Neste poema, cujo tema é a reflexão
sobre o processo de criação poética e a sua relação com a Natureza, Caeiro
reflete sobre poesia, contrapondo duas conceções.
A primeira é a dos poetas que
designa, ironicamente, por artistas, que a veem como um trabalho, uma
construção, que constroem os seus poemas verso a verso, que valorizam o lado
artificial ou mecânico do ato de criação: “trabalham nos seus versos / Como um
carpinteiro nas tábuas” (comparação); “pôr verso sobre verso, como quem
constrói um muro / E ver se está bem, e tirar se não está!” (comparação e exclamação).
Estas comparações com um carpinteiro e com os pedreiros servem para destacar o
trabalho formal, minucioso e exigente, dos poetas que se dedicam a essa poesia
elaborada e produzida como outras construções humanas. Dito de outra forma,
expressam a preocupação desses poetas com a seleção das palavras, da combinação
de rimas / sonoridades, de arranjos estilísticos, de ritmos poéticos, de
dimensionamento dos versos, etc., ou seja, uma noção de poesia que exige
trabalho de dimensionamento, equilíbrio, polimento e construção dos versos,
pensando muito a experiência. No fundo, Caeiro está a criticar todos aqueles
que não conseguem ser espontâneos (verso 4) no ato de criação poética, facto
que o leva a manifestar estranheza e a sentir pena deles, antes a encaram como
um trabalho árduo de intelectualização.
Ora, para Caeiro, “a poesia não é um
trabalho nem uma convicção, é uma forma de revelar os mistérios da Natureza” e
de se assemelhar cada vez mais a ela (Nuno Hipólito, No Altar do Fogo). Esta é a segunda conceção de poesia, a que se
afirma quando o «eu» poético se declara um fruidor incondicional da Natureza,
que “está sempre bem e é sempre a mesma”. Aparentemente, não há absolutamente
nada a mudar nela. Deste modo, a criação poética deve resultar espontaneamente
da identificação do «eu» poético com a Natureza. Assim se explica o seu lamento
relativamente a esses poetas: “Que triste não saber florir” (exclamação), ou
seja, que triste não comungar da naturalidade, simplicidade e espontaneidade da
Natureza e não ser capaz de fazer da criação poética uma ação natural e
espontânea. Ele considera que é “triste” ter de trabalhar os versos “como um
carpinteiro nas tábuas” e não ser capaz de os fazer “florir” sem artifícios, de
uma forma simples e natural. Ora, sendo a Natureza a verdadeira arte, a poesia
deverá ser como ela, isto é, a expressão sensorial, nítida, fluida do que nos rodeia.
Por outro lado, insiste na relação
íntima com a Natureza, a fonte de inspiração e criação poética: “a única casa
artística é a Terra toda” (v. 7 – metáfora). Por isso, porque a harmonia já
existe nela, não é necessário intelectualizar o ato de escrita. O essencial em
poesia é registar o mundo que o rodeia de forma tão natural e espontânea como é
o ato de florir ou respirar (v. 9). Caeiro é o poeta da Natureza que privilegia
o olhar, daí que tenha apenas de estar atento ao que ela “diz”.
Mesmo reconhecendo a impossibilidade
de compreensão entre ele e as flores, o sujeito poético sabe que em ambos – na
Natureza e na comunhão do homem com ela – mora a verdade e que há uma “comum
divindade” que lhes permite usufruir dos encantos da Terra, das “Estações
contentes” e dos cânticos do vento (personificação). Para que tal suceda, é
necessário evitar a abstração do pensamento e privilegiar uma relação natural,
espontânea (“como quem respira”) com a “única casa artística” que é a “Terra
toda”. Ora, é esse contacto com a Natureza a única forma de aceder à “verdade”
(v. 13). Note-se o desprendimento da vida em harmonia com os elementos naturais
(“De nos deixarmos ir e viver pela Terra” – v. 15), uma espécie de mãe
protetora que o leva ao colo, que embala e transmite paz e tranquilidade (v.
17), evitando a existência de “sonhos” – sonhar é pensar, na medida em que se
constitui como uma atividade mental durante o sonho. É, no fundo, mais uma
afirmação da recusa do ato de pensar, de rejeição de qualquer atividade mental
que se oponha à autenticidade dos elementos da Natureza que descreveu.
No poema, em suma, Caeiro expõe a
sua “teoria poética”, que pode resumir-se ao seguinte: a poesia é o simples ato
de captar a Natureza através dos sentidos de forma espontânea, de acordo com
uma relação de comunhão e harmonia. Noutro comprimento de onda, movimentam-se
os poetas que fazem da poesia um trabalho árduo de intelectualização, de
exposição de conceitos e combinação artística das palavras. Repetindo, estamos
perante o confronto entre uma forma de elaborar poesia caracterizada pela simplicidade,
objetividade, espontaneidade, naturalidade, e outra artificial, muito pensada e
elaborada.
Em consonância com estes princípios
e com o tipo de poesia que defende, este poema é caracterizado pelo
versilibrismo, pela ausência de rima e pela linguagem simples, com um
vocabulário igualmente simples e repetitivo (“está”, “sempre”), pertencente aos
campos lexicais da poesia (“poetas”, “versos”) e da Natureza, fonte inspiradora
do sujeito lírico (“florir”, “Terra”, “flores”, “Estações”, “vento”), bem como
pelo uso de expressões familiares e comparações com elementos naturais.
Por outro lado, a adjetivação é
escassa, resumindo-se à presença de quatro adjetivos: “triste”, “artística”,
“comum” e “contente”. No que diz respeito à estruturação sintática, predomina
as orações coordenadas copulativas, típicas do discurso oral, em detrimento da
subordinação, embora haja a assinalar a presença de orações subordinadas
temporais, relativas restritivas e infinitivas.
A pontuação expressiva concorre de
igual modo para conferir ao poema um certo tom coloquial.
A nível estilístico, destaca-se a
escassez de figuras, verificando-se o uso dos recursos semântica e
sintaticamente mais simples, como a comparação (vv. 3 e 5), a metáfora (vv. 1,
4 e 6), a personificação (vv. 16 e 17), a anáfora (vv. 16-18) e o polissíndeto
(repetição da conjunção coordenativa copulativa «e», que acentua o estilo
simples de Caeiro, estabelecendo a ligação sumativa como processo de acumulação
de argumentos.
Em suma, o poema XXXVI evidencia
alguns dos traços centrais da poética de Alberto Caeiro:
. o
sensacionismo: “”E levar ao como pelas estações contentes / E deixar que o
vento cante para adormecermos” (vv. 16 e 17);
. a
atitude antimetafísica, de recusa do pensamento: “Penso nisto, não como quem
pensa, mas como quem respira.” (v. 9); “E não termo sonhos no nosso sono.” (v.
18);
. o
objetivismo: “E olho para as flores e sorrio… (v. 10);
. a
espontaneidade e naturalidade: “Que triste não saber florir!” (v. 4);
. o
paganismo, isto é, a crença em diversas divindades: “Mas sei que a verdade está
nelas e em mim / E na nossa comum divindade” (vv. 13 de 14);
. o
panteísmo, ou seja, a doutrina segundo a qual Deus e o mundo seriam uma só substância,
não sendo aquele um ser pessoal distinto deste): “Mas sei que a verdade está
nelas e em mim / E na nossa comum divindade” (vv. 13 de 14);
. o
misticismo, quer dizer, a atitude afetiva caracterizada pela crença na
possibilidade de comunicação direta com o divino, inacessível ao conhecimento
racional): “”Mas sei que a verdade está nelas e em mim” (v. 13), “De nos
deixarmos ir e viver pela Terra / E levar ao colo pelas estações contentes”
(vv. 15 e 16), “E não termos sonhos no nosso sono.” (v. 18).
Por outro lado, são visíveis alguns
dos traços que aproximam Caeiro do ortónimo e dos outros heterónimos:
.
Caeiro e Pessoa:
- a linguagem simples;
- a musicalidade espontânea
e natural do discurso, que leva por vezes a quebrar a regularidade métrica;
- a tendência de Caeiro para
o refúgio na Natureza, uma tentativa de evasão, uma certa recusa do pensamento
(“Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira”), que denunciam a
inquietação constante e a intelectualização do sentir (marcas de Pessoa);
- divergem pelo facto de
Pessoa fazer uso da regularidade estrófica e rimática, ao contrário de Caeiro.
.
Caeiro e Reis:
- aceitação natural das
coisas (“… a única casa artística é a Terra toda / Que varia e está sempre bem
e é sempre a mesma”);
- o elogio da vida
campestre, a fazer lembrar a áurea mediania clássica: “De nos deixarmos ir e
viver pela Terra / E levar ao colo pelas estações contentes / E deixar que o
vento cante para adormecermos…”.
.
Caeiro e Campos:
- são ambos espontâneos;
- voltam-se para o exterior;
- cultivam o verso livre;
- são sensacionistas:
privilegiam as sensações em detrimento do pensar (a segunda fase de Campos).