Português: 11/01/20

sábado, 11 de janeiro de 2020

Análise da Cena 1 do Ato III de Frei Luís de Sousa

● Esta primeira cena do terceiro ato liga-se à última do anterior. Essa ligação é estabelecida pela fala inicial de Manuel de Sousa: “Oh minha filha, minha filha!”. Ora, o ato precedente termina com D. Madalena a sair espavorida da sala, gritando por Maria, a principal vítima da desgraça que se abateu sobre a família após a certeza de que D. João de Portugal está vivo.


Assunto

Nesta cena, apresentam-se as decisões tomadas após a descoberta de que D. João de Portugal está vivo (e regressou, embora deste último facto tenham conhecimento unicamente Frei Jorge, Manuel de Sousa e o arcebispo).


Caracterização de Manuel de Sousa Coutinho

▪ Manuel de Sousa sente-se extremamente infeliz e conturbado por causa da ilegitimidade da filha, pela qual se sente responsável. Mais concretamente, a sua preocupação centra-se nos efeitos que os novos desenvolvimentos terão na frágil saúde de Maria e com as consequências sociais da sua ilegitimidade. Ele está convicto que a filha acabará por morrer perante a «afronta» que lhe é feita: a doença vai-a minando e debilitando, o que faz com que a sua resistência aos acontecimentos será muito pouca.

▪ Manuel de Sousa considera que o seu casamento com D. Madalena foi um erro e não um crime (faz tal afirmação, pois casou-se sem uma prova inequívoca da morte de D. João de Portugal, não obstante a esposa o ter procurado durante 7 anos por todo o lado). Porém, não considera o seu casamento um crime, visto que as suas ações foram praticadas sem que tivesse consciência de que estava a incorrer em adultério e bigamia. Dito de outra forma, um crime deve ser punido, enquanto um erro, ainda por cima involuntário, pode ser cometido sem se ter a consciência de que se está a errar, pelo que merecerá uma sanção menos pesada.

▪ Pode ler-se aqui uma crítica velada à sociedade da época, pois condena uma família à destruição, por causa do desaparecimento de alguém ocorrido há mais de vinte anos.

▪ É um homem dominado por um profundo sentimento de culpa: sente-se culpado pela ilegitimidade da filha, pelo mal causado a D. João e pela vergonha com que cobriu o nome da família.

▪ Considera-se mais infeliz do que o Romeiro, pois, além de tudo, carrega a certeza de ser o verdadeiro culpado pela desgraça que recai sobre todos. De facto, Manuel de Sousa considera ter sido ele (1) o causador da destruição de D. João; (2) o causador da sua desonra, da da esposa e da filha; (3) o culpado de toda a desgraça, mas ser a filha inocente a grande vítima da situação.

▪ A situação de Maria leva-o a, por um lado, desejar que ela viva (“Peço-te vida, meu Deus, peço-te vida, vida… vida para ela,”), pois é uma vítima inocente (é o amor de pai a falar), e, por outro, a pedir a sua morte (“meu Deus! eu queria pedir-te que a levasses já”), já que tem consciência das consequências que se irão abater sobre a filha, que será marginalizada pela sociedade (“vai cair toda essa desonra, toda a ignomínia, todo o opróbrio.”). É um pai a sangrar pela desonra que se abateu sobre a filha.

▪ Considera D. Madalena uma «infeliz» e «desgraçada» por ter sido arrastada por ele para a vergonha e para a infâmia.

▪ As atitudes corporais de Manuel de Sousa (os atos de se levantar e de apertar a mão do irmão enquanto fala) demonstram o seu nervosismo e a sua aflição.

▪ O seu discurso reflete a emotividade que o caracteriza ao longo da cena: frases curtas (“Oh, minha filha, minha filha!”), alternando com frases longas de construção erudita (terceira fala de Manuel de Sousa); apóstrofes (“Olha Jorge”); hipérboles (“bebeu até às fezes o cálix das amarguras humanas”; “A lançar sangue?... Se ela deitou o do coração”); metáforas (“para pôr tudo na testa branca e pura de um anjo”); frases de tipo exclamativo e interrogativo. Todos estes recursos conferem ao discurso uma grande intensidade dramática.

▪ Manuel de Sousa está prestes a ingressar no convento e a tornar-se Frei Luís de Sousa.

▪ Note-se o contraste entre o Manuel de Sousa Coutinho que encontramos nos atos I e II e aquele que nos é dado a conhecer nesta cena. De facto, nos atos anteriores, a personagem surgiu em palco como um homem sensato, racional, determinado, pragmático e corajoso, porém, agora, após a chegada do Romeiro e o agravamento do estado da filha, revela-se uma figura dilacerada, profundamente infeliz, desesperado, quer pela doença da filha, quer pela desgraça que está a abater-se sobre a família, quer por se sentir o maior culpado pela infelicidade dos outros.

▪ Nesta mesma cena, é possível observar que a personagem oscila entre a emotividade e a racionalidade. A primeira, bem ao gosto romântico, manifesta-se essencialmente sempre que se refere a Maria, enquanto a racionalidade que o caracterizava anteriormente aflora quando, após analisar a situação em conjunto com Frei Jorge, assume a tomada de hábito como a solução mais adequada para o problema.


Caracterização de Frei Jorge

▪ A principal função de Frei Jorge é ser o confidente e conselheiro do irmão, informando-o (sobre o destino da mulher e da filha), orientando-o e consolando-o, após as terríveis notícias.

▪ Quando Manuel de Sousa se diz o homem mais infeliz na Terra, Frei Jorge recorda-lhe a situação de D. João de Portugal, que perdeu tudo quanto tinha.

▪ Procura consolar o irmão, dizendo-lhe que encontrará a paz e a redenção na religião, mas não deixa de o chamar à razão de forma inflexível, impedindo-se de se deixar cegar pelo seu sofrimento e desespero.

▪ A sua fé e a sua lucidez orientam as ações de Manuel de Sousa, que está incapaz de decidir racionalmente.

▪ Procura manter-se tranquilo e sensato, não se deixando dominar pelos acontecimentos funestos. Ele aceita-os como resultado da vontade divina, que não pode ser contestada.

▪ É um homem prático perante as circunstâncias, por isso prepara a entrada de Manuel de Sousa e de D. Madalena no convento, que considera ser a única possibilidade para o casal remediar a situação.


Informações sobre o passado recente

O diálogo que ocorre nesta cena entre os dois irmãos veicula um conjunto de informações sobre o que se passou no curto espaço de tempo que mediou entre o final do ato anterior e o início deste:
- D. Madalena e Manuel de Sousa decidiram entrar na vida religiosa como solução para o problema;
- o estado de saúde agravou-se desde a chegada a Lisboa;
- somente o arcebispo, Manuel de Sousa e Frei Jorge conhecem a identidade do Romeiro, que chegará ao conhecimento das outras personagens por fases (“Demais, o segredo de seu nome verdadeiro está entre mim e ti, além do arcebispo.”);
- Maria não sabe dos últimos acontecimentos em torno de D. João de Portugal;
- Telmo irá encontrar-se com o Romeiro, a pedido deste.


Linguagem e recursos estilísticos

Metáforas e hipérboles: de caráter religioso, traduzem o sofrimento das personagens e apontam para a ideia de morte:
. “bebeu até às fezes o cálix das amarguras humanas”;
. “cobri-lhas de um véu de infâmia que nem a morte há de levantar, porque lhe fica perpétuo e para sempre lançado sobre o túmulo a cobrir-lhe a memória de sombras… de manchas que se não lavam!”;
. “Já que te não pode apartar o cálix dos beiços”;
. “cubra-me o escárnio do mundo, desonre-me o opróbrio dos homens, tape-me a sepultura uma loisa de ignomínia, um epitáfio que fique a bradar por essas eras desonra e infâmia sobre mim”.


Características românticas:
. forma do texto: escrito em prosa;
. religiosidade: referências ao cristianismo e ao culto religioso – preparação da tomada de hábito;
. o tema da morte, encarada como a melhor solução para os conflitos;
. o individualismo: o confronto entre o indivíduo e a sociedade.


Características trágicas

▪ A hybris de Manuel de Sousa, que chega a desejar a morte da filha face à sua ilegitimidade.

▪ Os indícios de tragédia: quando Manuel de Sousa a designa por «anjo» , prenuncia a sua morte, o seu abandono do mundo terreno, visto que os anjos não pertencem ao mundo físico terreno.

Análise da Cena 2 do Ato III de Frei Luís de Sousa

● Telmo entra em cena, juntando-se a Manuel de Sousa e Frei Jorge, trazendo notícias sobre Maria:
- Maria acordou e sente-se melhor;
- apesar de abatida, fraca e com voz lenta, o seu olhar está mais sereno e animado;
- perguntou pelo pai e pelo tio, mas não se referiu à mãe.
A este propósito, há que notar a hesitação de Telmo quando refere por quem Maria perguntou: «Perguntou por vós… ambos.», pois não quer dizer que ela nada questionou acerca da mãe. Esta postura de Maria talvez signifique que responsabiliza a mãe pelo que está a acontecer, que a culpa pela tragédias iminente.

Quando entra em cena, Telmo diz simplesmente «Acordou.», não sentindo a necessidade de identificar a quem se refere. Este comportamento justifica-se por ser desnecessária essa identificação, dado que Maria está presente no pensamento e na preocupação de todos.

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