Português: 06/01/20

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Didascália inicial do ato II de Frei Luís de Sousa

1. ESPAÇO

1.1. Espaço físico / geográfico

NOTAS:

1.ª) Salão despido, pouco confortável, sem qualquer marca de humanização.

2.ª) Espaço mais sombrio, frio, austero, escassamente iluminado e fechado, o que está em sintonia com o estado de espírito das personagens, cada vez mais angustiadas e cercadas pelo Destino.

3.ª) Espaço opressivo, de confidências e também de recordação e reencontro com o passado, contribuindo para o avolumar do «pathos».

4.ª) Um trio de retratos ocupa um espaço privilegiado, numa cumplicidade onde se misturam o idealismo, o patriotismo, a desgraça e a fatalidade. Camões, grandioso épico que dedica a D. Sebastião Os Lusíadas, pedindo-lhe que dê matéria a outra epopeia, incentivando o jovem monarca a cometer grandes feitos no Norte de África para concretizar ideais elevados (difusão do Cristianismo e engrandecimento da Pátria); D. Sebastião não concretizará o seu ideal, morrendo na batalha de Alcácer Quibir. D. João de Portugal, um dos nobres que integrou o trágico exército, nobre honrado, patriota, fiel e corajoso, também desapareceu naquele fatídico areal africano.

5.ª) O ambiente fechado parece escassamente iluminado, evidenciando-se os reposteiros pesados de tecidos espessos de amplas dimensões, por um lado, indiciando que ocultam algo, por outro lado, remetendo para a ideia de que, uma vez descerrados, se passará para um outro espaço, que estará ligado a uma qualquer desgraça ou fatalidade.

6.ª) A mudança de lugar, decorrente do acto de Manuel deitar fogo ao seu palácio (traço histórico), é feita para um mundo absolutamente fechado em si próprio (cenários dos 2.º e 3.º actos). O palácio agora ocupado pertence ao marido que regressa, insufla vida ao passado. As recordações transformam-se logo em pressentimentos. O espaço anuncia a desgraça que se aproxima, tem uma acção fatal, opressiva, ominosa.

Análise da Cena 15 do Ato II de Frei Luís de Sousa

Comentário da cena

Frei Jorge, atónito, ainda não completamente esclarecido, interroga o Romeiro para desfazer as últimas dúvidas. No entanto, é para ele que está reservada a última surpresa:
JORGE – «Romeiro, romeiro, quem és tu?»
ROMEIRO (apontando com o bordão para o retrato de D. João de Portugal) – «Ninguém».
O vocábulo posto na boca do Romeiro – ninguém (pronome indefinido) – encerra uma grande carga dramática e psicológica. Por um lado, é o desenlace trágico de uma situação insustentável; por outro, resume todo o sofrimento e a desilusão do Romeiro, que nada mais pode esperar da vida familiar. De facto, o sentido da palavra é abrangente: D. João de Portugal é ninguém no sentido de não ser esperado por nenhum dos seus familiares, que organizaram a sua vida na base da sua morte; a sua própria casa já não lhe pertence, está ocupada por um intruso. Assim, o Romeiro anula-se enquanto pessoa com identidade própria, por não ter existência para os outros, por não ter a vida a que tinha direito, uma vez que a sua própria família construiu, a partir da sua «morte», uma à sua. De facto, o Romeiro fizera todos os esforços para se manter vivo na Palestina e regressar a Portugal para a sua esposa, mas esta não só já não o esperava, como também construíra a sua felicidade em cima da sua «morte». Assim, apagado da memória da mulher que amava e era toda a sua família, D. João de Portugal perdeu tudo durante os 20 anos de cativeiro: – a família; – a identidade (ninguém o reconhece); – o lugar que era seu / a sua casa. D. João de Portugal, aniquilado, é o símbolo de Portugal. Além deste sentido, pode também ser interpretada como outra prolepse, uma antecipação do desenlace de D. João: o anonimato.
E ali está presente e vivo D. João, alçado no meio da casa, com aspeto severo e tremendo. Ele vem reclamar tudo a que tem direito: a casa, a esposa, o nome... Quem poderá negar-lhe esse direito? Que lei, divina ou humana, poderá ser invocada para, com justiça, lho negar?
Frei Jorge compreende, por fim, toda a verdade. E só então parece medir o alcance das implicações desastrosas que essa descoberta vai trazer para D. Madalena, para Manuel de Sousa e para Maria. Daí que Frei Jorge caia prostrado no chão, com os braços estendidos diante da tribuna, como a implorar do Céu remédio, para o que, desde agora, já não tem nem pode ter remédio.

NOTAS:

1.ª) A figura do Romeiro concretiza a figura de D. João:
. sem o seu aparecimento não haveria drama;
. é o agente destruidor da tranquilidade da família, aparentemente feliz;
. é uma espécie de fantasma ou entidade abstrata nos dois primeiros atos, que absorve os pensamentos de Madalena, Telmo, Manuel e do próprio Frei Jorge;
. no ato III, vai precipitar o desenlace trágico, apesar da sua atuação como personagem ser reduzida.
Sobre a figura do Romeiro, informa António José Saraiva: "O Romeiro é o portador da fatalidade: o aparecimento dele vem anular toda a vida que se erguera sobre o pressuposto da morte de D. João de Portugal; anular o segundo casamento da sua esposa viúva e riscar do rol dos vivos a filha que desse casamento nascera. O passado, que se julgava morto como um vulcão extinto, vem tragar os vivos que se tinham instalado na sua cratera.".

2.ª) O tempo (hoje) e o espaço (a área da moldura do retrato) atingem forte concentração, direcionando a ação dramática para a catástrofe.

3.ª) Esta é uma cena dispensável para os espectadores/leitores, que já sabem tudo; todavia, é importante para Frei Jorge que, além de acumular o máximo de informações, terá um papel importante a cumprir.

4.ª) Comparando esta cena com a última do primeiro ato, constata-se que são ambas espetaculares e que o paralelismo de construção é uma constante no Frei Luís de Sousa.

5.ª) Quem, além dos espectadores/leitores, fica a saber, no final do segundo ato, que o Romeiro é o próprio D. João de Portugal?
D. Madalena, ausente desde o fim da cena anterior, só ficou a saber pelas palavras do Romeiro-mensageiro que D. João de Portugal esteve sempre vivo durante todos aqueles anos, que estava ainda vivo nessa altura, que lhe enviou aquele estranho recado.
As restantes personagens encontram-se em Lisboa.
Só Frei Jorge, confidente qualificado, na dupla posição de irmão de Manuel de Sousa e cunhado de D. Madalena, e de sacerdote, recebe e percebe totalmente a informação de que conclui, sem dúvida, estar em presença do próprio D. João de Portugal.
Por isso, haverá outros momentos de anagnórise, de modo que todas as outras personagens, frente a frente, reconheçam no Romeiro o próprio D. João de Portugal.


Características trágicas (cenas 14 e 15)

▪ O simbolismo do tempo: D. João regressa numa sexta-feira (o4/08/1599), no vigésimo primeiro aniversário da batalha de Alcácer Quibir (sexta-feira)  21 = 7 (tragédia) x 3 (perfeição) = tragédia perfeita.

▪ Semelhança do assunto com as antigas tragédias gregas: a volta de D. João sob disfarce de um mendigo (Ulisses).

Hybris de D. João de Portugal
A hybris de D. João é anterior ao início da ação:
-» abandona a esposa, embora por razões nobres: acompanha o rei à guerra, em defesa do reino e da Fé, por motivos cavaleirescos; na sociedade feudal, aos nobres cabia combater, pelo rei e pela grei, e em defesa da Fé. Era este um dos ideais da cavalaria medieval. Por esse ideal se arriscava a vida, se sofria a morte, ou o cativeiro, e se atingia a glória: como diz Manuel de Sousa: "... não hajais medo que nos venha perseguir neste mundo aquela santa alma que está no céu, e que em tão santa batalha, pelejando por seu Deus e por seu rei, acabou mártir às mãos dos infiéis" (I, 8);
-» o abandono da esposa é um crime contra as leis e os direitos da família, porque a destrói. É um crime de impiedade;
-» embora vivo, depois da batalha, fica prisioneiro, é levado cativo para Jerusalém e, durante quase 21 anos, não dá notícias suas, embora contra vontade;
-» todos o consideram morto.

Agón de D. João de Portugal
Antes do regresso, na figura do romeiro-mensageiro, os conflitos com as outras personagens manifestam-se:
1. em D. Madalena, na consciência atormentada pelos remorsos;
2. em Telmo:
- nos ciúmes, nos agouros e profecias, na crença no regresso de seu amo, baseado nos dizeres de a célebre carta, escrita na madrugada da batalha;
- nas prevenções e nas opiniões desfavoráveis a Manuel de Sousa, em confronto com as qualidades de D. João;
- na animadversão contra Maria;
3. em Maria, nos sonhos premonitórios e na sagacidade com que perscruta as palavras e as meias-palavras, os silêncios, os olhares, os gestos da mãe e do pai, o conflito com Telmo, até lhe ser revelada a identidade da figura do retrato (II, 2).
Mas o conflito, face a face, com D. Madalena, verifica-se com a entrada do romeiro-mensageiro (II, 14), em todo esse diálogo de grande densidade.
Nessas frases do Romeiro, carregadas de duplos sentidos, de alusões veladas ou claras, mas sempre diretas, de ironias, de sarcasmos, de graves acusações, as palavras ferem como punhais; por isso este diálogo é, antes de tudo, um autêntico duelo de palavras, em que D. Madalena por fim sucumbe, naquele grito espantoso, em tom cavo e profundo, grito de coração – como indicam as rubricas
Em primeiro lugar, o Romeiro não é apenas um mensageiro, um qualquer que traz um recado. É um português "como os melhores": os melhores são os nobres, os aristocratas. É esse mesmo o significado da palavra. Em segundo lugar. Viveu nos Santos Lugares "vinte anos cumpridos". Em terceiro, operou-se nele uma grande mudança entretanto: "Estou tão velho e mudado do que fui". Em quarto, se houve mudanças físicas, os sentimentos, as paixões permaneceram: "... as paixões mundanas, e as lembranças dos que se chamavam meus segundo a carne travavam-me do coração e do espírito...". Em quinto, não tinha deixado descendência: "Eu não tenho filhos, padre". Em sexto, já não tem família: "Já não tenho família". A frase é ambígua; os advérbios marcam, com amarga ironia, o presente estado de coisas no seu lar, em confronto com o passado. E parentes? Amigos? "Os mais chegados, os que me importava achar... contaram com a minha morte, fizeram a sua felicidade com ela". Esta resposta é uma alusão pungente e de amarga ironia à esposa infiel. E segue-se-lhe outra grave acusação: "Necessidade pode muito. Deus lho perdoará, se puder". Que sarcasmo e que crueldade do Romeiro contra D. Madalena. E ele prossegue: "De parentes já sei mais do que queria. Amigos, tenho um; com esse conto", numa referência óbvia a Telmo. Qual será a sua desilusão, quando mais tarde verificar que também perdeu esse amigo? Por fim, nova cruel ironia, novo sarcasmo: "Agora acabo; sofrei, que ele também sofreu muito".

Há ainda outros elementos desse conflito, na progressiva identificação do romeiro-mensageiro com a figura de D. João de Portugal:
1. Quem o encarregou de trazer o recado foi "... um honrado homem... a quem unicamente devi a liberdade... a ninguém mais". Esta frase ambígua é, todavia, muito clara para quem tivesse ouvidos para ouvir.
2. "... lágrimas de sangue que lhe vi chorar, que muitas vezes me caíram nestas mãos, que correram por estas faces. Ninguém o consolava, senão eu... e Deus!". A identificação está bem clara. Só uma espécie de anestesia moral muito inquietante, dadas as circunstâncias, é que poderá explicar a falta de clarividência de D. Madalena.
3. Mais claro ainda, se é possível: conhecê-lo-ia "Como se me visse a mim mesmo num espelho".
Mas, afinal, não bastou tudo isto. Foi preciso que Frei Jorge tomasse a iniciativa de obrigar o Romeiro a procurar, de entre os retratos, aquele que representava D. João de Portugal, para D. Madalena abrir por fim os olhos à evidência, e sucumbir, no fim deste duelo, desta luta de golpes certeiros.

▪ O aparecimento do Romeiro, pelo aspeto com que se apresenta, pela determinação de quem sabe o que faz e o faz do modo que quer, pela terrível mensagem de que é portador, pelo reconhecimento da sua verdadeira identidade:
. não é um acontecimento gratuito;
. nem desprovido de significado;
. antes verosímil e necessário, porque o argumento da tragédia gira à volta de um regresso do marido ausente, e porque assim o sentem as personagens envolvidas;
. constitui, portanto, uma autêntica peripécia, que se caracteriza por ser imprevista e imprevisível quanto ao mandatário, quanto ao teor da mensagem, quanto ao reconhecimento da personagem oculta.

▪ A peripécia é dinâmica, porque faz progredir e intensificar a ação (clímax) até ao ponto culminante (acmê).

▪ A intensificação da ação provoca sofrimentos terríveis (pathos), sobretudo em D. Madalena, mas também em Frei Jorge e, posteriormente, nas outras personagens.

▪ O ponto culminante corresponde ao momento do reconhecimento (anagnórise) da última cena.

▪ Verdadeira «reviravolta da fortuna», na designação aristotélica, a anagnórise precipita, por fim, o desfecho (catástrofe), pela grave modificação das posições relativas de cada personagem.


Duas notas finais:

1.ª) a extrema economia de meios, a densidade da «trama dos factos» e a concentração de efeitos (cenas 11 a 15);

2.ª) a forma como Garrett segue o preceito aristotélico: "A mais bela forma de reconhecimento é a que se dá com a peripécia".


Análise da Cena XIV do Ato II de Frei Luís de Sousa

Assunto

O Romeiro, na função de simples mensageiro portador de um recado, é admitido à presença de Frei Jorge e de D. Madalena, logo por ele identificada (II, 13) como «a mesma» a quem desejava falar. Esta fala do Romeiro pode ter dois sentidos: aquela que dizeis ser ou aquela que eu conheço muito bem. Obviamente, é o primeiro sentido que D. Madalena e Frei Jorge terão entendido.


Comentário global da cena

Seria esta personagem uma presença pacífica, se não fossem certas particularidades únicas e excecionais, reveladas pelas palavras e pelas atitudes do Romeiro, que o dão a conhecer como autêntica personagem e não apenas como um mensageiro qualquer. Começa por se afirmar como um português que vem dos Santos Lugares, após 20 anos aí passados. Mas logo as suas palavras e atitudes patenteiam uma inquietante luta verbal, uma presença perturbadora: "Queria rezar e meditar nos mistérios da Sagrada Paixão que ali se obrou... e as paixões mundanas e as lembranças dos que se chamavam meus segundo a carne travavam-me do coração e do espírito, que os não deixavam estar com Deus, nem aquela terra que é toda sua".
Os sofrimentos do Romeiro, recalcados durante 20 anos, eram provocados pelas lembranças da esposa. Pois quem seriam os que se "chamavam meus segundo a carne" senão a própria esposa? Não declara ele a Frei Jorge que "não tem filhos"? E logo acrescenta: "A minha família... Já não tenho família". A amargura perante a triste realidade que veio encontrar está toda contida naqueles dois advérbios.
D. Madalena, compassiva, lembra-lhe que "sempre há parentes, amigos...", ao que o Romeiro rapidamente retorque: "Parentes!... Os mais chegados, os que eu me importava achar... contaram com a minha morte, fizeram a sua felicidade com ela: hão de jurar que me não conhecem". E a verdade é que D. Madalena, frente ao primeiro marido, dialogando com ele, não o reconhece, nem sequer pela voz. Se o que lhe importava achar eram os parentes mais chegados e estes estavam reduzidos à esposa, então a censura, na maneira de ver e sentir do Romeiro, ajustava-se perfeitamente à realidade: D. Madalena contara com a morte de D. João, fizera a sua felicidade com ela, isto é, casara-se segunda vez por se julgar viúva. E desta vez com o homem que sempre amou, desde que o viu pela primeira vez. Conclusão lógica: havia de jurar que não o conhecia.
D. Madalena, porém, parece anestesiada: nada vê, nada sente, nada compreende. E a cegueira é tão profunda que nem dá conta de se condenar pelas suas próprias palavras: "Haverá tão má gente... e tão vil, que tal faça?" A resposta do Romeiro é rápida e cortante: "Necessidade pode muito. Deus lho perdoará, se puder!". É mais um golpe certeiro no mais profundo da alma de D. Madalena, que, no entanto, o julga apenas resultado de "juízos temerários".
Oferece-lhe, então, D. Madalena "amparo e agasalho", promete-lhe proteção, sua e do marido. O Romeiro, a estas palavras, ofende-se, diante de tantos oferecimentos, sublinhados com a palavra marido. Marido, ali, em sua própria casa, para a sua própria esposa, era ele; não Manuel de Sousa, o intruso. D. Madalena pede-lhe perdão, se o ofendeu. A resposta do Romeiro fere novamente como punhal afiado: "Não há ofensa verdadeira senão as que se fazem a Deus. Pedi-lhe vós perdão a Ele, que não vos faltará de quê". Torna D. Madalena: "Não, irmão, não decerto. E Ele terá compaixão de mim", ao que o Romeiro responde: "Terá...". Ora, este futuro dubitativo significa que, no entender do Romeiro, Deus não perdoará à esposa que o abandonou e traiu. E isto dito frontalmente, cara a cara. Assim o terão compreendido Frei Jorge, que, diz a didascália, «corta a conversação».
De facto, a conversação, o diálogo, já tinha ido muito longe entre as duas personagens. Mas nem deste modo D. Madalena compreende, não obstante ficar malferida, neste começo nada prometedor. Frei Jorge corta a conversação e ordena ao Romeiro que dê o recado àquela dama. D. Madalena, procurando ganhar tempo, intervém: "Deixai, deixai, não importa, eu folgo de vos ouvir: dir-me-eis o vosso recado quando quiserdes... logo, amanhã...". Assim seria, com grande alívio para D. Madalena, se o Romeiro não estivesse preso por um juramento solene: "Hoje há de ser. Há três dias que não durmo nem descanso, nem pousei esta cabeça, nem pararam estes pés dia nem noite, para chegar aqui hoje, para vos dar meu recado... e morrer depois... ainda que morresse depois; porque jurei... faz hoje um ano... quando me libertaram, dei juramento sobre a pedra do Santo Sepulcro de Cristo...".
Das palavras do Romeiro se conclui que o dia da entrega do recado era importante para o suposto companheiro de cativeiro: "Hoje há de ser"; que dar o recado nesse dia era uma questão de vida e de morte: "... para vos dar meu recado... e morrer depois... ainda que morresse depois... ". Para D. Madalena, este era o dia fatal, indesejado e temido, pela sobrecarga, pela acumulação de coincidências desastrosas (II, 10). Para quem mandou o Romeiro (e singularmente também para o próprio Romeiro) este dia também o dia fatal, em que se cumpriam 21 anos sobre o desastre de Alcácer Quibir: 20 anos de cativeiro, mais um ano de viagem, com a agravante de os 3 últimos dias serem de marchas forçadas, para o mensageiro chegar à presença de D. Madalena no dia exato, aquela sexta-feira, o dia fatal: "Hoje há de ser".
D. Madalena, «aterrada», finalmente pressente, sabe quase de certeza, que o autor do recado não pode ser senão D. João de Portugal, ainda não libertado, mas vivo. E indaga:
" E quem vos mandou, homem?
– Como se chama?".
O Romeiro, apesar de vir da parte de um "honrado homem... a quem unicamente devi a liberdade...", companheiro de todas as horas durante 20 anos, responde estranha e enigmaticamente que nada mais sabe: "O seu nome, nem o da sua gente nunca o disse a ninguém no cativeiro". Só restava ao Romeiro desempenhar-se da missão de que o tinham incumbido tão solenemente, por meio de um juramento: transmitir a D. Madalena, pelas próprias palavras de quem o tinha enviado, a terrível mensagem: ""Aqui estão as suas palavras: Ide a D. Madalena de Vilhena, e dizei-lhe que um homem que muito bem lhe quis... aqui está vivo... por seu mal... e daqui não pôde sair nem mandar-lhe novas suas, de há vinte anos que o trouxeram cativo".
Ora neste recado simples e curto, de palavras medidas, mas densas de significado, diretas, claras e irrefutáveis, há vários aspetos dignos de nota:
1.º) O recado era, sem dúvida, para D. Madalena. Era ela a destinatária. Por isso é indicada pelo nome completo: "Ide a D. Madalena de Vilhena...";
2.º) O destinador da mensagem era "um homem que muito bem lhe quis...", isto é, que a amou. Não poderia ser outro senão D. João de Portugal, o primeiro marido;
3.º) Ao contrário do que D. Madalena supôs, não estava morto: "... aqui está vivo...";
4.º) Ali sofria as dores físicas e morais do cativeiro, da forçada ausência e separação da esposa: "... por seu mal...";
5.º) "Dali nunca pôde sair nem mandar-lhe novas suas", porque, se lhe fosse possível, já teria regressado a casa, ou, pelo menos, teria enviado notícias;
6.º) por fim, D. Madalena empregara, de facto, todos os meios e fizera todos os esforços para o encontrar no Norte de África, onde ele já não estava: "... de há vinte anos que o trouxeram cativo".
Não admira, portanto, a reação de D. Madalena às palavras do Romeiro: «espavorida», grita, com atroz sofrimento, vindo do fundo da alma («Meu Deus, meu Deus! Que se não abre a terra debaixo de meus pés?... Que não caem estas paredes, que me não sepultam já aqui?..."). O pavor de D. Madalena vai crescendo à medida que o Romeiro vai confirmando a identidade de quem o enviou, respondendo aos sucessivos pedidos dela de confirmação, crescendo esse que é visível nas didascálias (“na maior ansiedade”, “espavorida”), bem como na sua linguagem: frases curtas (“Cativo?”, “Português?”); frases inacabadas (“esse homem era…”); exclamações e reticências, interjeições e locuções interjetivas (“Jesus!”, “Meu Deus, meu Deus!”)
Entretanto, nas palavras do Romeiro, existem outros elementos igualmente inquietantes e que formam, numa autêntica e progressiva identificação, a imagem no espelho: "As suas palavras trago-as escritas no coração com as lágrimas de sangue que lhe vi chorar, que muitas vezes me caíram nestas mãos, que me correram por estas faces. Ninguém o consolava senão eu... e Deus".
É verosímil que o Romeiro tenha visto muitas vezes o companheiro de infortúnio chorar "lágrimas de sangue"; mas já é mais estranho que as lágrimas do outro cativo lhe tenham caído nas mãos, e muito mais estranho ainda que as lágrimas vertidas por um tenham corrido pelas faces do outro. Não estará o Romeiro, com estas ambíguas palavras e numa espécie de ilusionismo, a querer significar outra coisa, isto é, que ele e o outro eram, afinal, uma só personagem?
No diálogo que se segue com Frei Jorge, as duas primeiras respostas do Romeiro são constituídas por frases da linguagem corrente e familiar e costumam empregar-se como uma espécie de superlativo expressivo. E, no entanto, surgem aqui carregadas de preocupante segundo sentido, sublinhado não só pela prontidão e pela brevidade, mas ainda mais pelo que, em face das circunstâncias, dizem sem dizer, e pelo que sugerem ou deixam adivinhar. De facto, ao olhar para o retrato de D. João de Portugal, o Romeiro não estava só a examinar ou a comparar parecenças; com efeito, o Romeiro estava, na realidade, a ver-se ao espelho.
Que mais seria necessário para a identificação do Romeiro com D. João de Portugal?
No entanto, as reações de Frei Jorge (cena 15) e de D. Madalena não são semelhantes.
D. Madalena não conclui pela identificação da personagem aparente (o romeiro-mensageiro) com a personagem oculta ou real (o próprio marido, ali presente diante dela, embora escondido debaixo daqueles trajes, e mudado na enganosa aparência de um velho de barbas e de cabelos brancos, na anódina incumbência de trazer um recado de outro), pois sai precipitadamente da sala, aterrada, ao tomar consciência da sua situação de pecadora e da ilegitimidade da sua filha. Demasiado perturbado para com lucidez chegar a essa conclusão, apenas sente, nas palavras da terrível mensagem do Romeiro, a crueldade da reviravolta do Destino: D. João de Portugal está vivo. Se assim é, e não há possibilidade de dúvidas a este respeito, todos os sonhos de felicidade neste mundo desabam para D. Madalena, todos os laços afetivos, que a prendem a Manuel de Sousa e à filha, se destroem irremediavelmente. É a ruína da «sua» família, a desolação e a infelicidade para cada um dos seus membros. Por isso D. Madalena "foge espavorida", numa última tentativa de se afastar de tão implacáveis desgraças trazidas pelo Destino.

NOTA:
D. Madalena, geralmente tão sensível à previsão da desgraça, não é agora capaz de estabelecer qualquer relação entre o Romeiro e a situação dramática que sempre receou. De facto, o seu conflito com D. João, embora invisível, está sempre presente (I, 1, 2, 3, 7 e 8; II, 1 e 10) e, nesta cena, é intrigante a quase anestesia moral, em presença do Romeiro, de D. Madalena que, não obstante todos os elementos de identificação por ele fornecidos, de forma direta, embora velada, não reconhece o próprio marido, nem sequer pela voz.


Estrutura interna da cena

1.ª parte (do início até “… logo, amanhã…”): o Romeiro revela o local onde viveu durante os últimos vinte anos, os padecimentos que sofreu, a perda da família e a certeza de ter um só amigo.

2.ª parte (de “Hoje há de ser…” até ao fim): a noção de que D. João está vivo e o estado emocional de D. Madalena vão crescendo até


Caracterização de D. João de Portugal
- é português;
- vem do Santo Sepulcro;
- viveu nos Lugares Santos durante 20 anos;
- modelo de virtudes do cavaleiro cristão:
. no amor pelo Rei e pela Pátria, de que tem o nome;
. no combate contra os inimigos da Fé, pela qual expõe a vida;
. nos sofrimentos do cativeiro, onde está 20 anos:
* muita fome;
* os maus tratos;
* as privações;
* o distanciamento;
* a falta de notícias;
* o amor e a saudade da esposa (este amor e esta saudade de D. Madalena – as “paixões mundanas” e as lembranças dos que se chamavam seus “segundo a carne” – sobrepuseram-se sempre à sua fé, isto é, impediram-no de “rezar e meditar nos mistérios da Sagrada Paixão”);
- não tem filhos, nem família, nem parentes;
- os mais chegados consideram-no morto;
- apenas tem um amigo (Telmo);
- irritado e ofendido quando D. Madalena lhe oferece o seu "amparo e agasalho" e do marido;
- cansado, não se poupou a esforços e muito padeceu para ali chegar naquele dia;
- veio para cumprir um juramento feito a alguém: "... antes de um ano cumprido, estaria diante de vós e vos diria da parte de quem me mandou...";
- sofreu imenso: chorou lágrimas de sangue.


Caracterização de D. Madalena

O estado de espírito de D. Madalena vai evoluindo ao longo da cena e é marcado por diferentes sentimentos e emoções:
▪ boa vontade, simpatia e curiosidade iniciais quando recebe o Romeiro;
▪ admiração e estranheza pelo facto de o Romeiro dizer que já não tem família;
▪ ansiedade (e medo) de saber a identidade do homem que enviou o Romeiro;
▪ a ansiedade vai crescendo à medida que o Romeiro vai desfiando revelações que a fazem ter quase a certeza de que D. João está vivo e foi ele quem enviou aquele;
▪ o sofrimento e o terror atingem o ponto culminante quando o Romeiro, sem hesitar, identifica o retrato de D. João;
▪ terror e pavor, que a fazem gritar e fugir, quando tem a certeza de que D. João está vivo.
Note-se, mais uma vez, como o seu discurso reflete o aumento da perturbação de D. Madalena:
▪ frases interrogativas curtas (“Cativo?”);
▪ frases suspensas, inacabadas (“Sim, mas…”);
▪ repetições lexicais (“Minha filha, minha filha, minha filha!...”);
▪ acelerações rítmicas (“Estou… estás… perdidas, desonradas… infames!”).

NOTAS:

1. O Romeiro dá-se a conhecer gradualmente, por fases que se podem delimitar segundo parâmetros: local de onde vem, identidade, família, cativeiro e libertação, identidade do que o enviou, gesto de reconhecimento (cena 15).

2. O diálogo assenta num crescendo emocional gradual, que tem por finalidade contribuir para um ambiente altamente dramático, para adiar o clímax e fazer sofrer D. Madalena.

3. O Romeiro desdobra-se num eu e num ele (desdobramento de personalidade); D. Madalena recusa até ao máximo possível a verdade, pretendendo iludir-se.

4. Os espectadores/leitores depressa compreendem que o Romeiro é D. João de Portugal; D. Madalena só no final da cena tem a sua anagnórise (reconhecimento de que está vivo D. João).

5. A perturbação de D. Madalena é acompanhada da alteração da sua linguagem: frases curtas, inacabadas, repetições, ritmo acelerado.

6. D. Madalena grita pela filha e parece esquecer Manuel de Sousa. É que a filha é ilegítima e Manuel de Sousa já não existe como marido. De facto, D. Madalena grita que ela e a filha estão perdidas, pois o facto de D. João, o primeiro marido, estar vivo a reduz à condição de mulher adúltera e bígama e torna a filha ilegítima.

7. O facto de o Romeiro não revelar de imediato a sua identidade permite-lhe ter um discurso ambíguo, através do qual critica D. Madalena por ter construído uma nova vida e constituído uma nova família a partir da sua suposta morte. Ironicamente, é D. Madalena quem, mesmo sem o saber, se critica a si mesma: “Haverá tão má gente… e tão vil, que tal faça?”.


Tom dramático da cena

Esta cena é profundamente dramática. Este dramatismo é cuidadosamente construído, sobretudo a partir das falas do Romeiro:
* vai semeando pistas sobre a sua identidade, mas com um discurso ambíguo;
* a atitude orgulhosa e ofendida do Romeiro quando D. Madalena lhe oferece proteção, juntamente com o seu marido;
* a acusação velada do Romeiro a D. Madalena, quando lhe diz que ela terá de pedir perdão a Deus pelas suas ofensas;
* a descrição dos sacrifícios feitos pelo Romeiro para trazer o recado a D. Madalena;
* a informação de que foi cativo em Jerusalém e que é daí que traz o recado;
* o adiar da transmissão do recado;
* as perguntas feitas por uma Madalena ansiosa e cada vez mais apavorada na tentativa de descobrir a identidade do homem que enviou o recado;
* o momento em que o Romeiro identifica D. João no retrato.


Valor do deítico «hoje»

O advérbio de tempo «hoje» refere-se ao dia 4 de agosto de 1599. Ao estar associado ao complexo verbal com valor de obrigatoriedade “há de ser”, indica a determinação do Romeiro entregar o recado que traz naquele preciso dia, pois corresponde a um juramento feito um ano antes.
Esta determinação é reforçada pelo uso do quantificador numeral 3 (“Há três dias que não durmo, nem descanso.”). Ora, este número simboliza a perfeição e as três fases da existência, logo significa que aquele é o dia em que o recado terá forçosamente de ser entregue ao seu destinatário.


Análise da Cena XII do Ato II de Frei Luís de Sousa

Assunto

Se, no final da cena anterior, D. Madalena manifesta toda a sua boa vontade para receber o Romeiro, nesta Frei Jorge expressa algum cuidado, pois estava-se numa época em que, de facto, havia muitos peregrinos, mas também falsos romeiros que, à custa de enganos, queriam beneficiar da caridade da aristocracia.
Por outro lado, a expressão “E nestes tempos revoltos” conduz-nos ao tempo histórico da peça. Para compreender o seu significado, transcrevemos um excerto da página 135 do manual Caminhos 11, da Areal Editores e da autoria de Elsa Freitas et alii: «Na verdade, os tempos são revoltos, pois Portugal, com a morte do rei D. Sebastião em Alcácer Quibir, estava sujeito ao “domínio filipino”. Perante a perda da independência e da soberania, o país, empobrecido e desalentado, vivia um clima de contestação, popularmente alicerçado na crença sebastianista, a qual preconizava o regresso do rei e, com ele, a nova glória do reino.».

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