sexta-feira, 6 de janeiro de 2023
Caracterização da hospedeira
A hospedeira é
apresentada carregada de volumes físicos, com múltiplas adiposidades, toda
redonda. Parece que o narrador nos quer mostrar, dessa forma, a ternura e a
dedicação que ela transmite aos seus hóspedes.
Esta personagem
simboliza a mulher do povo, que respeita os valores da burguesia, sem
instrução, cuja existência é dedicada a servir os homens como hospedeira,
transmitindo-lhes uma imagem materna em que a sexualidade é reprimida.
Ela desculpabiliza e
aceita tudo sem o questionar, sem levantar problemas. É uma espécie de Buda no
feminino ou de uma Madona, cuja sexualidade é reprimida através do trabalho
físico árduo, ao contrário da mulher burguesa, representada por Maria das
Mercês, que não trabalhava, não tinha uma ocupação profissional.
Enquanto informante, a
sua ação limita-se a discordar do cauteleiro, através da voz do narrador, que
afirma o seguinte: “santa madona de boquinha recatada”, “… o seu comentário
sairia perfeito, exemplar, retocado de clemência. Imitando-lhe o estilo…”. A
estalajadeira vai rebater as insinuações do cauteleiro para denegrir a
qualidade de homem de Tomás Manuel, que “se algum pecado se podia apontar ao
Engenheiro, ser leviano em demasia e andar, como diz o outro, sempre atrás de
saias. Passe a expressão.”
Na pensão, encontramos
outra personagem, a criadita, que representa o trabalho infantil, que
nos anos sessenta era muito mais intenso do que na atualidade do século XXI.
Nesta época, o trabalho infantil era aceite, nomeadamente em localidades mais
rurais, pois constituía um hábito ancestral. Era frequente as famílias terem filhos
para trabalharem e ajudarem ao rendimento e sustento familiar. O trabalho
infantil era também utilizado no serviço doméstico e, à semelhança do que
sucede com a criadita, muitas raparigas, concluída a então instrução primária
(quando a faziam!), emigravam para a cidade para «servir» uma família burguesa.
A hospedeira, em suma,
é a «formiga-mestra» e tem uma espécie de reflexo na criada de Palma Bravo,
descrita como uma “formiga de ventre espetado”, que pragueja com os cães do
dono e, de acordo com o provérbio inventado, “quem não pode com o patrão
vinga-se no cão”. Quer isto dizer que, debaixo da submissão destas personagens,
fervilha uma grande revolta e um desejo de mudança escondido, ou seja, elas
disfarçam para não desagradar ao patrão.
Narrador / Personagem / Escritor-Furão em O Delfim
O narrador, desde o
início da narrativa, aponta para o espaço da Gafeira (atente-se no uso do
deítico espacial «cá»), visto a partir da sua perspetiva («estou»).
Este início da obra
remete para a dupla função de narrador e personagem, porém a sua presença não
se limita a isso, visto que revela constantemente a sua consciência do fenómeno
da criação literária, introduzindo mesmo a figura de autor. Ele próprio se
intitula «escritor furão», visto que se reconhece como um pesquisador da
verdade oculta, numa constante dupla caçada.
A narrativa é
construída a partir das recordações de diálogos que manteve com os donos da
Casa da Lagoa, de situações que presenciou ou não, mas que considera
plausíveis, de atitudes que observou, de tensões que pressentiu ou julgou
pressentir, e de versões várias sobre um incidente.
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