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quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Análise de "Meu senhor arcebispo, and'eu escomungado"

Assunto
 
            Esta é uma das três cantigas de que temos conhecimento que se focam na posição adotada pelos alcaides na célebre crise de 1245-1247 que levou à deposição de D. Sancho II.
            No caso vertente, o trovador associa-se àqueles que atribuíam à Igreja um papel determinante no que consideravam ser uma traição coletiva, a saber, a entrega dos castelos ao futuro D. Afonso III, colocando na boca do leal alcaide de Sousa a referência à excomunhão com que este teria sido brindado pelo arcebispo de Braga.
 
 
Tema: a sátira do arrependimento fingido de um ato de lealdade – a entrega do castelo sob ameaça de excomunhão.
 

Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª e 2.ª coblas) – Exposição do facto: a excomunhão do alcaide de Sousa.
 
2.ª parte (3.ª e 4.ª coblas) – Causa da excomunhão: a lealdade do alcaide, que entregou o seu castelo ao verdadeiro dono, D. Sancho II, e então finge-se arrependido do seu ato de lealdade e finge temer vir a morrer excomungado, procurando assim que lhe seja levantada a excomunhão.
 
 
Análise da cantiga
 
            O autor constrói o poema desenhando um caso hipotético em torno do alcaide de Sousa e do seu ato de contrição, onde manifesta o seu suposto arrependimento por se ter mantido leal aio seu soberano. Deste modo, o poeta critica, de forma mordaz, os que quebraram os laços de fidelidade vassálica, apontando o dedo ao clero por ter fomentado e protegido esse ato de traição para com o rei.
            A ironia percorre toda a composição, presente desde logo na súplica contrita e no arrependimento pelo ato de lealdade. É óbvio que só por ironia se pode suplicar absolvição por se ter sido leal. A lealdade constitui um ato de fidelidade aos compromissos assumidos e evidencia o sentido de retidão e de probidade do indivíduo que é leal, configurando um valor ético e um código em trono do qual se unem os elementos dos grupos feudais.
            Ao colocar a sua própria voz na voz do alcaide de Sousa, Diego Pezelho encena um discurso marcadamente sarcástico e impiedoso para todos os que traíram D. Sancho II e cederam às pretensões do Conde de Bolonha, coagidos pela ameaça da excomunhão por parte dos bispos.
            Assim, o sujeito poético da cantiga (o alcaide) dirige-se a um arcebispo (provavelmente o de Braga, D. João Viegas de Portocarreiro, um dos principais responsáveis pela deposição de D. Sancho II, integrando, por exemplo, a comitiva portuguesa que fora enviada a Lyon), pedindo-lhe absolvição, isto é, que lhe retire a excomunhão, por ter sido enganado pelo diabo a praticar um ato de lealdade. Ele tivera um castelo em Sousa, julgara agir corretamente, mantendo a fidelidade ao monarca, mas compreende agora que foi um pecado. No refrão, repetido quatro vezes, o alcaide roga ao bispo que suspenda a excomunhão. Para tal – socorrendo-se, neste ponto, do equivocatio – jurará que foi um traidor: “Soltade-m’, ai, senhor, / e jurarei, mandado, que seja traedor”. Porém, o facto de afirmar que jurará “mandado”, isto é, sob ameaça, livra-o da possível acusação de subserviência e deslealdade. Foi, por isso, que o trovador usou o conjuntivo «seja», em vez do indicativo «sou»: está implícita aí a ideia de subordinação e coação. Em contrapartida, pela expiação do pecado de lealdade e remissão da excomunhão, propõe-se jurar, «mandado», que é um traidor.
            A ironia é evidente: o que é afirmado no primeiro verso (“Meu senhor arcebispo, and’ eu excomungado”) é incongruente com o que surge nos seguintes: ninguém está à espera que alguém seja excomungado por ter sido leal nem que isso fosse um ato diabólico. Além disso, de acordo com o refrão, a absolvição derivaria de um ato de felonia que o alcaide encena ironicamente querer assumir.
            Por outro lado, é clara a intenção de criticar o ato de traição de quem alinhou com o clero e com as pretensões de D. Afonso, porque, ao fazê-lo, estaria a salvo da excomunhão. Neste contexto, assume grande relevância o primeiro verso da segunda estrofe (“Se traiçon fizesse”), que mostra como seria censurável a traição e como o poema se desenvolve em torno do arrependimento fingido do alcaide. Além disso, infere-se que a traição é um ato que se concretiza debaixo de um silêncio indigno e que, por ser tão censurável para quem o pratica, se procura emudecer: “nunca vo-la diria”.
            Nas restantes estrofes, o «eu» continua, irónica e dissimuladamente, a lamentar-se por ter sido excomungado, afirmando que defendeu e entregou o castelo ao seu legítimo «dono», convicto de que estava a fazer o que era correto (“gran cousa”), mas que, afinal, se arrependeu por não ter sido traidor.
            De acordo com Herlânder Gonçalves dos Santos (in D. Sancho II – Da deposição à composição das fontes literárias dos séculos XIII e XIV), «O escárnio explora a ambivalência irónica entre o fazer e o dizer, entre a conduta de um alcaide leal ao seu senhor, que se manteve fiel aos votos de vassalagem, que ignorou as resoluções eclesiásticas que incriminavam pela excomunhão essa fidelidade contrária aos interesses e deliberações da Igreja, e o dizer tão lamentoso quão desdenhoso da sua contrição: “Per meus negros pecados, tive um castelo forte / e dei-o a seu don(o), e ei medo da morte. / Soltade-m’, ai, senhor, / e jurarei, mandado, que seja traedor.” (vv. 13-16).
            Assim sendo, não custa concluir que um dos alvos da cantiga, se não o principal, é o poder eclesiástico, por forçar as consciências, neste caso dos alcaides, a aceitar as pretensões do futuro Afonso III. Note-se, todavia, que na composição não há qualquer referência explícita ao Conde de Bolonha, no entanto o tema e o assunto desenvolvidos focam, inequivocamente, o conflito de 1245 e a entrega dos castelos a D. Afonso, a coberto das deliberações do Concílio de Lyon.
            O outro alvo do poeta é a fidalguia militar que governava os castelos. Mais uma vez, as referências textuais a ela não são explícitas, contudo a referência ao alcaide de Sousa e à sua promessa (fingida e irónica) de traição para se libertar da pena de excomunhão não deixa dúvidas sobre quem está a ser visado: os nobres que se aliaram a D. Afonso e o clero que legitimou a traição a D. Sancho II.
 
 
Caracterização do alcaide
 
            O alcaide de Sousa apresenta-se como uma figura leal a D. Sancho II, recusando traí-lo e entregar o seu castelo a D. Afonso III. Astuto e irónico, finge-se arrependido da sua lealdade, procurando, deste modo, que lhe seja retirada a excomunhão. Ele coloca-se, pois, no papel de vítima, fazendo um discurso de aparente humildade e medo. Este mesmo discurso permite vislumbrar o do arcebispo, certamente autoritário.
            Assim, na sua figura confrontam-se duas situações: uma, de ordem religiosa: o alcaide não quer ser excomungado; outra, de cariz político: permanecer fiel e leal a D. Sancho II.
 
 
Classificação
 
            A composição poética é uma cantiga de escárnio, dado tratar-se de uma sátira direta (o alvo está identificado: o alcaide de Sousa), numa linguagem irónica e humorística, com uma finalidade moralizadora.
 
 
Forma
Estrofes: quatro quintilhas.
Métrica: versos de 12 e 6 (no refrão) sílabas métricas.
Rima:
- esquema rimático: aabb
- emparelhada
- consoante (excomungado”/”pecado”)
- rica (“excomungado”/”pecado”) e pobre (“Sousa”/”cousa”)
- grave (“excomungado”/”pecado”) e aguda (“senhor”/”traedor”)
Refrão: profundamente irónico, é através dele que o alcaide pede que o libertem da excomunhão, em troca de um arrependimento e juramento forçado e fingidos.
 
 
Recurso expressivos
Aliteração em s.
Pronomes e determinantes: sugerem uma reverência profundamente irónica pela autoridade eclesiástica (“Meu senhor arcebispo”).
Interjeição “Ai”: exprime um estado emotivo também ele fingido.
Vírgulas: permitem a bipartição do verso.
Paralelismo semântico e estrutural.
Verbos:
- tempos:
. presente: reflete a excomunhão e o pedido de libertação dela;
. pretérito: apresenta o ato que levou à excomunhão;
- modo: imperativo – traduz o pedido do alcaide no sentido de ser perdoado e libertado da excomunhão.
Ironia: figura predominante na cantiga, traduz o arrependimento fingido do alcaide pelo seu ato de lealdade. A ironia reside, pois, na interpretação às avessas das noções de fidelidade e traição.
Antítese entre lealdade e traição.
Apóstrofe: “Meu senhor arcebispo”.
 
 
Valor documental
 
            Esta cantiga assume grande importância, por causa das referências que contém a aspetos histórico-sociais do século XIII:
a) o ciclo dos castelos: conjunto de sátiras sobre a traição dos alcaides, durante o conflito que opôs D. Sancho a seu irmão, D. Afonso III, sátiras essas que defendem a fidelidade ao monarca deposto;
b) a deposição de D. Sancho II;
c) o poder da Igreja.
            A composição poética baseia-se em acontecimentos político-sociais contemporâneos: as lutas entre D. Sancho II e D. Afonso III. Embora se enchesse de prestígio na luta contra os mouros, D. Sancho II desgostou profundamente os membros do clero e alguns nobres. Em 24 de julho de 1245, o papa Inocêncio IV expendiu uma bula, pela qual o depunha do trono português e o atribuía a seu irmão, D. Afonso III, Conde de Bolonha.
            D. Sancho II lutou ainda durante algum tempo, ajudado por servidores leais, não obstante as excomunhões que contra eles lançaram o Arcebispo de Braga e os bispos de Coimbra e do Porto. No entanto, a maioria dos alcaides entregou-se a D. Afonso III, ato que, junto da opinião pública, foi considerado traição, sobretudo porque tal entrega andou de braço dado com avultadas somas de dinheiro, promessas aliciantes, medo e outros motivos menos dignos.
            A pena e a ironia dos trovadores da época não pouparam a suposta venalidade e cobardia dos alcaides que se entregaram a D. Afonso III. De facto, o trovadorismo nunca se ergueu contra a causa de D. Sancho e a favor do seu irmão. Pelo contrário, todos vituperaram a infame traição dos alcaides que entregaram os castelos do Bolonhês.
            Além disso, os trovadores denunciaram a corrupção do poder eclesiástico e da fidalguia militar, bem como o modo como a poderosa Igreja forçou as consciências esse serviu do seu poder para excomungar todos aqueles que se mantiveram leais ao seu monarca, D. Sancho II.
            Historicamente, a realidade diz-nos que boa parte do clero português, apoiado por nobres e pelo próprio papa, tomou parte na campanha cujo objetivo era a deposição de D. Sancho II. Afonso era, nessa altura, conde de Bolonha (daí o epíteto de o Bolonhês) e juntou-se às fileiras que hostilizaram o legítimo monarca. A 24 de julho de 1245, a bula Grandi non immerito depôs D. Sancho II e estabeleceu o seu irmão como regente do reino. A bula procurou justificar a deposição do monarca pelo caos generalizado em que o reino tinha caído, circunstanciando-se agravos a igrejas, mosteiros e clérigos, denunciando-se desleixo governativo e enfatizando-se resistências de D. Sancho II no que diz respeito a acolher as recomendações que a Cúria Romana lhe tinha feito até então. Assim, perante as infrutíferas tentativas de chamar o monarca à razão no sentido de manter a ordem e a justiça, e perante a sua reiterada negligência, o papa ordenou que o Bolonhês fosse o governador e curador que organizasse o reino.
            Neste contexto, Diego Pezelho coloca-se no lugar de um alcaide que entregou o castelo ao «verdadeiro dono» e, por isso, foi punido com a excomunhão.
 
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