. Além disso, são várias as frases interrompidas por ela produzidas. Esta linguagem emotiva evidencia a sua lucidez e a violência crítica das suas palavras.

▪ Por outro lado, o seu discurso é transgressor e questionador das normais sociais e religiosas dominantes, motivado pela sua revolta, que tem vários alvos:
- aqueles que participam na cerimónia da tomada de hábito e que, portanto, comparticipam na dissolução do casamento dos pais e da sua família;
- a falta de humanidade de Deus que lhe reservou um destino tão cruel e lhe rouba os pais legítimos (“Que Deus é esse que […] quer roubar o pai e a mãe a sua filha?”);
- D. João de Portugal, que voltou para a condenar à morte (não é tolerável que alguém que desapareceu há 21 anos e do qual nada se soube durante esse período de tempo, tendo sido considerado morto, venha agora destruir o que de mais sagrado existe: uma família feliz e temente a Deus);
- um mundo hipócrita e desumano em que os inocentes são castigados;
- as convenções sociais e religiosas, que a obrigam a separar-se dos seus pais e condenam vítimas inocentes (estará aqui em causa a lei da indissolubilidade do casamento, que gera situações dramáticas).

▪ Em determinado momento, lança um apelo lancinante aos pais: “«Essa filha é a filha do crime e do pecado!...» Não sou; dize, meu pai, não sou… dize a essa gente toda, dize que não sou. […] Pobre mãe! Tu não podes… coitada!... Não tens ânimo… - nunca mentiste?... Pois mente agora para salvar a honra de tua filha, para que lhe não tirem o nome de seu pai. / […] Não queres? Tu também não, meu pai? – Não querem. […]”. Maria desafia as normas dominantes ao pedir aos pais que mintam e afirma não se importar com «o outro» (D. João de Portugal), que veio dizer que ela era “filha do crime e do pecado”, o que mostra que, para si, a família tem um valor superior aos valores sociais e religiosos.

▪ Maria não se considera “filha do crime e do pecado”, por isso não se conforma e não aceita a sua ilegitimidade, e acusa as pessoas de a julgarem e de a impedirem de ser feliz por causa da sua ilegitimidade.

▪ O objetivo final de Maria é demover os pais da resolução de tomar o hábito (“levantai-vos, vinde”).

▪ No seu discurso, Maria volta a referir-se aos sonhos e visões que a mantinham acordada e não deixavam dormir: o anjo que surgia com uma espada em chamas na mão e a atravessava entre ela e a mãe. Essa espada constituía um presságio que remetia para a separação da família (o atravessar a espada entre ambas) e a sua destruição (o facto de a espada estar em chamas).

▪ A sua fala final anuncia a sua morte (“E eu hei de morrer assim…”) e a entrada em cena do Romeiro (“e ele vem aí…”).

▪ Com este discurso, Almeida Garrett pretende suscitar a piedade (éleos) do leitor/espectador relativamente a Maria, uma vítima inocente das normas sociais e religiosas.

▪ Para Maria, o Romeiro-D. João de Portugal é o “homem do outro mundo”, isto é, alguém considerado morto e agora ressuscitado para atormentar e trazer a desgraça; por outro lado, é o homem do outro mundo, ou seja, de outra família, anterior à ilegal construção da sua, o qual tem direitos e os reivindica nesta hora fatal. Sucede que essas duas realidades nunca poderiam coocorrer: D. Madalena não poderia ser, face à lei de Deus e à dos homens, esposa legítima de dois lares em simultâneo.

Análise da Cena 10 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto

D. Madalena e Manuel de Sousa preparam-se para tomar o hábito. Por causa disso, o espaço da ação muda, passando esta a decorrer na igreja de S. Paulo.


Didascália inicial

▪ Espaço:
- igreja de S. Paulo, um espaço solene;
- é neste espaço que vai ocorrer a cerimónia da tomada de hábito, a qual implica o abandono dos bens terrenos por parte de Manuel de Sousa e D. Madalena, incluindo a própria filha, o que lhe confere um caráter trágico.

▪ Elementos do cenário – predominantemente religiosos:
- o coro
- o altar-mor
-dois escapulários dominicanos
- o órgão

▪ Personagens:
- os frades que constituem o coro
- o Prior de Benfica
- Manuel de Sousa
- o Arcebispo
- os clérigos
- Jorge
- Madalena

▪ Ambiente: as personagens estão envolvidas numa cerimónia religiosa; Manuel de Sousa e D. Madalena estão ajoelhados e de hábito vestido para professarem.


Manuel de Sousa, ao adotar o hábito, muda o nome para Frei Luís de Sousa, o qual dá o título à obra. Esta mudança de nome constitui a morte simbólica da personagem: Manuel de Sousa morreu para o mundo e, em seu lugar, surge um novo ser: Frei Luís de Sousa.
A fala do Prior traduz, exatamente, estas ideias: “… pois em tudo quisestes despir o homem velho [0 deixar para trás tudo o que fostes], abandonando também ao mundo o nome que nele tínheis!”. Esta fala quer dizer que Manuel de Sousa Coutinho, ao professar, vai renunciar a mundo, como se morresse, e inicia um novo ciclo, uma nova vida, que passa também pela adoção de um novo nome. O mesmo se pode afirmar a propósito de D. Madalena: “– Sóror Madalena!”.


Função do coro

O coro dos frades testemunha a tomada de hábito de Manuel de Sousa e D. Madalena, uma ocasião de recolhimento e entrega a uma nova vida, transformando-o num momento de grandiosidade.
A recitação litúrgica confirma a decisão de “despir o homem velho” e “morrer” para o mundo.
Note-se que a função tradicional do coro da tragédia clássica de prever os acontecimentos é desempenhada por Telmo Pais.

Análise da Cena 9 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto

O assunto desta cena é a tentativa frustrada de D. Madalena de mudar o seu destino e o da sua família, seguida da resignação e aceitação do futuro.


Evolução do estado de espírito de D. Madalena

▪ Inicialmente, D. Madalena mostra-se inconformada com a decisão do marido.

▪ Posteriormente, como não vê saída para a situação, apela a Deus que a ampare, apelo esse que é traduzido pelas palavras do coro: “Fiant aures tuae intendentes; in vocem deprecationis meae” (Que os vossos ouvidos estejam atentos à voz da minha súplica).

▪ No final da cena, parece tomar consciência de que nada há a fazer, resigna-se e conforma-se com o seu destino.

▪ É de notar que a tomada de hábito por parte de D. Madalena não resulta da sua vontade ou de qualquer crença de que aquela é a solução adequada à situação. De facto, ela luta até ao fim pelo seu amor e, só quando se apercebe que Manuel de Sousa já partiu para a cerimónia da tomada de hábito, abdica da sua felicidade e aceita a decisão do segundo marido (“Ele foi?”; “E eu vou.”), colocando o seu destino nas mãos de Deus.

▪ Para D. Madalena, a religião constitui o derradeiro refúgio (“refúgio de infelizes”) para as adversidades da sua vida.

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