sábado, 28 de dezembro de 2024
Análise de "Esta tarde a trovoada caiu", de Alberto Caeiro
quarta-feira, 3 de julho de 2024
Análise do poema "Aquela senhora tem um piano", de Alberto Caeiro
Este poema é constituído por dois tercetos de versos brancos ou soltos e métrica irregular.
Na primeira estrofe, o sujeito poético estabelece uma analogia entre o som do piano e o produzido pelo curso das águas dos rios e das árvores, para constatar que o instrumento musical, quando tocado por uma determinada senhora, produz um som agradável, porém bastante inferior ao produzido pelos elementos da Natureza (atente-se na sua personificação, traduzida pelo nome «murmúrio», bem como na metáfora clássica do «correr dos rios»). O som do piano é, de facto, agradável, todavia não é natural, simples e verdadeiro, como o da Natureza. Tudo o que é humano não é natural. Tudo o que é humano não é natural. À semelhança do que sucede com o piano, que imita os sons da natureza nas suas melodias, o pensamento humano imita o natural movimento das coisas. Nesta estrofe e neste poema, o «eu» poético defende novamente a objetividade.
Além disso, há uma oposição entre «Natureza» e pensamento e o piano constitui uma metáfora deste contraste. Dado que a Natureza produz sons mais melodiosos, não é necessário um piano para ouvir belos sons, isto é, não é preciso pensar para viver. Além disso, o piano é um intermediário entre o ser humano e a Natureza. O piano representa um bem cultural, uma construção humana, que se opõe aos bens naturais – o correr dos rios e o murmúrio das árvores. Assim sendo, o «eu» descarta a necessidade do piano, preferindo a fruição dos sons da Natureza. O melhor é ter ouvidos para os escutar.
Caeiro vive de impressões, sobretudo visuais, todavia, neste poema, o foque recai sobre as auditivas. Por outro lado, são frequentes na poesia de Caeiro as comparações que têm como segundo elemento de comparação um elemento da Natureza e que servem para concretizar ideias abstratas.
Em suma, embora os objetos e as criações humanas ofereçam prazer e conforto, eles ficam aquém da complexa e rica experiência oferecida pela Natureza: há um contraste entre o artificial, o construído, e o natural e simples.
A segunda estrofe abre com uma interrogação retórica: “Para que é preciso ter um piano?” (v. 4). De facto, o piano é desnecessário, porque há a Natureza, que ultrapassa tudo o que o ser humano pode construir para a compreender. O essencial é usufruir da Natureza através dos sentidos, neste caso da audição, e amá-la. Não é necessário um instrumento musical – um objeto material musical construído – quando se tem o que é natural, uma forma mais autêntica de existência humana: a beleza e a pureza da Natureza, simples e natural. Amar é aceitar incondicionalmente, ao mesmo tempo que nos oferecemos por inteiro, sem compromisso, mesmo que tenhamos medo de falhar ou de ser magoados.
Para concluir, esta composição poética recorda uma passagem do Livro do Desassossego que reza o seguinte: “Quando vim primeiro para Lisboa, havia, no andar lá de cima de onde morávamos, um som de piano tocado em escalas, aprendizagem monótona da menina que nunca vi. Descubro hoje que (…) tenho ainda nas caves da alma (…) as escalas repetidas, tecladas, da menina hoje senhora outra, ou morta e fechada num lugar branco onde verdejam negros os ciprestes. Eu era criança, e hoje não o sou.”. O piano, neste passo, parece constituir uma referência simbólica à mãe de Fernando Pessoa, tendo em conta que O Livro do Desassossego se debruça sobre a sua infância perdida. Ela tocava piano e o poeta recorda essas notas tocadas em sua casa, durante a idade infantil. Dado que recusa a necessidade do piano, denega também a necessidade da memória do piano (da própria mãe a tocá-lo, no que isso teria de reconfortante). Deste modo, os versos “Para que é preciso ter um piano? / É melhor ter ouvidos / E amar a natureza” podem ler-se como um lamento triste em que Pessoa, aparentemente, recusa a memória reconfortante.
quinta-feira, 18 de janeiro de 2024
Análise do poema "Ao entardecer, debruçado pela janela"
O início da composição apresenta-nos um sujeito poético, debruçado pela janela, a ler O Livro de Cesário Verde. Ora, a leitura é uma atividade solitária por excelência e que exige concentração, introspeção, e Caeiro admitia que lia debruçado na janela, ao entardecer, o momento do dia que parece proporcionar a melancolia: a imagem é a de um poeta solitário – Alberto Caeiro – que lê outro poeta com tendências taciturnas – Cesário Verde.
A seleção da obra para leitura não é casual. De facto, são evidências as similitudes entre a poética de ambos os poetas: a relação com a Natureza, as sensações, o deambulismo, etc. Caeiro lê O Livro de Cesário Verde, porque se identifica com ele. Note-se, por outro lado, a forma intensa e dedicada como Alberto se dedica à leitura, como o mostra o facto de ler até lhe doerem os olhos. O «eu» poético está totalmente focado e entregue à leitura. A identificação do título da obra indicia a sua admiração e respeito por Cesário, mas também a sua identificação com ele: ambos são poetas da Natureza e das sensações e observam o mundo com simplicidade e sem o racionalizar.
Voltando ao verso inicial do poema, este coloca-nos perante o momento (“Ao entardecer”) e o local (a janela) em que se opera a leitura. O «eu» poético está...
A análise completa pode ser encontrada no link seguinte: análise-de-ao-entardecer.
segunda-feira, 15 de janeiro de 2024
Análise do Poema XIV de O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro
No que diz respeito à mensagem do poema, o sujeito poético inicia-o afirmando que não se importa com as rimas. O que significa esta afirmação / negação? Em primeiro lugar, significa que ele se assume como um poeta (já o tinha feito, aliás, logo na primeira composição poética de O Guardador de Rebanhos). Em segundo lugar, significa que, nessa qualidade, desvaloriza a importância da rima nos seus textos, na sua poesia. Mas por que razão tal sucederá? A explicação / justificação surge ainda no primeiro verso, estendendo-se ao seguinte. De facto, o «eu» declara que não “Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra”. O que quer isto dizer e qual a relação com o ato de escrever poesia? Fazer rimar duas palavras (isto é, colocar no texto duas – ou mais – palavras que têm um final semelhante – ou seja, que rimam) não é natural, e fundamenta esta ideia através de uma analogia com a Natureza, que também não cria entidades iguais (como, por exemplo, árvores) “uma ao lado da outra”. Tal sucede porquê? O homem pensa quando cria (neste caso, cria / escreve poesia); a Natureza, não, daí que crie de forma simples e natural.
O terceiro verso assenta numa comparação entre o sujeito lírico e a mesma Natureza: “Penso e escrevo como as...
Podes encontrar a conclusão da análise aqui: análise-poemaxiv-o-guardador-de-rebanhos.
terça-feira, 9 de novembro de 2021
domingo, 10 de janeiro de 2021
Contradições da poesia de Alberto Caeiro
Alberto Caeiro: reflexão existencial – o primado das sensações / o sensacionismo
▪ Sensacionismo: a sensação sobrepõe-se ao
pensamento
Alberto
Caeiro recusa o pensamento, o conhecimento intelectual e vive de impressões,
privilegiando as sensações, sobretudo as visuais. O pensamento perturba-o,
fá-lo sofrer, é fonte de enganos, não lhe permitindo conhecer o real (“Pensar é
estar doente dos olhos”), por isso procura libertar-se dele, privilegiando o
conhecimento sensorial da realidade.
Para o poeta, o conhecimento do mundo e
do real circundante faz-se através das sensações. De uma forma que se quer
espontânea e natural, elas revelam uma existência que, em contacto com a
natureza, dispensa a ciência e a técnica.
Assim, vive em harmonia consigo e com
os outros, aceitando o mundo e a vida e sendo feliz, precisamente porque recusa
o pensamento e dá primazia às sensações. Perceciona a realidade através do
olhar, sem intelectualizar essa perceção, daí afirmar-se que a sua poesia é
sensacionista, na medida em que substitui o pensamento (que associa a uma
doença) e o sentimento (subjetivo e convencional) pela sensação. A
subjetividade não existe para ele.
Caeiro apreende o real através dos
sentidos / das sensações, nomeadamente as visuais, recusando o pensamento. Este
corresponde a uma atitude reflexiva que impede a compreensão e a uma doença da
visão [“pensar é estar doente dos olhos” (Poema II)], que constitui um
obstáculo à fruição do que os sentidos percecionam (nomeadamente a Natureza).
Caeiro valoriza a realidade exterior
concreta e observável: “Creio no Mundo como num malmequer, / Porque o vejo”
(poema II).
Ao recusar o pensamento e ao optar pelo
concreto, encontra a felicidade: “Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
/ Sei a verdade e sou feliz”. O real é o único meio de atingir a verdade e a
felicidade, desde logo porque a realidade existe sem necessidade do pensamento.
Para o poeta, nada existe para além
daquilo que é percetível, para além daquilo que o ser humano capta os sentidos.
Caeiro recusa o conhecimento
intelectual e defende o primado das sensações.
O poeta nega que a Natureza tenha
significados ocultos. As coisas são o que são, resumem-se à sua aparência e
àquele cabe-lhe aceitá-las como elas são, sem pensar, porque "pensar é não
compreender”.
O mundo é claro, evidente, simplesmente
é – ser é o único valor possível. O conhecimento chega apenas através dos
sentidos, nomeadamente do olhar, pois o pensamento incomoda-o, perturba-o, é
fonte de infelicidade: “Pensar incomoda como andar à chuva”.
Caeiro rejeita a filosofia (bem como o conhecimento
intelectual, a metafísica, a ciência) e, consequentemente, constrói uma nova
filosofia: “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos” (Poema II). Ou seja, ao
percecionar a realidade como se fosse um simples pastor que acompanha o seu
rebanho, encontra na Natureza e nas sensações uma nova filosofia de vida.
Caeiro é, talvez, o heterónimo mais
complexo, visto que recusar o pensamento ou qualquer tipo de filosofia é pensar
e filosofar, e tentar atingir o grau zero do pensamento implica já uma complexa
operação mental. De facto, a recusa da filosofia e a apologia da sensação pura
constituem uma outra filosofia, pois recusar a filosofia é filosofar, tal como
afirmar que não se pensa é já pensar.
Caeiro aceita o mundo e as coisas como
são, relacionando-se com eles de forma harmoniosa, visto que recusa o
pensamento e a abstração, privilegiando as sensações, nomeadamente as visuais.
Segundo ele, devemos fazer a
“aprendizagem do desaprender”, devemos aceitar a vida e a morte sem mistérios,
despojados de todo o pensamento, de toda a reflexão, de toda a subjetividade.
Para este heterónimo, o real é a única
fonte de felicidade e de conhecimento. Também isto explica que viva em comunhão
com a Natureza, aprendendo com ela, através das sensações, a ser feliz.
Em suma, Caeiro, aceita o real e a
vida, não problematiza a existência, contentando-se em sentir, ver e ser feliz.
Alberto Caeiro: o fingimento artístico – o poeta «bucólico»
Logo
no começo do poema “O guardador de rebanhos”, Caeiro declara-se pastor por
metáfora, o que constitui, no fundo, o despontar daquilo que Pessoa ele mesmo
considerou um «poeta bucólico de espécie complicada».
De
facto, na carta que dirigiu ao seu amigo Adolfo Casais Monteiro, na qual
explica a génese dos heterónimos, o ortónimo afirma que, certo dia, desejou
criar um poeta bucólico para pregar uma partida a Sá-Carneiro, mas que essa
ideia se concretizou apenas em 8 de março de 1914, quando se acercou de uma
cómoda alta e escreveu «trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase»,
cuja autoria atribuiu a Alberto Caeiro, heterónimo que lhe suscitou a sensação
de que tinha nascido o seu Mestre, tratando também de lhe inventar mais uns
discípulos. Caeiro é, por isso, o Mestre de Pessoa ortónimo e dos outros
heterónimos.
Caeiro
resulta do fingimento poético de Fernando Pessoa: foi inventado e modelado pelo
ortónimo como «poeta bucólico». Ou seja, imaginariamente, Caeiro é uma figura
que vive no campo, com simplicidade, sem estudos e de modo rústico, em contacto
com a Natureza e longe da agitação da cidade. O que nele há de bucolismo
aparece como imitação da vida dos pastores que, na chamada poesia bucólica,
eram as figuras que o poeta celebrava, pela sua pureza e inocência.
Caeiro
é um poeta deambulatório (como Cesário Verde). De facto, ele deambula livremente
pela Natureza, pelo campo, observando e apreendendo instintivamente o que o
rodeia e captando o real através dos sentidos, extasiado pela eterna novidade
do mundo.
A
poesia de Caeiro visa o primado do exterior / da variedade maravilhosa do real.
Caeiro
procura viver em plena integração e comunhão com a Natureza, aprendendo com ela
a aceitar o bom e o mau, a felicidade e a infelicidade, a vida e a morte. A sua
alma «conhece o vento e o sol», segue o ritmo das estações e frui «a paz da
Natureza sem gente», sendo que a ausência de outros seres humanos lhe traz paz
e tranquilidade. Ele procura viver em harmonia e simbiose com a Natureza,
alegre e tranquilamente no seio da mãe Terra.
Deste
modo, atinge o verdadeiro conhecimento e a felicidade plena: «Sinto todo o meu
corpo deitado na realidade, / Sei a verdade e sou feliz”.
Poeta
do real objetivo, observa as coisas com um olhar ingénuo e puro: “pensar é não
compreender. / (…) E a única inocência é não pensar…”. No entanto, na verdade,
Caeiro, o poeta da visão instintiva e natural das coisas, é um falso ingénuo e
a sua aparente simplicidade resulta de uma elaborada operação mental.
De
facto, a simplicidade de Caeiro é posta em causa, pois, além de se apresentar
como metáfora, aparenta contradizer-se: “Sou um guardador de rebanhos” ≠ “O
rebanho é os meus pensamentos”. Ou seja, ele só é pastor bucólico enquanto
metáfora; quando muito, deseja a existência simples que está associada à vida
pastoril.
Para
Caeiro, não há passado (ele considera que recordar é atraiçoar), nem futuro
(pois este tempo é um campo de miragens). Assim, vive o presente, gozando cada
impressão como se fosse única e original.
Caeiro
mascara-se de pastor-mestre inculto e iletrado, de forma a passar a imagem de
um homem simples na forma original e primitiva de (vi)ver o mundo, imagem essa
que esconde todo um conhecimento filosófico e cultural.
Caeiro
finge ser um pastor (o tal pastor-metáfora, pois, na realidade, não o
é), um homem simples, que deambula pela Natureza, apreendendo instintivamente o
que o exterior lhe oferece. Deste modo, a sua arte poética/criação artística é
algo espontâneo e não artificial (artificialidade reacional da elaboração do
texto), daí que critique os “poetas que são artistas / E trabalham seus versos
/ como um carpinteiro nas tábuas”, como se se tratasse de uma construção.
Este
fingimento tem como meta a (tentativa de) abolição do pensamento, fingindo que
é um homem instintivo que vive só para fora, para o exterior.
domingo, 27 de novembro de 2016
segunda-feira, 26 de novembro de 2012
Linguagem e estilo de Alberto Caeiro
- Linguagem simples, familiar e objetiva.
- Pobreza lexical.
- Verso livre, geralmente longo.
- Irregularidade / liberdade estrófica e métrica.
- Despreocupação a nível fónico.
- Adjetivação pobre e objetiva.
- Pontuação lógica.
- Predomínio do presente do indicativo, modo do real.
- Frases simples.
- Predomínio da coordenação.
- Aproximação à prosa.
- Metáforas e comparações originais, relacionadas com elementos naturais: "Minha alma é como um pastor", "Pensar incomoda como andar à chuva", "Escrevo versos num papel que está no meu pensamento".
- Marcas de oralidade.
quarta-feira, 14 de novembro de 2012
"Se depois de eu morrer"
Não há nada mais simples
Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.
Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.
Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único porta da Natureza.
Na segunda estrofe, declara-se «fácil de definir». E concretiza a ideia proclamando que viu «como um danado» (comparação), assumindo-se mais uma vez como o poeta do olhar, das sensações visuais, que predominam sobre todas as outras («Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.» - verso 9), um observador da realidade, em suma. Além disso, não amou com sentimento, nem se deixou contaminar por grandes ambições ou sonhos grandiosos. Por outro lado, compreendeu a realidade das coisas e a diferença que existe entre elas, numa enorme diversidade, sem ligação entre si, ou seja, sem lhes atribuir um significado. Ou seja, o sujeito poético compreende com os olhos (com os sentidos), não com o pensamento. Isto impediu que ele tivesse uma vida semelhante à dos restantes, pois ele limitou-se a contemplar a realidade exterior, sem lhe atribuir outro significado que não o que lhe chegava através dos olhos.
A estrofe final
domingo, 4 de novembro de 2012
Análise do Poema XXXVI - "E há poetas que são artistas"
domingo, 14 de novembro de 2010
"Se depois de eu morrer"
Não há nada mais simples
Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.
Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.
Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza.
O sujeito poético começa por se referir à sua biografia, afirmando que a sua via possui somente duas datas: a do nascimento e a da morte. Todos os restantes dias são seus. Quer isto significar que apenas aquelas datas pertencem ao exterior, ao mundo que o rodeia: a do nascimento porque não o podia evitar; a da morte porque também esta constituirá uma data alheia que ele não pode controlar, à semelhança do nascimento. As restantes datas, os restantes dias pertencem-lhe por exclusivo e não fazem parte de qualquer biografia tradicional, pois a sua existência nada teve de comum, em nada se pareceu com a de um homem com uma vida normal.
Na segunda estrofe, declara-se «fácil de definir». E concretiza a ideia proclamando que viu «como um danado» (comparação), assumindo-se mais uma vez como o poeta do olhar, das sensações visuais, que predominam sobre todas as outras («Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.» - verso 9), um observador da realidade, em suma. Além disso, não amou com sentimento, nem se deixou contaminar por grandes ambições ou sonhos grandiosos. Por outro lado, compreendeu a realidade das coisas e a diferença que existe entre elas, numa enorme diversidade, sem ligação entre si, ou seja, sem lhes atribuir um significado. Ou seja, o sujeito poético compreende com os olhos (com os sentidos), não com o pensamento. Isto impediu que ele tivesse uma vida semelhante à dos restantes, pois ele limitou-se a contemplar a realidade exterior, sem lhe atribuir outro significado que não o que lhe chagava através dos olhos.
A estrofe final expressa o modo como desejaria que a morte chegasse, isto é, como o sono de uma criança (comparação e metáfora). Estes recursos estilísticos representam a posição que o sujeito poético (Alberto Caeiro) assume face à vida: deseja ser possuidor da inocência de uma criança, para quem o mundo constitui uma permanente descoberta que a fascina. Atente-se na forma como ele expressa a ideia de morte: através do eufemismo «sono» que um dia lhe «deu» e marcou o seu fim, serena e tranquilamente, como uma criança que se entrega ao seu sono quotidiano.
E o poema finaliza com uma afirmação categórica - «Além disso, fui o único poeta da Natureza.» -, reveladora de um certo orgulho, vaidade e quase displicência.
terça-feira, 9 de novembro de 2010
Temas de Alberto Caeiro
- apagamento do sujeito lírico;
- atitude antilírica;
- atenção à diversidade e à "eterna novidade do mundo";
- integração e comunhão com a Natureza - Caeiro é o poeta da Natureza;
- poeta deambulatório;
- concretização do abstracto: "Com um ruído de chocalhos / Para além da curva da estrada / Os meus pensamentos são contentes"; "Escrevo versos num papel que está no meu pensamento";
- predomínio do real objectivo e das sensações: a subjectividade e a intelectualização do sentir não fazem parte da ideologia de Caeiro;
- áurea mediania: elogio da vida campestre;
- aceitação do mundo tal qual ele é.
- Caeiro é o poeta das sensações tais como são;
- Caeiro é o poeta do olhar: a visão é um modo de conhecimento privilegiado, pois permite percepcionar a imensidão do mundo, superando a dimensão física limitada do poeta;
- predomínio das sensações visuais ("Vi como um danado") e auditivas;
- primado dos sentidos / das sensações sobre o pensamento - submissão do pensar ao sentir (o pensamento implica que se deturpe o significado das coisas que existem);
- a sensação é o único meio possível de conhecimento do mundo: "Sou o Descobridor da Natureza. / Sou o Argonauta das sensações verdadeiras. / Trago ao Universo um novo Universo / Porque trago ao Universo ele-próprio".
- negação / recusa da metafísica;
- recusa do pensamento ("Pensar é estar doente dos olhos"), do mistério e da reflexão como meio para atingir a calma, a paz e a felicidade.
- tudo é Deus, as coisas são divinas;
- identificação do poeta com a Natureza: "Mas sei que a verdade está nelas e em mim / E na nossa comum divindade";
- relação íntima e directa com a Natureza.
. Aceitação do real e da vida, sem problematizar a existência, contentando-se em «sentir» e em «ver».
. Defesa do natural, do espontâneo, do instintivo.
. Recusa do conceito de arte como algo difícil e artificial; defesa de um conceito de arte como um acto natural e quase involuntário: "Vou escrevendo os meus versos sem querer...".
. Procura de uma verdadeira identidade: "Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro, / Mas um animal humano que a Natureza produziu".
. Defesa da necessidade de uma nova aprendizagem que faça o sujeito poético «desaprender» tudo quanto lhe foi convencionalmente imposto: "Procuro despir-me do que aprendi, / Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram".
. Aceitação da ordem natural das coisas: "... a única casa artística é a Terra toda / Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma...".
. Desvalorização do tempo enquanto categoria conceptual: "Não quero incluir o tempo no meu esquema".
. Estoicismo: aceitação passiva de tudo - a vida humana deve ser encarada num plano de igualdade relativamente à vida de outros seres que existem no universo.
. Contradição entre a "teoria" e a "prática": estamos perante uma «máscara» que funciona como uma tentativa de superação de uma subjectividade angustiada que, à primeira vista, parece ter sido anulada (através do objectivismo, das sensações, da negação do pensamento e do misticismo), mas que prevalece e se vislumbra a cada passo. É a contradição entre a teoria e a prática que marca toda a poesia de Alberto Caeiro.