A Musa avisa o «eu», antes mesmo de
desempenhar a sua função (relembremos que o papel das musas era dar inspiração
ao poeta), que lhe cortará a língua por ele ter cantado “sem saber / que cantar
custa uma língua” (vv. 3-4). Trata-se, portanto, de uma musa cruel, perversa,
castigadora, vingativa e maldosa, características evidenciadas pela “ameaça”
que faz ao sujeito poético.
Apesar de reconhecer a crueldade da
sua Musa, o «eu» lírico não tem outra opção que não continuar a conviver com
ela. Assim sendo, o retrato da Musa que é apresentado neste poema é oposto ao
que a mitologia tradicionalmente sustenta: uma divindade que inspirava e
auxiliava os poetas na escrita do poema. De acordo com a Teogonia, de
Hesíodo, sem as musas não poderia haver poesia/canto, visto que a elas se
atribui o aparecimento da linguagem e, por consequência, o aparecimento do
mundo – é na linguagem e pela linguagem que se pode pensar e conceber o mundo.
Deste modo, Hesíodo apresenta-nos as musas como as divindades responsáveis pela
inspiração dos poetas e pela criação e propagação do canto através da
linguagem.
Sucede que, neste poema, a Musa
inspira o sujeito lírico através de um ato cruel e perverso: arrancar a língua.
A composição estrutura-se a partir de um suposto diálogo entre ambos: ele fala
nos versos 1 e 2, abrindo o texto, e 7 e 8, fechando-o, enquanto a figura
mitológica se faz ouvir nos restantes. Esse diálogo é bem evidente pelo uso das
formas verbais nas primeira e segunda pessoas.
A nível estilístico, a repetição
irónica da expressão “minha Musa” acentua o papel tirânico e cruel que a divindade
desempenha na vida do sujeito lírico. Por sua vez, a repetição do nome “língua”
é plurissignificativa. Assim, no verso 4, este vocábulo remete para o órgão
humano que é responsável pela produção de sons e pela comunicação através da
fala. A expressão “custa uma língua”, presente ainda nesse verso, constitui uma
espécie de alerta que a Musa dirige ao «eu» de que o ato de cantar, isto é, de
fazer poesia, não é gratuito nem simples. Quem deseja «cantar» tem de ter
consciência de que uma língua e uma cultura possuem um arcaboiço literário e de
que necessita de respeitar os “pilares literários” que estruturam e
contribuíram para a criação desse mesmo arcaboiço. Por seu turno, o uso de “língua”
no quinto verso remete novamente para o órgão da fala: como o sujeito poético
desrespeitou o aviso da Musa, a sua língua será cortada.
Este acarretará, naturalmente, consequências.
Em primeiro lugar, causa a mudez do sujeito lírico, pois, com a língua cortada,
não conseguirá falar, o que inviabilizará a sua comunicação. No entanto e apesar
disso, ele ainda produz um canto, o que significa que a Musa lhe cortará a
língua para que ele aprenda a cantar e não para o tornar mudo. Assim sendo,
este ato paradoxal põe em causa o tipo de “canto” que é permitido ao sujeito
poético, que parece distanciar-se “do cantar repassado pela tradição literária”.