Português: Poesia Trovadoresca
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sábado, 29 de março de 2025

Análise da cantiga "Bem sabedes, senhor rei", de Gil Peres Conde

    Esta cantiga de refrão em cobras singulares, composta por Gil Peres Conde, é constituída por três sétimas de rima cruzada e interpolada (ABABCAC) de versos em redondilha maior. Ela faz parte de um conjunto de oito cantigas alusivas à sua má estrela em terras de Castela, sendo muitas delas dirigidas diretamente ao rei e que têm evidentes ligações entre si e que, no seu conjunto, formam uma sequência biográfica.

    Na Idade Média, o poder estava centrado, respetivamente, na Igreja, nos reis e na nobreza. Comandada pelo Papa e pelos seus representantes (cardeais, arcebispos e bispos espalhados pela Europa), a Igreja tentava manipular os reinos a seu favor através da censura, regulações e excomunhões. Os reis e nobres, por sua vez, exerciam o poder local arregimentado pelas relações de vassalagem entre suserano e vassalo. Neste contexto, surgiram os chamados escárnios e chufas, ou seja, críticas direcionadas a uma pessoa ou a grupos de pessoas, seja de forma velada, como nas cantigas de escárnio, seja de forma aberta, como nas cantigas de maldizer.

    Gil Peres Conde é natural de Portugal, tendo estado ativo nas cortes de Afonso X e de Sancho IV de Castela na década de central e finais do século XIII. O trovador tornou-se célebre por ser um dos mais, senão o mais mordaz, nas suas críticas sobre o rei de Castela, que o exilou entre cerca de 1269 e 1286, talvez o ano da sua morte. Quase de certeza, pertencia à alta nobreza, no entanto perdeu o estatuto de «ricomem», ou rico-homem, quando foi exilado em Castela, devido à sua discordância relativamente à deposição de D. Sancho II, tornando-se um mero infanção (antigo título de nobreza inferior ao de rico-homem; escudeiro fidalgo). Gozava, contudo, de algum prestígio, ratificado pelas mercês recebidas do rei, o que mostra uma certa proximidade ao monarca, ainda que crítica. A discordância entre o trovador e o rei é intensificada por dois motivos principais: o poeta ter raízes portuguesas e servir um rei castelhano; e o trovador não receber do rei de Castela os soldos e doações devidas pelos serviços de guerra. As seis composições de Gil Peres Conde presentes no Cancioneiro da Biblioteca Nacional documentam o tema e exemplificam essa tensão entre suserano e vassalo.

    O trovador dirige-se ao rei por meio de uma apóstrofe (“senhor rei”) – provavelmente tratar-se-á de D. Afonso de Castela, que ele servia desde 1249 e que buscou exílio nesse reino, saindo de Portugal depois de Afonso III regressar de Bolonha, com o aval do belicoso Papa Inocêncio IV, para depor seu irmão, então monarca de Portugal, correspondendo ao facto histórico de muitos partidários de D. Sancho II terem sido forçados a refugiar-se noutros reinos depois da sua derrota – para mostrar o seu descontentamento em relação à ingratidão do rei. Qual a razão desse descontentamento? O trovador sempre foi leal ao rei (“que sempre vos guardei”) e sempre o serviu “quer a pé quer de cavalo”, porém jamais foi recompensado por isso (“sen voss’haver e sem dõa”). Porém, ele admite, de imediato, uma falha: não esteve com o monarca em boa hora (“mais atanto vos errei: / nom fui vosco em hora bõa”). Ou seja, no refrão, continuando a dirigir-se ao rei diretamente, conclui, de forma irónica, que se tinha colocado ao seu serviço numa hora menos feliz.

    No início da segunda cobla, o «eu» enumera os locais em que serviu o soberano: em Campou (provavelmente Aguilar de Campoo, localidade situada a norte de Carrión de los Condes, entre a Meseta e o mar Cantábrico), em Olmedo (cidade do sul da província de Valladolid), em Badalhou (Badajoz, cidade da Extremadura espanhola, próxima da fronteira portuguesa de Elvas) e Toledo (cidade e província de Castela – La Mancha, na margem direita do Tejo, capital da Hispânia visigótica e uma das primeiras cidades medievais da Península Ibérica, na qual o rei a quem se dirige foi coroado – “e outrossi em Toledo, / quand[o] i filhaste corõa”). A referência à coroação do monarca em Toledo, cidade onde D. Sandro IV foi coroado, na opinião de Graça Videira Lopes, implica que é a este soberano que o trovador se dirige nesta cantiga (já que o seu pai, Afonso X, foi coroado em Sevilha).

    Na terceira e última estrofe, o «eu» poético afirma que sempre protegeu muito bem o rei em todos os lugares onde andou: “Fostes mui ben aguardado / de mim sempre u vós andastes”. Note-se que a forma verbal «aguardar» é ambígua, pois pode significar «guardar» (proteger, no caso do rei) e «aguardar» (esperar). Quer isto dizer que o trovador guarda (o rei) e aguarda (o pagamento). Além disso, reforça a ideia da sua lealdade ao declarar que nunca recusou servir o rei e que este, por sua vez, nunca recusou os seus serviços. Vocábulos como «sempre», «mui», «nunca», «tanto» enfatizam a servidão leal do sujeito poético. E termina com um “mea culpa”, servil, como se estivesse pedindo uma recompensa pelos serviços prestados, mas não merecesse o favor (ironia), já que “non fui vosco em hora bõa”.

    Nesta cantiga, o trovador relata os serviços prestados ao rei, enfatiza a sua lealdade, a sua servidão, mas finalizando sempre com o reconhecimento da sua culpa, da sua falha. Este estratagema permite que a crítica ao rei seja subtil: ao mesmo tempo que não ameaça a face do monarca, reconhecendo a sua falha, exprime a sua crítica à ingratidão real. Por outro lado, a presente composição poética mostra que a crítica ao poder real se fazia de modo implícito, provavelmente só compreendida pelos recetores da época, graças ao contexto situacional.

segunda-feira, 24 de março de 2025

Análise da cantiga "A donzela de Biscaia", de Rui Pais de Ribela

    Esta cantiga de cariz satírico, da autoria de Rui Pais de Ribela, é constituída por três coblas, formadas por um dístico seguido de refrão, com rima emparelhada e versos heptassílabos alternando com pentassílabos (no refrão).

    A composição poética, de escárnio, visa uma jovem mulher, uma donzela, natural de Biscaia, um senhorio asturiano, cuja capital era Bilbao, da qual o trovador se queixa por se recusar a encontrar-se consigo: “ainda mi a preito saia / de noit’ou luar”, isto é, nunca saía ao encontro dele de noite, ao luar. Apesar disso, embora desprezado pela donzela, o trovador tenta encontrar estratégias para a possuir, recorrendo a jogos de linguagem.

    Assim, no segundo terceto, volta a enfatizar a ideia de que ela o rejeita ou despreza, o que é recente, como se pode observar pela presença do advérbio de lugar «agora», por isso afirma esperar que nunca o procure, ou seja, a mulher pode acabar por se lhe render ou necessitar dele de alguma forma.

    A terceira estrofe abre com uma anáfora com o verso inicial da anterior que reafirma o seu sentimento de amesquinhamento pelo facto de a donzela o rejeitar constantemente, no entanto mantém a expectativa de a encontrar, de noite, ao luar. Note-se que essa expectativa, por parte do trovador, de se encontrar com a mulher é expressa no refrão, especificamente da segunda e da terceira coblas.

    As referências à noite e ao luar importam para a cantiga um tom malicioso, pois o encontro desejado entre ambos teria lugar nessa altura do dia, propícia a encontros amorosos mais íntimos e recatados, afastados dos olhares alheios. Ou seja, o «eu» poético desdenha da “donzela de Biscaia” por não o querer e confessa o seu desejo de a encontrar de noite ou ao luar.

domingo, 23 de março de 2025

Análise da cantiga "A Dona Maria há soidade"

    Desta cantiga de maldizer, de Lopo Lias, apenas nos chegou uma estrofe, constituída por uma rubrica e uma sextilha. De acordo com a referida epígrafe, a composição poética debruça-se sobre uma mulher casada adúltera, pois “havia preço” com um homem chamado Franco.

    Os dois versos iniciais, exatamente iguais entre si, facto que evidencia a dificuldade de arrumação dos que sobreviveram, que é meramente conjetural, identificam, nomeando-a, o alvo da sátira: Dona Maria, que está cheia de saudade porque perdeu um jogral. A mulher elogiava-o (“dizendo del bem”), porém ele não correspondeu (“e el nom achou / que nenhu preito del fosse mover”), mantendo-se indiferente aos avanços dela. Deste modo, D. Maria nada obteve do jogral – “nem bem nem mal” –, o que acentua essa noção da indiferença masculina e, por outro lado, a deixa profundamente triste.

segunda-feira, 17 de março de 2025

Análise da cantiga "Vosso pai na rua", de João de Gaia

    Esta cantiga de seguir contém duas rubricas, uma anterior e outra posterior. Antes de mais, convém esclarecer o que é uma cantiga de seguir: é uma cantiga que «segue», isto é, que toma como base, uma cantiga anterior. A Arte de Trovar distingue três modalidades de seguir: 1) mantendo apenas a música da cantiga primitiva, à qual se adaptam novos versos; 2) mantendo a música e também as rimas da cantiga primitiva; 3) mantendo a música, algumas das rimas e ainda alguns versos ou mesmo o refrão da cantiga primitiva, mas dando a estes ou ao refrão, pelo novo enquadramento, um outro sentido.

    A rubrica anterior faz referência a uma cantiga de vilão, ou seja, um poema que satiriza um vilão, uma personagem de baixa condição social (“Diz ua cantiga de vilão”), concretamente a uma passagem da mesma, que faz referência a um “corpo probo” (corpo honrado e virtuoso) que dança aos pés de uma torre. Tratar-se-á de mero momento narrativo ou de uma crítica à tentativa de a figura que dança (um vilão?) se comportar de maneira nobre ou refinada, ao dançar, algo que pode ser encarado como ridículo.

    A segunda frase da citação da cantiga de vilão apostrofa um cavaleiro, procurando, através do apelo ao visualismo, chamar a sua atenção para o «cós», isto é, o corpo que dança. Terminada a citação, segue-se um nome que fica incompleto (“E Joam de…”), provavelmente o da figura satirizada pela cantiga de escárnio e maldizer de João de Gaia.

    A rubrica posterior que acompanha o poema em análise fornece o contexto sobre a sua composição e o seu alvo, ou seja, esclarece a quem se destina a sátira e as circunstâncias que envolvem o vilão que é o foco da crítica.

    Assim, a rubrica começa por explicar que a cantiga “seguiu Joam de Gaia per aquela de cima de vilãaos”, ou seja, o trovador utilizou (seguiu) a música e, como é referido na rubrica, o refrão de uma cantiga de vilão (citada de forma mais completa na rubrica que antecede a composição).

    De seguida, clarifica o contexto em que João de Gaia o fez: tratava-se de ridicularizar um ex-vilão, alfaiate de profissão, feito cavaleiro por D. Dinis, a pedido do seu protetor, o bispo de Lisboa: “E feze-a a um vilão que foi alfaiate do bispo Dom Domingos jardo de Lixbôa e havia nome Vicente Domingues, e depois pose-lhi nome o bispo Joam Fernandes; e feze-o servir ante si de cozinha e talhar ant’el; e feze-o el-rei Dom Denis cavaleiro; e depois morou na freguesia de San Nicolau e chamaram-lhi Joam Fernandes de Sam Nicolao.”

    Domingos Anes Jardo foi o bispo de Lisboa entre 1289 e 1293, ano da sua morte. Antes de assumir o bispado da capital do reino, D. Domingos foi bispo de Évora, e provavelmente perceptor de D. Dinis, de quem se tornou, posteriormente, chanceler-mor. Além disso, fundou um hospital para os pobres em Lisboa, na freguesia de S. Bartolomeu, em 1284, e terá desempenhado também um papel importante na fundação da universidade portuguesa. Era natural de Jardo, lugar nos arredores de Lisboa, entre as atuais freguesias de Agualva e Cacém.

    O vilão, por sua vez, inicialmente chamava-se Vicente Domingues; depois o bispo alterou-o para Joam Fernandes e, por último, após D. Dinis o ter ordenado cavaleiro, para Joam Fernandes de Sam Nicolao. Em rigor, nada se sabe sobre esta figura burguesa lisboeta, alfaiate do bispo D. Domingos Jardo, e feito cavaleiro por D. Dinis. Um indivíduo de nome João Fernandes, escudeiro, fazia parte da casa do rei, enquanto infante, mas, tendo em conta as informações da rubrica acerca da mudança de nome (de Vicente Domingues para João Fernandes, não deverá tratar-se da mesma personagem.

    A cantiga de João de Gaia, feita em «honra» do antigo alfaiate, é extremamente irónica: como mandavam as regras deste tipo de cantiga de seguir, o refrão deveria assumir outro sentido em contacto com estrofes diferentes. Assim, as expressões «em cós» e «cavaleiro», que na cantiga original aludiriam a uma qualquer cena de sedução feminina, passam a aludir, respetivamente, ao antigo ofício (alfaiate) e ao novo estatuto do visado (cavaleiro).

    O verso inicial da cantiga de João de Gaia (“Vosso pai na rua”) alude à família do visado, claramente um vilão (filho de um homem “da rua”). O segundo verso (“ant’a porta sua”) remete para o facto de os alfaiates trabalharem, regra geral, na soleira das suas casas. O refrão (“Vede-lo cós, ai cavaleiro!”), como já foi referido, alude, respetivamente, ao antigo ofício (alfaiate) e ao novo estatuto do visado pela sátira (cavaleiro).

    As duas estrofes seguintes colocam a figura satirizada “Ant’a sa pousada / em saia / pertada” e “Em meio da praça, / em saia de baraça”, isto é, à porta de casa e num local público. Em ambos os casos, o foco da sátira centra-se no vestuário que enverga uma saia apertada, ridicularizando-se, assim, a sua aparência (e sexualidade?). O alvo é criticado por estar inadequada e ridiculamente vestido, sendo visado o seu comportamento, que não estaria à altura do comportamento esperado de alguém da sua condição.

NOTAS
 
1. As cantigas de vilão não foram compiladas nos cancioneiros da poesia trovadoresca que conhecemos. Porém, a rubrica desta cantiga atesta a sua existência, bem como o trânsito de motivos poéticos entre a rua e o paço. João de Gaia “segue a cantiga de vilão” aproveitando-se de parte do que parece ser os eu refrão. A segunda rubrica esclarece o sucedido: um alfaiate feito cavaleiro em resposta a um pedido do bispo de Lisboa. Com isso, até muda de nome. O acontecimento e o remoque revelam a possibilidade de mobilidade social e a reação jocosa do segmento social “inchado”, o dos cavaleiros.
 
2. Excluindo-se o refrão, porém, a cantiga só reporta as circunstâncias de exercício de um ofício: o de alfaiate. Ele confeciona e conserta roupas em frente à sua casa, diante ou no meio da praça. É o refrão (seguido da cantiga de vilão) que promove a sátira na medida em que aproxima mundos que apareciam separados. Nascida na rua, a cantiga migra para o paço para reportar de forma jocosa uma alteração social promovida pelo rei. Mas não ri do rei, ri de quem, mesmo mudado, não pode esconder a própria origem.
 
3. João de Gaia incorpora na sua cantiga o refrão da cantiga de vilão, embora com um sentido diferente.
 
4. A cantiga original cujos versos a rubrica que antecede o texto de João de Gaia transcreve parece ser dita em voz feminina (ou, pelo menos, o seu refrão), que se dirige a um cavaleiro (“Vedes o cós, ai, cavaleiro”). Pelo que nos mostra este fragmento da cantiga, haveria, pois, cantigas populares (de vilãos ou vilãs) ditas em voz feminina.
 
5. A Arte de Trovar apresenta a seguinte definição geral das cantigas de seguir: “Outra maneira há i em que trobam do[u]s homens e que chamam seguir; e chamam-lhe assi porque convém de seguir cada um outra cantiga, a som ou em p[alav]ras ou em todo.” Assim, segundo esta definição, temos “dois homens”, os quais “seguem” «cada um outra cantiga». “Seguir outra cantiga” significa o seguinte: os trovadores servem-se de uma cantiga anterior para fazer uma nova cantiga.
 
6. Esta cantiga é uma sátira contra um vilão, antigo alfaiate elevado pelo rei (e por interferência do bispo) à categoria de cavaleiro. João de Gaia retoma, pois, uma anterior cantiga de vilãos, conservando não só a música e as imas (ao que se supõe), mas também o refrão, e modificando, ao mesmo tempo, o corpo das estrofes. Do conjunto resulta que, do sentido mais ou menos erótico que esse refrão teria na primitiva cantiga, se passa para uma alusão clara tanto à antiga profissão do visado (“Vedes o cós”), como à sua recente promoção (“ai, cavaleiro!”). Ou seja, como diz a Arte de Trovar, o refrão ganha “outro entendimento por aquelas palavras mesmas”.

quarta-feira, 5 de março de 2025

Análise da cantiga "Airas Moniz, o zevrom", de Lopo Lias

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de refrão, constituída por três sétimas (um terceto seguido do refrão em forma de quadra) pertence ao ciclo de 12 composições poéticas que Lopo Lias dedicou aos quatro infanções de Lemos, a primeira das quais se intitula “Da esteira vermelha cantarei”.

    O poema identifica o alvo da sátira de forma “descoberta”, isto é, nomeando-o: “Airas Moniz”. Não obstante, trata-se de uma figura de difícil identificação, já que não se sabe nada dele e o nome era bastante comum na época. Uma hipótese levantada passa por considerar que se trata do trovador Airas Moniz de Asma, aparentemente contemporâneo de D. Lopo Lias, porém trata-se, de facto, de mera conjetura. Ainda no verso 11, o sujeito poético apelida-o de «zevrom» (de «zevro», cavalo selvagem), portanto caracteriza-o como um indivíduo bruto e selvagem. De facto, «zevrão» é o aumentativo disfémico cde «zevro», onagro, cavalo selvagem, conhecido pela sua grande velocidade. Em sentido figurado, significa “homem grosseiro, bruto, impetuoso, asselvajado”, tudo qualificativos que se aplicam na perfeição ao alvo do texto. Por outro lado, o indivíduo monta a cavalo e usa uma almofada (“selegom”) a servir de sela, e o trovador parece aconselhá-lo a abandonar esse “selegom” e a voltar a usar a albarda reles, ou seja, aconselha-o a passar de cavalo para burro. Dessa forma, ficará mais confortável.

    De seguida, aconselha também a que estique a correia que envolve o peito do animal (“Tolhede-lh’o peitoral” – v. 8) e aperte a correia que envolve as ancas do bicho, para segurar o aparelho. Por outro lado, Airas Moniz poderá praticar o bafordo, isto é, exercitar as suas armas, e o “tavlado”, ou seja, quebrar um alvo de madeira, a finalidade do jogo do “tavlado” ou “tavolado”.

    A cantiga, em suma, satiriza os adereços usados pelo infanção, nomeadamente a sua sela decrépita, sinal de pobreza ou avareza, bem como do seu caráter selvagem.

sábado, 1 de março de 2025

Análise da cantiga "A dona fremosa do Soveral", de Lopo Lias

    Esta composição de maldizer é a segunda que o trovador Lopo Lias dedica à dona do Soveral. A rubrica que a antecede antecipa o seu conteúdo: o sujeito poético antecipou uma determinada quantia a uma dama, a qual não gozava de boa reputação, como contrapartida para um encontro na casa de D. Corral. No entanto, a mulher faltou ao prometido, pelo que o trovador lhe exigiu, maliciosamente, o pagamento a dobrar.
    O «eu» poético abre o poema identificando, através de uma expressão que não a nomeia, porém, e caracterizando a figura feminina que é visada: trata-se da “dona (…) do Soveral” (localidade galega, pertencente à freguesia de Mogor, concelho de Marim) e é «fremosa». O trovador deu-lhe antecipadamente dinheiro (“há de mim dinheiros”) como contrapartida de um acordo que fizeram (“per preit’atal”): encontrar-se com ele (“que veess’a mi”), a sós (“u nom houvesse al”), num dia combinado (“um dia talhado”), em casa de Dom Corral, um burguês galego (como é referido na outra cantiga dedicada a esta dona por Lopo Lias). No entanto, a mulher faltou ao prometido (“ca nom fez en nada”), por isso ele a qualifica como perjurada, isto é, mentirosa, falsa (= cometeu perjúrio). Todavia, a dona não vai sair incólume da situação, dado que a sua falha terá consequências: o pagamento a dobrar. Ou seja, por causa da sua “negada”, quer dizer, por não ter cumprido o acordo, ela “será penhorada”, isto é, terá de pagar a dobrar o que recebeu como sinal (“que dobr’o sinal”).
    Se a dona acreditar nele (“Se m’ela crever”), ele dar-lhe-á o melhor conselho que conhece: o agradecimento. Ou seja, se a mulher pagar em dobro, o que lhe deve, ele agradecer-lhe-á o gesto, contudo, caso não o faça, penhorá-la-á, repete, já que ela tem o seu dinheiro à força, fora dos seus bolsos (“ca mi o tem forçado, / do corpo alongado”). É possível que, nestes dois versos, exista um segundo sentido, de cariz sexual, erótico. E, em jeito de refrão, repete que, se a mulher não cumprir o seu dever, ele a obrigará a pagar-lhe dobrado o sinal que o trovador lhe deu, dado que não tolerará tal situação (“nom lho sofrerei”).
    Estamos, pois, perante uma mulher fisicamente bela que, moralmente, no entanto, é falsa, mentirosa, pois não cumpre o que promete, sendo assim de duvidosa reputação. Não custa imaginar que, astutamente, ela tenha usado a sua beleza para mais facilmente convencer o trovador a entregar-lhe antecipadamente o dinheiro, em troca de uma promessa que se revelará falsa.
    Por seu turno, o trovador, insatisfeito e desagradado com a atitude da mulher, ameaça-a na tentativa de reaver o seu dinheiro, já que ela não cumpriu o acordo. Porém, ele não deseja um simples ressarcimento; de facto, como vingança, despeitado, ameaça exigir-lhe o dobro do pagamento inicial.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Análise da cantiga "Aos mouros que aqui som", de Pero da Ponte

    A cantiga de escárnio e maldizer de mestria, da autoria de Pero da Ponte, tem como alvo um tal Dom Álvaro, uma figura de difícil identificação, desde logo por se desconhecer o seu apelido. Tratar-se-á talvez de D. Álvaro Perez de Castro, um rico homem de origem castelhana que teve um breve mas intenso período de desentendimento com D. Fernando III, entre 1234 e 1236, após a conquista da praça de Baeza. Outra hipótese aponta para estarmos a falar de D. Álvaro Nunes de Lara, o qual participou no conflito entre o infante herdeiro D. Sancho e D. Afonso X, tendo tomado o partido do primeiro, conflito esse que teve lugar durante a década de 70 do século XIII. O facto de a composição poética se referir a escravos mouros indicia que a mesma se situará no contexto das guerras da Reconquista, apontando, por isso, preferencialmente para a primeira hipótese.
    O referido D. Álvaro é, portanto, um rico-homem que possui escravos, aos quais nada concede, exceto uma ração de cachaça. Este termo - "cachaça" - significa cabeça de porco salgada, o que constituiria, pois, o único alimento que o protagonista dava aos seus serviçais mouros. No entanto, a expressão «dar cachaça» queria dizer também «dar tareia» (de cachaço, ou cachação). Seja como for, o rico-homem nada mais lhes dará para se alimentarem: «e dar-lhis [nom] há / do al que na cozinha houver» (vv. 4-5). O mouro que acreditar no sujeito poético evitará "filhar a cachaça". Convém recordar que os mouros não comem carne de porco (tal como os judeus) por ser considerada uma carne impura, pelo que o alimento disponibilizado por D. Álvaro constituiria uma ofensa para os escravos.
    Deste modo, podemos concluir, interpretando o nome «cachaça» como referência a uma cabeça de porco, que D. Álvaro é criticado por obrigar os seus servos mouros a subsistirem apenas à base deste alimento. Caso o interpretemos como referência possíveis agressões que perpetraria sobre os seus serviçais, a crítica mostra-se ainda mais aguda: ao invés de garantir a sua subsistência, o «dono» tratá-los-ia de forma violenta e cruel.
    Os versos iniciais da segunda estrofe dão conta da reação dos mouros se receberem a cabeça de porco: não a aceitarão e deitá-la-ão aos cães ("Mais, se lha derem, log'entom / aos cães a deitará"). Se optarmos pelo segundo significado possível de atribuir ao nome «cachaça», isto é, maus-tratos físicos, então o gesto dos escravos significaria a sua recusa das agressões a que o rico-homem os sujeita. Por que razão agirão os servos dessa forma ("e direi-vos por qual razom")? De acordo com o sujeito poético, por mais lenha que seja usada, a cachaça não cozerá ("ca nunca xe lhi cozerá"), pelo que o alimento será inútil ("e a cachaça nom há mester" - v. 12), daí que os mouros a deitem aos cães. De acordo com a outra perspetiva possível, o facto de o sujeito lírico considerar que a cachaça nunca cozerá, independentemente dos esforços que forem feitos, pode apontar para o facto de o termo estar associado não à alimentação dos servos, mas, sim, à violência física de que eram alvo.
    Na opinião do «eu» poético ("a meu cuidar" - v. 15), os mouros, assim que a virem, não quererão a cachaça ("poila virem, non'a querrám" - v. 16), todavia, se a aceitarem ("mais, se a quiserem filhar" - v. 17), terá de a pôr der molho ("i-la-am logo remolhar" - v. 19), visto que é assim que é habitual preparar este alimento, presumivelmente para tornar possível a sua cozedura ("ca assim soem adubar / a cachaça, quando lha dam" - vv. 20-21). Ou seja, pô-la de molho constituiria a única forma de os mouros tratarem a cabeça de porco que o rico-homem lhes dava. Por outro lado, se se optar por ler a cantiga como uma menção a agressões físicas, pôr de molho seria o único meio de os servos curarem o seu corpo das dores que castigos físicos lhes causavam.
    Em suma, esta cantiga de Pero da Ponte satiriza um rico-homem por ser pelintra ou, de acordo com a segunda possível leitura, os castigos físicos aplicados a mouros escravizados.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Ai amor, amore de Pero Cantone", de Fernão Soares de Quinhones

    Esta cantiga, da autoria de Fernão Soares de Quinhones, apresenta a curiosidade de começar pelo refrão, que depois repete, como é habitual, no final de cada uma das cinco sextilhas.
    No que diz respeito ao seu tema, o professor Rodrigues Lapa propôs o amor, desde logo pelo facto de a palavra ocorrer vinte e sete veze, incluindo a forma paragógica, todavia Filgueira Valverde vê no vocábulo «amor» uma “palavra cuberta” (isto é, um termo cujo verdadeiro sentido está oculto ou disfarçado por, por exemplo, um duplo sentido) com o significado de “vinho”.
    O poema abre com a referência ao amor de Pero Cantone, uma figura de difícil identificação, embora se suponha que se possa tratar do irmão de Rui Canton, que surge numa cantiga incompleta de João Airas de Santiago (“Rui Martiiz, pois que este assi”), e que ambos fossem cavaleiros de origem leonesa. O segundo verso reitera o nome «amor», qualificando-o como “tam saboroso” e “sem tapone”. Ora, embora aplicável noutros contextos, o adjetivo «saboroso» pertence ao campo semântico alimentar, pelo que suporta a tese do vinho. Por outro lado, o vocábulo «tapone» significava tampão, rolha, aparecendo numa das Cantigas de Santa Maria, exatamente com o sentido de rolha de uma pipa de vinho. Desta forma, optando por tal linha de leitura, o refrão inicial sugere que o amor de Pero Cantone é o vinho, que é saboroso e derramado sem reservas.
    Os versos 3 e 4 parecem confirmar a tese do vinho, pois, além de o qualificarem como «viçoso» e «são» (dupla adjetivação), recordam a circunstância de os vinhos medievais não se conservarem facilmente, havendo alguns que rapidamente se tornavam impróprios para consumo. Yves Renouard especifica que começavam a azedar ao fim de seis meses, tornando-se, a partir da primavera, cada vez menos bebíveis, até que, em maio, deixava de haver vinhos disponíveis. Um documento de 1391, publicado por Humberto Baquero Moreno, confirma esta informação, quando refere, a propósito dos vinhos vermelhos provenientes de cepas coimbrãs, “que se nom teem despois que ssom colheitas que 3 meses”. Nos dois versos seguintes, o trovador alude a duas personagens de difícil identificação. O primeiro é Chorrichão será provavelmente um dos membros da linhagem galega dos Churrichãos, talvez Gonçalo Fernandes Churrichão, que deposou Sancha Anes de Montenegro, de quem teve um filho, Rica Fernandes, a qual lhe deu dois filhos, e Sancha Fernandes de Orzelhon, com quem gerou doze filhos. É possível que a referência da cantiga esteja associada, não só a estes sucessivos casamentos, mas também a um episódio relatado pelo Nobiliário, o rapto de Sancha Rodrigues de Segamardi, quando esta teria seis anos de idade, com quem viveu até que, por pressão do arcebispo de Santiago, João Airas, parente da ofendida, e da restante linhagem, foi obrigado a casá-la com o seu filho primogénito, Fernão Gonçalves, o Farroupim. Seja ou não o Churrichão referido, a referência que lhe é feita na cantiga é obviamente uma alusão satírica. O segundo é Martim Gonçalves de Orzelho, também este de difícil identificação. Orzelhon é uma localidade galega pertencente à comarca de Ourense, mas era igualmente uma praça castelhana fortificada, próxima da fronteira entre os reinos de Leão e Castela, pelo que Martim Gonçalves seria provavelmente um cavaleiro desta última localidade. No entanto, a referência, no verso anterior, ao Churrichão parece indicar que se trataria de um cavaleiro galego. Convém também não esquecer que a terceira mulher desse mesmo Churrichão pertencia a esta mesma linhagem de Orzelhon, pelo que é possível que Martim Gonçalves fosse seu parente. Uma hipotética leitura aponta para que os dois indivíduos referidos constituam emblemas do amor forte e fecundo, em oposição ao de Pero Cantone.
    A segunda estrofe qualifica o amor de Pero Cantone como “tam delgado e tam frio” (dupla adjetivação no grau superlativo absoluto analítico), intensificando as suas qualidades. O termo «delgado» aparece na cantiga de Afonso X “Joan Rodríguiz foi osmar a Balteira”, aplicado ao órgão sexual masculino: “e, por que é grossa, non vos seja mal, / ca delgada pera gata ren non val”. Nesta cantiga, se entendido com o significado de «delicado», poderá constituir uma referência equívoca ao vinho cortado com água. Por sua vez, o adjetivo «frio» surge também em cantigas de Afonso X, quer em contexto sexual, quer apresentado como uma das razões admissíveis legalmente para o fim do matrimónio.
    O verso 10 faz-nos retornar ao campo do vinho (“mais nom creo que dure até o Estio”), confirmando que os vinhos medievais não iam além do meio da primavera, pois deixavam de ser bebíveis a partir do mês de maio, daí serem deitados fora por estarem estragados: “ca atal era outr’amor de meu tio, / que se botou a pouca de sazone”. Rodrigues Lapa atribui à forma verbal “botou” o sentido de “deitar fora”, no que é apoiado pelo Tentative Dictionary of Medieval Spanish e pelos capítulos especiais de Torres Novas das Cortes de Elvas de 1361,que fornece os equivalentes “embotar” e “debilitar”, a partir da Vida de Santo Domingo de Silos, de Berceo, e o artigo 4.º dos capítulos referidos alude a uns vinhos que “se azedam e botam per tal guisa que nom ham deles prol.” Na esteira da professora Elsa Gonçalves, a locução “a pouca de sazone” equivaleria a “o vinho que se estragou em pouco tempo”.
    A terceira estrofe abre com um verso pontuado por novo adjetivo: “pontoso”. Segundo o professor Rodrigues Lapa, esta palavra significaria “fino, agudo, delicado”. De acordo com o Grande Dicionário de Morais, “pontoso” designa o indivíduo “escrupuloso em pontos de honra; pundonoroso, brioso”. José Pedro Machado faz derivar este qualificativo de “ponto” e atesta-o pela primeira vez na écloga Encantamento, de Sá de Miranda, mas esta observação é contrariada por esta cantiga de Fernão de Quinhones, a única da lítica galego-portuguesa onde o termo figura. Além disso, o trovador aconselha a provar esse «amor», pois fará chorar (pela sua elevada qualidade ou por estar impróprio para consumo?)m e assemelhar-se-á ao “amor de Dom Palaio de Gordone”, uma nova personagem de difícil identificação. Pelo nome, poderemos supor que seria talvez leonês, de uma linhagem sediada em Gordón (possivelmente a atual localidade de Gordoncillo, a sul da cidade de Leão). Segundo Carlos Alvar, um D. Paio de Gordón aparece como tenente do castelo de Corel (atual Corella, em Navarra) em 1199. Todavia, esta cronologia parece demasiado recuada em relação à data provável da composição da cantiga.
    O verso 22 alude à conveniência de o vinho de Pero Cantone estagiar, mais do que terá acontecido na realidade, antes de proceder à sua venda e consumo. É o que se depreende dos versos 22 a 24, que aludem ao soterramento, que pode significar “em repouso” ou, mais particularmente, “conservação por baixo da terra”. O estágio subterrâneo é característico de alguns vinhos, como, por exemplo, o de Boticas, por isso sugestivamente chamado “vinho dos mortos”. Apenas o soterramento pelo período de um ano poderia permitir que alguém lucrasse com este vinho e daí a alusão à “boa rençone” ou “boa vençone” (v. 24). “Vençone” queria dizer “venda” e provém de “venditione”. Esta prática tradicional de enterrar o vinho para melhorar a sua qualidade tem a sua origem associada aos anos das Invasões Francesas, época em que os produtores de vinho transmontano, para o esconde dos soldados sequiosos, enterravam-no e, com o uso repetido do método engendrado em desespero de causa, acabaram por constatar que sepultar a bebida por tempo suficiente tinha como resultado a melhoria da sua qualidade. Por isso, continuaram a dar-lhe o mesmo tratamento e batizaram-no de vinho dos mortos.
    Na última estrofe, o vinho é caracterizado como “pungente”, adjetivo que significa “que nasce”, “que desponta”, pelo que caracteriza o vinho novo, mas também pode querer dizer “que pica”. Ora, o nome que lhe corresponde – “pongimento” – consta com esse sentido de uma lista de nove sabores que aparece no apócrifo aristotélico Segredo dos Segredos. Dela fazem parte “dolcura amargor salgado E temperado E azedo E sen sabor E pongimento E secura E agudeza”. Nesta listagem, “pongimento” não se confunde com “azedo”, o que parece diminuir a hipótese de o amor de Pero Cantone se ter estragado por ter azedado.
    A enóloga Marsilla Arroza escreveu um tratado onde aborda uma doença chamada “picado” ou “repunte” ou “avinagramento”. A partir desse texto, é possível encontrar um significado de “pungente” mais adequado à cantiga. São os vinhos jovens os que estão mais sujeitos ao mal do “picado”, que é frequentemente causado por oxidação do álcool, resultante de contacto indevido com o ar, e por má fermentação. Ora, o “amor” de Pero Cantone aproxima-se muito deste perfil: é qualificado como «viçoso», pelo que deve tratar-se de um vinho novo; é dito “sem tapone”, ou seja, sem rolha para vedar a boca das pipas, o que permite a entrada do ar no recipiente e, deste modo, precipita a deterioração do vinho. Mais especulativo é ligar o desejo de que o amor de Pero Cantone fique em “remordente”, com a necessidade de ter uma fermentação adequada. Como a fermentação faz desaparecer a maior parte do açúcar contido no mosto e o substitui pelo álcool, ajudando assim à conservação do vinho, não admira que o amor de Pero Cantone dure pouco e seja delgado. Com efeito, no capítulo do Leal Conselheiro sobre o pecado da gula, D. Duarte recomenda que se beba “vynho o mais do tempo com duas partes daugua. E que seja delgado, (…)”, adjetivo explicado por Piel como “fraco, pouco alcoólico”. Aliás, no verso 9, a ditologia composta por «delgado» e «frio» tem caráter sinonímico, porque o segundo qualificativo se aplica ao vinho que não é muito alcoólico.
    Esta cantiga fala, portanto, do vinho de Pero Cantone, cuja efemeridade natural, semelhante à dos outros vinhos medievais, é agravada por deficiências de preparo que impedem a sua comercialização com lucro. A cantiga ficciona a deterioração rápida do vinho no próprio tempo que demora a ser cantada e ouvida, pois começa por afirmar que ele é são, na primeira estrofe, e acaba, na última, por proclamar o seu pungimento.
    De acordo com o sítio cantigas.fcsh.unl.pt/, “À primeira vista, parece tratar-se de uma sátira a um apaixonado que jura um amor eterno e pungente, mas de cuja duração e sinceridade se duvida. No entanto, pelas diversas alusões da cantiga, talvez se possa entender que o verdadeiro amor desta figura, Pero Cantone, seria o vinho (e as declarações de amor feitas sob o seu efeito). Uma outra hipótese de leitura é a de a composição ser uma espécie de cantiga de amigo parodística, dita por uma mulher – que confessaria os seus amantes face ao platonismo do tal Pero Cantone. Vicente Beltran sugere ainda a hipótese de a cantiga se relacionar, de alguma forma, com os problemas financeiros e familiares para os quais a biografia do trovador parece apontar. A dupla referência, que encontramos na cantiga, a um tio e um parente do trovador poderá dar alguma plausibilidade a esta hipótese. São pistas de leitura que o leitor poderá ou não seguir.
    A cantiga é ainda curiosa pelo emprego que faz do «e» paragógico nas terminações nasais em «on» (“cantone”, “tapone”, etc.) – o que poderá ser um recurso para acentuar o ridículo, ou um mero arcaísmo gráfico dos copistas.”

Bibliografia:
cantigas.fcsh.unl.pt
“Medioevo y literatura”, João Dionísio

Análise da cantiga "Agora oí d’ua dona falar", de Fernão Rodrigues de Calheiros

    Esta cantiga de escárnio e maldizer é constituída por duas sextilhas, antecedidas por uma rubrica que clarifica que o poema se centra numa dona que tinha uma ligação com um criado chamado Vela, como se verá na primeira estrofe.
    O verso inicial remete para a cantiga de amor e a sua temática, a partir da referência a uma dona, cuja fama chega ao conhecimento do sujeito poético, antes mesmo de a conhecer pessoalmente, o atrai e desperta nele o amor “de longe”. Ele ouviu falar dessa dona (“Agora oí d’ua dona falar”), a quem quer bem (“que quero bem”), porém não a conhece, nunca a viu (“pero a nunca vi”), pois ela soube guardar-se muito bem, isto é, soube preservar a sua boa reputação (“por tam muito que fez por se guardar”). Como? A mulher guardou-se, pondo “vela sobre si”. Ora, o uso do nome «Vela» é ambíguo, dado que se presta a um duplo entendimento: por um lado, a expressar “pôr Vela sobre si” significava, em sentido corrente, “pôr-se sob vigilância”, resguardar-se, conservar a sua reputação; por outro, «Vela» é um nome de um seu criado, como nos informa a rubrica, um homem de condição social inferior, portanto um par inadequado para uma dona, uma mulher nobre (“por se guardar de uma nomeada, / filhou-s’e e pôso Vela sobre si”). “Pôso” é uma forma arcaica de «pôr», contudo presta-se ao equívoco “pôs o”. Neste sentido, “pôso Vela sobre si” constitui uma alusão de caráter sexual bem explícita: a dona “pôso Vela sobre si.”, isto é, pôs o criado sobre si.
    Em suma, na primeira estrofe, o trovador dirige a cantiga a uma dona não identificada, que mantinha uma relação com um seu criado, mas procurava resguardar-se da má fama.
    José Carlos Ribeiro Miranda, professor da Universidade do Porto, considera que esta mulher era solteira e fez-se monja, mesmo contra a vontade do pai, a cuja guarda se encontrava (“nunca end’ouve seu padre sabor”; “e, a pesar dele, sem’o seu grado”), para se “guardar”. A referência ao pai permite questionar os papéis tradicionais de pais e filhas neste contexto: tradicionalmente, são aqueles que velam as filhas, que as “guardam”, porém, na cantiga, é a filha que resolve “pôr vela” sobre si própria. Tendo em conta a epígrafe da composição poética, na realidade a «vela» que a dona decidiu pôr sobre si é o “peom Vela”, numa “aequivocatio” que é esclarecido pelo pequeno texto em prosa que antecede o poema. Deste modo, podemos concluir que a composição poética configura uma crítica implícita às “liberalidades” paternas. Deste modo, a dona conseguiu iludir a vigilância paterna por não estar devidamente “guardada”.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "As mias jornadas vedes quaes som", de Afonso Anes do Cotom

    Afonso Anes do Cotom é um trovador provavelmente de origem galega, integrante do círculo do Infante Afonso, futuro Afonso X, autor de 19 poesias trovadorescas, além de três de autoria duvidosa, dentre as quais “As mias jornadas vedes quaes som”, uma composição incompleta que se situa a meio caminho entre a cantiga de amor mais ou menos jocosa e a sátira às regras do amor cortês, nomeadamente a do segredo sobre a identidade da mulher amada. O poema, o que chegou até nós pelo menos, contém rima emparelhada e interpolada, segundo o esquema rimático abbacca, e versos decassílabos (As | mi | as | jor | na | das | ve | des | quaes | som |) e eneassílabos (meus | a | mi | gos | me | te | d’i | fe | meu |).
    Através de uma apóstrofe dirigida aos amigos (“meus amigos”), o sujeito poético convida-os a tomar conhecimento das etapas da sua viagem, que apresenta uma estrutura circular, visto que começa e termina em Castro, provavelmente Castronuño, uma povoação a sul de Valladolid, embora também se possa referir a uma pequena localidade chamada Castro de Fuentidueña, a sul de Burgos, na província de Segóvia, ou Castro Urdiales. A viagem do sujeito poético incluiu passagens por Burgos (capital da província do mesmo nome, em Castela-Leão, e uma das mais importantes paragens do Caminho de Santiago), Palença (cidade e província de Castela-Leão, a norte de Valladolid) e Carrion (Carrión de los Condes, município da província de Palencia, no Caminho de Santiago). A enumeração de lugares sugere que se tratou de um percurso árduo e contínuo que implicou esforço físico e, quiçá, emocional. Metaforicamente, esta viagem pode representar a jornada que é a vida e os desafios que esta implica. Como consequência dessa viagem, o sujeito poético tem uma aparência de felicidade, tal não passa exatamente disso – aparência –, pois, na realidade, sente-se muito triste. Ou seja, há aqui uma dualidade entre a aparência externa e o sentir autêntico interior, o que denuncia talvez a necessidade de manter uma imagem pública distinta do sentimento real.A segunda estrofe esclarece a razão do sofrimento do trovador: uma «dona”, uma mulher. O uso do nome «dona» remete-nos para a linguagem da cantiga de amor, bem como para um dos traços centrais do código de amor: a não identificação da mulher amada, desde logo porque era casada. A forma verbal «andar» sugere não tanto movimento físico, mas o estado emocional do «eu». De seguida, enumera as possíveis condições sociais da mulher: casada, viúva ou solteira ou monja (os três nomes enumerados referem-se à mesma figura, a da freira; o nome «touquinegra» designa uma freira que veste uma touca negra, uma designação bastante comum na Idade Média). Ironicamente, o trovador satiriza, com essas enumerações, as regras do amor cortês, nomeadamente a referente ao segundo sobre a identidade da mulher amada. Qualquer mulher poderia ser aquela que o trovador elogiava nas suas cantigas, independentemente do seu estado civil, um esquema que se repetia nas várias composições poéticas, com diferentes figuras femininas. Ou seja, o poeta compunha sucessivas cantigas em que exaltava a(s) mulher(es) e manifestava a «sua» coita por não ser correspondido amorosamente por ela(s), num esquema repetitivo. Note-se que até as mulheres que deveriam ser intocáveis ou inacessíveis, como as religiosas, pode ser objeto de desejo ou de sofrimento.
    O verso 11 parece constituir um alerta irónico do «eu» dirigido aos amigos, no sentido de se guardarem, de se precaverem. A influência e o sofrimento causado pela dona são tão intensos que mesmo aqueles que creem estar seguros devem estar atentos e precavidos. E usa como exemplo a sua própria situação: “e ar se guarde quem s’há por guardar, / ca mia fazenda vos dig’eu sem falha” (vv. 11-12). A concluir a estrofe, o sujeito poético suplica a Deus que o ajude e lhe valha, mas que não o faça relativamente a “quem mi mal buscar”, perífrase que refere a mulher que o faz / faça sofrer. Ora, o verso 14 desobedece às regras do amor cortês, ao código da “fin’amors”, segundo o qual o trovador deveria respeitar e servir sempre a «senhor», sem a desrespeitar ou causar mal.
    O primeiro verso da terceira estrofe, o último completo que chegou até nós, anuncia que o trovador nada mais irá revelar sobre a mulher que lhe causa dor e sofrimento, sendo que, na realidade, nada destapou sobre ela.

Análise da cantiga "Ao lançar o pau", de Lopo Lias

    A cantiga de Lopo Lias, de refrão e paralelística, constituída por duas sextilhas, insere-se no ciclo que o trovador dedica aos infanções de Lemos. Especificamente, refere-se aos azares de um deles no jogo do tavolado, um desporto que consistia em arremessar um dardo ou uma lança contra um determinado alvo para o tentar derrubar e que se encontrava situado num local elevado, o que significa que se trata de um jogo de perícia e força. Frei Francisco Brandão diz-nos o seguinte: “… se usava antigamente, porque fazião nelle os cavaleiros experienciais de suas forças, e era deste modo. Fabricavase hum castello de madeira, em que se união as taboas por tal ordem, que nem por si podiam cair, nem deixariao de vir ao chao, se fossem movidas com grande força. Faziao os cavaleiros prova de suas forças cõ tiros de arremessos, e o que derribava aquella fabrica levava o preço da festa.”
    O primeiro verso dá conta desse mesmo jogo: “Ao lançar do pau”. Só que esse esforço de o lançar, em cima da sela, o que sugere que o infanção está montado a cavalo, fez com que desse um mau jeito com o cu, talvez por falta de jeito, e quebrou a sela. O efeito cómico da imagem é óbvio. Atente-se na repetição do verso dois nas duas estrofes. Por sua vez, a referência à «bela» poderá constituir a referência a uma figura feminina que observa a cena e comenta a situação de forma sarcástica ou zombeteira: “– Rengeu-lh’a sela!”
    Confirmando o paralelismo que caracteriza a cantiga, a segunda cobla abre com nova referência ao lançamento do «touco», ou seja, ao jogo do tavolado, magoando bastante o cu. Segundo Manuel Rodrigues Lapa, o verso 10 (“deu do cu a bouço”) compreende uma expressão popular que tem o sentido de “magoou-se de cabo a rabo”, ou seja, muitíssimo, enquanto “bouço” terá a mesma origem de “borco” (como na expressão “cair de borco”). O refrão encerra a cantiga com o mesmo comentário sarcástico da «bela».

Análise da cantiga "Amigas, eu oí dizer", de Gonçalo Anes do Vinhal

    Esta cantiga, da autoria de Gonçalo Anes do Vinhal, é constituída por duas sextilhas, formadas por uma quadra seguida de refrão em forma de dístico, antecedidas por uma rubrica. Esta composição poética, bem como outra do mesmo trovador, têm a aparência de duas cantigas de amigo vulgares (a figura feminina comenta os seus amores com as amigas), porém vêm acompanhadas de rubricas que as contextualizam: foram feitas “a Dom Anrique em nome da rainha Dona Joana, sa madrasta, porque diziam que era seu entendedor”. Quer isto dizer que estamos perante cantigas que aludem aos (alegados) amores da madrasta de D. Afonso X, Jeanne de Poitiers, viúva e terceira esposa de Fernando III, com o seu enteado, D. Henrique, irmão do rei. Apesar de a acusação poder ser mais fictícia do que real, ambos os poemas se referem a factos históricos concretos ocorridos no âmbito do conflito que estalou entre os dois irmãos. De facto, ambos entraram em litígio pouco tempo depois da conquista de Sevilha, ainda no tempo de Fernando III, o qual se prolongou durante vários anos. A cantiga remete para um dos episódios finais da disputa, o recontro que opôs as tropas reais e as de D. Henrique (senhor de Morón), perto de Lebrija, no qual este último foi derrotado, derrota que essa que o levou ao exílio, mencionado na outra cantiga referida. Estes factos tiveram lugar em 1259. Deste modo, não restam dúvidas de que estamos na presença de duas autênticas cantigas de escárnio, debaixo da aparência de cantigas der amigo.
    O Infante D. Henrique, irmão de Afonso X, nasceu por volta de 1230 e cedo se distinguiu no campo militar, por meio do papel que desempenhou no cerco de Sevilha e na conquista de Andaluzia. Após a morte de Fernando III, o conflito já latente entre os dois irmãos, motivado pelas grandes doações feitas pelo pai a D. Henrique, bem como à rainha Joana, estala abertamente. Em 1255, apoiado por Jaime I de Aragão, D. Henrique enfrenta militarmente Afonso X, mas foi derrotado pelo exército comandado por D. Nuno Gonçalves de Lara. Na sequência da derrota, buscou refúgio em Aragão, contudo não obteve o apoiado esperado por parte de Jaime I. Mais tarde, esteve ao serviço do sultão Al-Mustansir, em Tunes, entre 1259 e 1266, e, posteriormente, período em que se instalou em Roma, onde foi nomeado senador (governador da cidade). Feito prisioneiro de Carlos de Anjou na batalha de Tagliacozzo, em 1268, permaneceu em cativeiro até 1294, apesar de várias tentativas de Afonso X para obter a sua libertação. Nesse ano, regressou à Península Ibérica, tendo sido acolhido pelo herdeiro do trono, seu sobrinho, Sancho IV. A morte prematura deste soberano em 1295 tornou-o um dos homens mais influentes da época. Deste modo, assumiu o governo do reino a par de Maria de Molina, mãe do herdeiro presuntivo da coroa, o jovem infante Fernando. Nomeado seu tutor nas Cortes de Valladolid, defendeu os seus direitos face às pretensões dos Infantes de la Cerda, igualmente netos de Afonso X. A sua atuação até 1301 permitiu ao jovem infante subir ao trono como Fernando IV nesse mesmo ano, ficando pelo meio a assinatura do Tratado de Alcanizes com D. Dinis, tratado esse que contribuiu para aliviar a pressão na fronteira ocidental e a fixação das fronteiras entre ambos os reinos. Até à sua morte, ocorrida em 1303, D. Henrique continuou envolvido na complexa trama política castelhana que ocorreu ainda em consequência da crise sucessória anterior.
    Joana de Poitiers foi a segunda mulher de Fernando III de Castela. Nascida Joana de Danmartin, cerca de 1220, era filha de Simon de Danmartin e de Maria de Ponthieu e de Montreuil e bisneto, por via materna, de Luís VII de França. O seu matrimónio com Fernando III gerou cinco filhos. Após a morte do marido, em 1252, permaneceu mais alguns anos em Castela, mas a deterioração das suas relações com Afonso X, seu enteado, potenciadas pelo apoio que deu ao partido do Infante D. Henrique, na época em rutura com o irmão, levaram-na a regressar definitivamente a França, cerca de 1259. Aí, casou-se, em segundas núpcias, pol volta de 1260 ou 1261, com Jean de Nesle, senhor de Falvy et de La Hérelle. Faleceu em 1279, na cidade de Abbeville.
    Rodrigo Afonso era o filho bastardo de Afonso IX de Leão e meio irmão de Fernando III, ou seja, tio de Afonso X. Mouron refere-se a Moron de la Frontera, um município localizado a sudoeste de Sevilha, na província de Andaluzia. A praça pertencia a D. Henrique, como a cantiga deixa bem explícito, parecendo existir na rubrica uma imprecisão, já que o recontro terá tido lugar, não em Morón, mas nas proximidades de Lebrija.
    A rubrica é, portanto, clara: a cantiga é feita por Gonçalo Anes do Vinhal a Dom Henrique em nome da rainha D. Joana, sua madrasta, porque diziam que era seu “entendedor”, isto é, seu amante, quando combateu em Moron com D. Rodrigo Afonso, que comandava o exército real.
    O primeiro verso abre com uma apóstrofe do sujeito poético às amigas, algo característico da cantiga de amor. Essa apóstrofe serve para lhes confidenciar que ouviu dizer que os de “Mouron” combateram com o exército do rei. Ouvir dizer, porque não tem a certeza se é verdade: “e nom poss’end’a verdade saber”.
    Os dois pontos com que encerra o verso 4 anunciam o refrão, no qual o «eu» poético se mostra preocupado com a sorte do seu amigo, cuja sorte desconhece (“se é viv’o meu amigo”), o mesmo a quem fez a oferta de uma touca, uma prenda que era dada muitas vezes pelos apaixonados. No entanto, Carolina Micäelis defende que, neste verso, se trata de uma touca de viúva, o seu atavio tradicional.
    Na segunda e última estrofe, o sujeito poético põe a hipótese de dar a sua cinta a quem lhe desse notícias do seu amigo e declara apenas não o fazer por tal lhe causar mal e ser tido por gabarola ou fingido. Recorde-se que, na primeira estrofe, se referira outra prenda, a touca, que tinha um grande valor para a mulher, pois fora um presente dado ao amigo, ou, na leitura de Carolina Michäelis, o símbolo da sua viuvez. Na primeira hipótese, a touca constitui, portanto, uma prenda de amor que ele levou consigo, dada por ela, como emblema do seu amor. Assim sendo, a peça de vestuário tanto pode simbolizar a relação amorosa de ambos, como, de acordo com outra interpretação, representar uma referência à condição de viúva de Joana de Poitiers.
    Em suma, a touca é uma peça de indumentária feminina, característica da Península Ibérica e presente sobretudo na cantiga de amigo. Possui uma função simbólica associada a outras “dõas” que os enamorados trocavam entre si como indício do seu compromisso amoroso. Há, porém, críticos que lhe atribuem um valor relacionado com o estado civil da mulher, casada ou viúva. Além disso, a touca surge associada a outros elementos femininos.
    Etimologicamente, a palavra não parece derivar do latim e é próprio da Península Ibérica (galego-português, castelhano e basco). Devendo ter-se estendido ao resto da Europa na época medieval. Corominas y Pascual defendem que a sua possível origem radica na forma persa «tak», isto é, «véu», «lenço», «xaile», enquanto Ramón Lorenzo remete a origem etimológica o termo «tauca», que remontaria a uma língua pré-romana, embora não determine qual. Contrariando a afirmação inicial, autores recentes remetem para o latim vulgar «toca», derivado de «toccus», que significava uma cobertura ou peça de vestuário para a cabeça, e associam a sua origem ao gótico «tukko», que remetia para um tipo de pano ou cobertura. Com o tempo, a palavra foi assimilada por outras línguas europeias, conservando o sentido de um acessório para cobrir a cabeça, geralmente feito de tecido.
    Aparecem documentadas as formas «tauca» e «touca», indistintamente, em testamentos e doações medievais escritos em latim, mas apenas «touca» em textos medievais em galego-português em prosa, como, por exemplo, a Crónica Troiana. Nas Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, regista-se a presença de «touca» enquanto referência a uma prenda oferecida à Virgem Maria por parte de uma devota e como vestimenta de uma mulher com amores adúlteros, representando, portanto, em ambos os casos, a condição de mulher casada.
    Relacionada com «touca», encontra-se também na época medieval a forma composta «touquinegra” (< touca + negra), uma designação feminina pouco usada, que foi colher a sua designação à forma de vestir das mulheres que envergam hábitos nos conventos. Por exemplo, o trovador Afonso Eanes do Coton insere-as numa das suas cantigas de escárnio enquanto sinónimo de «monja» e «freira». Aludindo à sua amada, escreve o trovador o seguinte:

E a dona que m’assi faz andar
casad’é, ou viuv’ou solteira,
ou touquinegra, ou monja ou freira…

A mesma imagem metonímica é empregada por Berceo em vários dos seus textos, quando alude a uma monja que vivia num santuário com uma “touca negrada”.
    No caso dos cancioneiros galego-portugueses, a presença do termo «touca» é escassa, sendo usada somente por cinco trovadores, a saber, Pero de Sevilha, Pero Garcia Burgalês, Gonçalo Anes do Vinhal, Pero Gonçalves de Portocarreiro e João Garcia de Guilhade.

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "A la fé, Deus, se nom por Vossa Madre"

    Esta cantiga satírica de mestria, constituída por quatro sextilhas e uma finda de quatro versos, abre com uma imprecação contra Deus (“A la fé, Deus” – apóstrofe), apresentado como um rival do trovador, pois rouba para si as mulheres jovens e belas, deixando apenas as velhas e feias, e obriga-as a andar mal vestidas e mal governadas nos conventos onde as encerra. Tendo em conta estes dados, como pode considerar-se Deus uma figura bondosa e misericordiosa?
    O «eu» poético afirma que, se não fosse pela sua mãe, Nossa Senhora, que é “mui bõa”, ou seja, uma figura bondosa, santa, generosa, teria causado sofrimento a Deus (“fezera-vos eu pesar”), porque Ele lhe roubou (“filhastes”) a “mia [sua] senhor” (atente-se na linguagem característica da cantiga de amor), isto é, a mulher amada, seja por meio da morte, por exemplo, ou de forma figurada. Deste modo, a figura divina é caracterizada como injusta, causadora de sofrimento e dor no trovador, cruel até, já que lhe roubou o bem mias precioso que possuía.
    Através do encavalgamento, o trovador continua a mensagem da primeira cobla na segunda, neste caso pondo em dúvida a paternidade de Jesus (São José ou Deus Pai?). Deste modo, o «eu», em virtude de o nascimento e o progenitor de Deus-Jesus não serem muito claros, só não O ataca por causa do respeito que nutre pela mãe, Santa Maria. O sujeito poético prossegue a sua crítica, afirmando que estaria disposto a morrer, se, dessa forma O responsabilizasse publicamente, isto é, o desse como culpado aos olhos de todos, por lhe ter tirado a sua «senhor»: “se lhi nom pesasse, / morrera eu, se vos acõomiasse / a mia senhor, que mi vos tolhestes.”. O trovador prossegue a sua queixa e recriminação, interrogando Deus acerca do motivo por que o perdeu, isto é, porque o abandonou, porque o tratou de forma tão injusta, se o «eu» era Dele, Lhe pertencia, acreditava Nele. A resposta surge no último verso da segunda cobla: “Nom queríades que eu mais valesse.”, ou seja, Deus não queria que o trovador valesse mais do que Ele aos olhos da «senhor».
    No primeiro verso da terceira estrofe, o «eu» interpela de novo a figura divina, desafiando-O a dizer-lhe que “bem” lhe fez, que benefício lhe trouxe, para que pudesse acreditar Nele ou O servisse, além de uma grande ofensa e soberba (leia-se “filhar-lhe” a “senhor”). A explicação (“Ca” = “pois”) surge de seguida: Deus tem a mulher em Seu poder forçada, ou seja, contra a vontade dela, quando o trovador nunca Lhe “filhou” nada nem recebeu Dele desde que nasceu: “e nunca vos eu do vosso filhei nada / des que fui nado, nem vós nom mi o destes”. Assim sendo, Deus é retratado como uma figura injusta e ingrata.
    A terceira cobla clarifica a acusação e o motivo do desagrado do trovador: Deus tomou por esposas as mulheres belas (“fremosas”) e jovens (“mancebas”), deixando apenas as “velhas feas”. Ora, o que significa Deus tomar por esposa uma mulher? A metáfora, neste caso, refere-se às mulheres que, contra a sua vontade, davam entrada nos conventos para O servir. Esta situação ocorre com inúmeras mulheres, o que sugere o número gigantesco das que eram forçadas a recolher a um convento pelas mais diversas razões, num mundo, numa sociedade e numa época que as castrava e limitava as suas liberdades, como é o caso da religiosa, nesta cantiga. Isto tem uma consequência: para o trovador, não resta qualquer mulher jovem e formosa (“E a mi nunca mi nenhua dades: / assi partides migo quant’havedes.” – observe-se a ironia, bem como a alusão ao princípio bíblico que estabelece a repartição das riquezas.
    Assim, chegamos à finda, cujo verso inicial constitui uma referência ao serviço que o trovador devia à sua «senhor», que incluía o seu louvor nas cantigas de amor: “Nen’as servides vós, nen’as loades”. A acusação prossegue e torna-se, agora, completamente clara: Deus obriga-as também a andar mal vestidas e mal governadas (“vestide-las mui mal e governades”), nos conventos em que as encerra (“e metedes-no-las trá-las paredes.”).
    Em suma, a cantiga visa a forma como as mulheres eram sujeitas na época medieval, vivendo num mundo em que não possuíam liberdade. Neste caso, é questionada a ausência de liberdade religiosa: muitas eram obrigadas a enterrar-se em conventos contra a sua vontade. As razões eram variadas. A primeira era religiosa: múltiplas mulheres eram confinadas à vida conventual, nomeadamente em famílias nobres, para evitar, por exemplo, disputas ou a fragmentação de heranças, isto é, para preservar o património da família. A segunda era por uma questão de honra: diversas famílias nobres enviavam as filhas para proteger a sua honra, nomeadamente as que não se casavam, evitando assim escândalos e garantindo que não violavam as normas sociais da época, que promovia ideais de pureza e castidade femininas. A terceira prendia-se com a busca de um refúgio ou de uma alternativa à vida mundana: o convento constituía uma alternativa à vida doméstica e às obrigações do casamento, optando por uma existência mais espiritual. Uma quarta remetia para uma forma de castigo ou punição, sendo as mulheres encerradas num convento, à força, para punir comportamentos tidos como socialmente inapropriados, como, por exemplo, o adultério ou a rejeição de casamentos arranjados. Repare-se que, 500 ou 600 anos depois, encontramos a novela Amor de Perdição e Teresa Albuquerque, uma jovem que é obrigada a entrada num convento por recusar casar com o primo Baltazar Coutinho, um casamento arranjado pelas famílias.

sábado, 21 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Afons’ Afonses, batiçar queredes", de Afonso Sanches

    Só uma estrofe desta cantiga de Afonso Sanches nos chegou, a qual satiriza um indivíduo chamado Afonso Afonses, a propósito do batismo de um seu criado. Tudo indica, no entanto, que o poema se basearia num equívoco sobre quem é que nunca teria sido batizado – e que seria o próprio Afonso Afonses, pelo que se depreende do verso 6.
    Concretamente no que diz respeito a essa figura, não sabemos exatamente quem é este Afonso Afonses, o qual deseja batizar um criado (“Afons’ Afonses, batiçar queredes / vosso criad’”), porém não tem padre para presidir à cerimónia (“e cura nom havedes / que chamem clérig’”). Nestes versos, encontramos um jogo com a palavra «cura» no duplo sentido de “curar, tratar de” e “ter um padre”. Os últimos versos, nomeadamente o derradeiro, permite questionar quem é que, efetivamente, nunca tinha sido batizado, indiciando que se tratava do próprio Afonso Afonses: “como haverdes, / Afonso Afonses, nunca batiçado?”.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Abadessa, oí dizer", de Afonso Anes de Cotom

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria, da autoria de Afonso Anes de Cotom, é constituída por quatro sétimas, num total de 28 versos de rima emparelhada e interpolada, segundo o esquema rimático ABBACCA, e octossílabos. Nela, encontramos outra sátira dirigida a uma abadessa não identificada.
    Assim, o sujeito poético apresenta-se como recém-casado e órfão [“ogano [há pouco tempo] casei” – v. 5; “nem padre nem madre nom hei.” – v. 13) e dirige-se à abadessa, solicitando-lhe que lhe ensine as técnicas do amor / sexo, pois tinha ouvido dizer que ela era muito conhecedora dessa arte: “Abadessa, oí dizer / que érades mui sabedor / de tod’o bem; e, por amor / de Deus, querede-vos doer / de mim, que ogano casei, / que bem vos juro que nom sei / mais que um asno de foder.” Na última, tanta é a experiência e o conhecimento da abadessa na matéria que o trovador alvitra que as mulheres inexperientes poderiam também recorrer às aulas da religiosa: “e per ensinar a molher / coitada, que a vós veer, / senhor, que nom souber ambrar” (vv. 26 a 28). A expressão “de tod’o bem” indicia o vasto conhecimento da abadessa acerca das práticas sexuais.
    A segunda estrofe repete o conteúdo da primeira: o sujeito lírico ouvir falar acerca das habilidades e da experiência da mulher (“Ca me fazem en sabedor / de vós que havedes bom sem / de foder e de tod’o bem”), por isso faz-lhe um pedido intrigante: “ensinade-me mais, senhor, / como foda, ca o nom sei” (vv. 11-12). Estas palavras parecem insinuar que o trovador já teria tido algum tipo de experiência sexual com a abadessa. Além disso, coloca-se numa posição de inferioridade, pois argumenta que não teve pai nem mãe que o ensinassem, daí a sua falta de conhecimento. Note-se o recurso à expressão “fic’i pastor”, conferindo um tom dramático e, simultaneamente, irónico ao verso, ao afirmar que “fica por aí como um garoto inexperiente”.
    Na terceira cobla, o sujeito poético faz uma proposta à mulher: se aprender com ela o “mester [a arte] de foder” (o calão cru é um traço da linguagem da cantiga), toda a vez que fizer sexo, lembrar-se-á da abadessa e rezará um Pai Nosso por ela: “cada que per foder direi / Pater Noster e enmentarei / a alma [e rezarei pela alma] de quem m’ensinou.” Atente-se na presença da oração subordinada adverbial condicional, que introduz a condição fundamental: as lições da abadessa. Dito de outra forma, o «eu» pede-lhe que lhe ensine o que há de fazer à recente esposa, pois é muito experiente nas artes do sexo, por oposição à sua inexperiência na matéria (antítese experiência / inexperiência). De cada vez que o fizer, ele rezará um Pai Nosso pela abadessa e, desse modo, poderá ganhar “o reino de Deus”, como afirma, sarcasticamente, na derradeira cobla: “E per si podedes gaar, / mia senhor, o reino de Deus, / per ensinar os pobres seus” – vv. 22 a 24).
    O tom de escárnio acentua-se quando afirma que não são os jejuns que a farão ganhar o reino dos céus, mas, sim, a boa ação de “ensinar os pobres seus” (v. 24). Observe-se o uso irónico do determinante indefinido «outro» na expressão “outro jajuar”, que se refere indiretamente ao jejum sexual, isto é, ela ganhará o reino dos céus mais por ensinar-lhe a arte do sexo do que pelo jejum (ou abstinência) sexual. O trovador vai mais longe quando sugere que as próprias mulheres inexperientes deveriam procurar a abadessa e beneficiar dos seus ensinamentos, conhecimento e experiência.
    Em suma, o trovador satiriza a abadessa, que deveria obedecer ao voto de celibato, por, pelo contrário, ser experiente na arte do sexo (certamente por o praticar insistentemente), de tal como que seria capaz não só de ensinar, mas de ganhar a recompensa espiritual máxima (o reino de Deus) pela qualidade dos seus ensinamentos. A religiosa, em tese, não deveria ser versada na arte do sexo, todavia, a realidade da época era bem diferente. É verdade que a vida no interior dos mosteiros, conventos e beatérios nem sempre respeitava os princípios cristãos, as regras da Ordem ou os votos formulados quando os religiosos professavam. Quer a literatura, que as fontes históricas veiculam diversos exemplos de monjas que não levaram uma vida indecorosa, que mantiveram relações sexuais com homens, incluindo clérigos, ou chegaram a ser mães. Foi o caso, por exemplo, da abadessa do monastério burgalês de Las Huelgas nos finais do século XIII, cujo filho, Dom Juan Nunez, foi mestre da Ordem de Calatrava.
    Religiosos, fossem homens ou mulheres, faziam sexo, embora não se saibam as proporções que o comportamento sexual assumiu entre os membros do clero. Seja como for, foi em número suficiente para levar à existência de sátiras como a presente, o que não significa que a cantiga visasse uma abadessa específica.
    Relativamente ao sujeito poético, ao longo da cantiga encontramos expressões que caracterizam, ironicamente, a sua inabilidade no ofício do amor / sexo: “ogano casei” (v. 5); “asno de foder” (v. 7); “fiqu’i pastor” (v. 14).
    Por outro lado, a cantiga evidencia a mistura entre o sagrado e o profano. O primeiro é marcado pela referência a orações (“Pater Noster” – v. 20), ao culto (“reino de Deus” -v. 23; “amor de Deus” – vv. 4-5),ao rito (“jajuar” – v. 25), enquanto o segundo é traduzido pelo ato sexual (“foder” – vv. 7, 10, 17 e 19; “ambrar” – v. 28).
    Além disso, a cantiga representa a ação sexual como acesso ao domínio de um conteúdo, de uma prática, de um método, sendo esse conhecimento atingido através de outrem, no caso, de uma abadessa. Logo, mapeiam-se, no domínio-alvo (ação sexual), saberes relativos ao domínio-fonte (conhecimento), de tal modo que são mapeados, especificamente, saberes sobre o que se aprende empiricamente, descartando os conhecimentos, por exemplo, que se adquirem através dos livros, daí que ocorra, igualmente, nesta cantiga, uma metonímia do tipo parte pelo todo, bem como outra todo pela parte (“mui sabedor de tod’o bem”).

Análise da cantiga "Vós, que por Pero Tinhoso preguntades, se queredes", de Pero Viviães

    Esta cantiga de escárnio e maldizer, da autoria de Pero Viviães, é constituída por três sextilhas (um terceto mais um refrão de três versos), de rima emparelhada (AAARRR) e versos de 15 sílabas métricas (segundo a perspetiva de Rodrigues Lapa; no entanto, a disposição dos cancioneiros é de versos de 7 sílabas métricas).
    De forma genérica, podemos considerar que o sujeito poético se dirige a um TU plural (“Vós”) que deseja saber o paradeiro de Pero Tinhoso. No que diz respeito ao tema, estamos na presença do retrato de um homossexual que é portador de doenças venéreas.
    Assim sendo, podemos desde já ter presente que o alvo d sátira é um indivíduo de nome Pero Tinhoso, sobre o qual não se dispõe de dados que o permitam identificar. Deste modo, “Tinhoso” poderá constituir uma alcunha, embora tenhamos de ter em cinta que o termo aparece duas vezes nos Nobiliários, uma delas em Fernão Pires Tinhoso, tio de Lopo Galo, vassalo dos Briteiros, aparecendo igualmente um Lopo Tinhoso na documentação do mosteiro galego de Toxos Outos, em Santiago de Compostela. Enquanto adjetivo, o vocábulo designa alguém que tem tinha, que é repelente ou nojento, ao passo que, como nome, se refere àquele que sofre de tinha. Assim, se considerarmos que se trata de uma alcunha, é evidente que estamos na presença de um jogo de palavras destinado a satirizar a homossexualidade da pessoa e as doenças venéreas contraídas por essa prática sexual (indiscriminada?). Dito de outra forma, apalavra carrega um tom pejorativo, remetendo para alguém doente, debilitado ou desprezível.
    Passando a uma análise mais pormenorizada da cantiga, o sujeito poético dirige-se, repetimos, a uma terceira pessoa (plural) que o teria questionado querendo saber notícias de Pero Tinhoso. No entanto, o «eu» desconhece «novas», contudo oferece três sinais que mais ninguém conhece, através dos quais se pode (re)conhecê-lo: “traz o toutiço [topo, cabeça] nu”, tem “câncer no pisso” (pénis) e “alvaraz [tumor] no cuu”. Através do recurso ao calão, o sujeito poético ataca a aparência física do alvo da sátira: (uma possível) calvície, cancro do órgão genital e uma úlcera ou ferida no ânus, certamente resultado da prática da homossexualidade. Assim, por meio do calão, da ironia e do sarcasmo, o alvo é satirizado de forma cruel e vulgar.
    Os três primeiros versos de todas as estrofes constituem um «continuum» e são seguidos por um refrão que denuncia as características pelas quais aqueles que procuram por Pero Tinhoso podem encontra-lo: ele possui uma série de doenças venéreas, certamente causadas por práticas homossexuais, do tipo passivo, e que o expõem à vergonha.
    O verso inicial da segunda estrofe liga-se à primeira, confirmando o tal «continuum», através nomeadamente do advérbio de tempo «Já», da forma verbal no pretérito perfeito «preguntastes» e da expressão «noutro dia», que dá a noção de continuidade no discurso: ele já tinha sido questionado nessa altura (vaga e imprecisa, pois não se especifica exatamente a data em que ocorreu) acerca de Pero Tinhoso, porém, nesse momento, não sabia as informações perdidas (“e entom non’as sabia” – v. 8), ao contrário do que sucede agora: “mais por estes três sinaes quem quer o conhosceria”. E repete-se o refrão.
    A última estrofe abre com uma anáfora (com o verso inicial da primeira: “Vós” / “Vós”). O recurso à perifrástica “andades preguntando” indicia que o «vós» tem insistido nas questões sobre Pedro Tinhoso, querendo saber novas dele, insistência essa que sugere que há algo nele peculiar, que desperta interesse, curiosidade. De novo, o sujeito poético elenca três sinais (ou características) que o identificam. No entanto, esses sinais não são imediatamente óbvios, pois exigem ser procurados minuciosamente, como o denuncia o gerúndio «catando». E compreende-se esta ironia, pois as doenças venéreas no pénis e no ânus não são visíveis de imediato; é necessário que a pessoa fique nua e seja olhada com atenção para serem percebidos. Além disso, a forma verbal implica uma observação detalhada, cuidada e paciente, bem como uma busca persistente. Por exemplo, a doença no ânus não é visível a olho nu, necessita até do toque físico para ser desvendada. Por último, o sufixo -ando indica uma ação prolongada, o que confirma que a descoberta dos tais sinais não é imediata, ocorre ao longo de um processo de observação.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Ai Justiça, mal fazedes, que nom", de João Airas de Santiago

    Esta cantiga, da autoria de João Airas de Santiago, é constituída por três sétimas e uma finda de dois versos (dístico), com rima interpolada e emparelhada, segundo o esquema rimático ABBACCA, em versos decassílabos.
    O trovador expressa a sua queixa perante a Justiça, que não quer aplicar a sentença que estabelece o Livro de León a uma dama galega chamada Mor da Cana, eventualmente irmã do trovador Paio da Cana, que lhe queria bem, mas, assim que o teve em seu poder, o matou de amores sem razão: “Ai Justiça, mal fazes, que nom / queredes ora dereito filhar / de Mor da Cana, porque foi matar / Joan’ Airas, ca fez mui sem razom” (vv. 1-4). As leis antigas de Leão estabeleciam que o assassino era enterrado por baixo da sua vítima, daí que o trovador, em nome do “Livro de Leon”, exija que coloquem debaixo de si Dona Mor da Cana, visto que esta o matara de amores. O caráter malicioso da cantiga fica estabelecido a partir daqui: “mais se dereito queredes fazer, [se a Justiça quiser agir corretamente] / ela sô ele devedes a meter [deveis metê-la debaixo dele] / ca o manda o Livro de Leon”.” [pois o manda o Livro de Leon]. De acordo com o sítio cantigas.fcsh.unl.pt, este texto será, provavelmente, o Fuero de León, a mais antiga compilação de leis da Península Ibérica, promulgado em 1017 pelo rei de Leão, Afonso V. Todavia, segundo Eugénio López-Aydillo, dado que a referida pena não se encontra nessa compilação, mas apenas no chamado Fuero de Cuenca, poderemos estar perante um lapso do trovador. Acrescente-se, no entanto, que D. Carolina Michäelis de Vasconcelos refere que, do foral da Lourinhã, consta a pena de enterrar o assassino debaixo do cadáver.
    Deste modo, tendo em conta a primeira estrofe, podemos já afirmar que esta cantiga constitui uma paródia ou amor cortês, nomeadamente ao tópico da morte de amor. Por outro lado, estamos perante o recurso à despersonalização, justificada pela alegada morte do trovador, de quem só uma terceira pessoa poderia assim falar, ou seja, a despersonalização consiste no facto de o poeta falar de si próprio através da voz de um terceiro. Além disso, temos de ter em conta que este recurso está no centro de diversas cantigas de amigo, nas quais diversas vezes a voz feminina que se ouve no texto é, de facto, u mero recurso para a expressão de sentimentos pessoais e até dados biográficos do próprio trovador.
    A segunda estrofe reforça a ideia de que a mulher foi matar o sujeito poético precisamente quando ele mais lhe queria: “e quando lh’el queria mui melhor, / foi-o ela logo matar ali” (vv. 10-11). Por isso, roga que seja observada justiça, aplicando à figura feminina a antiga pena de a sepultar, enquanto “assassina”, debaixo dele, “pois tam gram torto fez” – “metede-a já sô el ua vez, / ca o manda o dereito assi”.
    A terceira estrofe reforça, ainda mais, a mensagem das duas anteriores: quando o trovador acreditava que “houvesse de Mor da Cana bem”, foi “assassinado” por ela, exatamente no momento em que se tornou seu vassalo e a começou a servir: “foi-o ela logo matar por en, / tanto que el em seu poder entrou”. É a sátira clara ao amor cortês, aos tópicos da vassalagem amorosa e da morte de amor. Nos versos finais desta cobla, reitera, novamente, o pedido para que seja feita justiça, “sepultando-a” por baixo dele, fazendo-a, assim, padecer: “metam-na sô el, e padecerá / a que oi a mui gram torto matou”.
    A finda que encerra a composição poética prossegue o tom humorístico e malicioso introduzido a partir do verso 6: quem os vir deitados (“E quen’os ambos vir jazer”), abençoará o “juiz” que “julgou” o caso e determinou a sentença: “Beeito seja aquel que o julgou!” (v. 23). Note-se que este derradeiro verso poderá constituir uma referência equívoca a D. Beito, o símbolo do marido enganado, que é visado em três cantigas de João Airas de Santiago.

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Orraca López vi doente um dia", de Afonso Anes do Cotom

    Nesta cantiga, a velhice é concetualizada como doença. O trovador começa por dizer que viu Orraca López doente e, logo de seguida, a própria revela a sua doença: a velhice.
    Ao vê-la doente, o trovador pergunta se ela guareceria (se curaria) e a mulher responde em tom de brincadeira (jograria) que é velha e cuida (pensa) em se cuidar. Como resposta, ele diz que ela pensa grande folia (loucura), pois disso (da velhice) mais vê ele as velhas morrerem.
    Note-se que, na época, os conhecimentos de medicina eram muito limitados. Por exemplo, nos locais afastados das cidades, as doenças eram tratadas por curandeiros e ervas medicinais. Nos meios urbanos, muitos médicos eram judeus, ao passo que, no ambiente rural, persistiam aquelas figuras a quem era atribuída uma competência tradicional e das quais se dizia possuírem duas especiais: velhas, que usavam ervas, e parteiras, que tinham ganho experiência com a prática. Assim, é evidente que a prática da medicina era escassa, sendo algumas doenças encaradas como um castigo divino, o que era agravado pela ocorrência de doenças até então desconhecidas e de pestes que dizimavam a população. Em muitas cidades, os doentes eram colocados em lugares afastados das restantes pessoas para evitar contágios e mais mortes. A lepra é, ao longo dos séculos, um bom exemplo desta prática. Nos Congrés d’Arras, dois trovadores leprosos descrevem o momento em que se despediram dos amigos antes de partirem para a leprosaria.
    Até ao final da Idade Média, a velhice está associada a uma imagem negativa. A mulher velha, só e pobre, situa-se no ponto mais baixo da escala social e é frequentemente equiparada às forças do Mal.
    Esta cantiga assenta no jogo pergunta-resposta, para lhe imprimir vivacidade, assenta na contradição da deixa, da própria figura feminina, “sõo velha e cuid’a guarecer”.
    Note-se que a velhice, no caso dos homens, assume outros contornos, sendo associada à sabedoria e à experiência, à conservação da memória dos ancestrais, obtendo valor social como conselheiros das gerações mais novas. Por seu turno, a mulher velha, se prudente e virtuosa, poderia servir de exemplo às outras, além de ensinar e corrigir as mais jovens. Por outro lado, muitas velhas consideradas anciãs viviam uma vida pecaminosa, isto é, gostavam de tagarelar, escondiam o corpo deformado e amolecido pela idade / velhice com roupas e cosméticos, buscavam com enganos os prazeres da carne a que deveriam ter renunciado há muito. A esta figura da velha arrebicada e pintada, sobrepõe-se a da mulher alcoviteira que se insinua nas casas alheias como mensageira insidiosa, junto das mulheres, das lisonjas dos amantes, e da “vetula” feiticeira que engana por dinheiro, através de adivinhações e sortilégios, mulheres simples que a consultavam.

domingo, 15 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "A vós, Dona abadessa", de Fernando Esquio

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria, da autoria de Fernando Esquio, mais uma vez em linguagem crua, tem como alvo uma abadessa, a quem o trovador alegadamente lhe envia um conjunto de “objetos de consolação” (“caralhos franceses”), ricamente adornados. A composição poética toma maliciosamente a forma de um bilhete cortês que acompanha a oferta, com o nome do “servidor” logo no segundo verso. Ou seja, o poema aborda o tema da masturbação feminina.
    O trovador dirige-se à abadessa através de uma apóstrofe (“A vós, Dona abadessa”), para lhe declarar que lhe vai enviar um presente (“de mim, Dom Fernand’ Esquio, / estas doas vos envio” – vv. 2-3), porque sabe que o merece: “quatro caralhos franceses” para ela e dois para a prioresa. O que é posto aqui em questão é a condição celibatária, isto é, a falta de atividade sexual, dos religiosos. O trovador acha-se no direito de oferecer um consolo (o que designaríamos hoje por vibrador) à abadessa, para que esta experimente, ainda que indiretamente, o membro viril de um homem. Desta forma, denuncia-se que as religiosas, por não poderem possuir parceiros sexuais, tinham a possibilidade de se satisfazer sexualmente com consolos (“caralhos franceses”).
    Ironicamente, o trovador chama-se amiga, mas é por causa dessa relação de amizade que não olha a despesas (“nom quer’ a custa catar”) para lhe oferecer o mais depressa possível (“ca nom tenho al tam aginha”, quer dizer, não tenho nada rápido) “quatro caralhos de mesa” (aparentemente, os consolos adornavam os tocadores das damas). Dito de outra forma, o presente foi caro, mas o trovador não quer fazer conta dele (v. 9), pois a religiosa (a abadessa) é sua amiga. De seguida, o «eu» poético, no que diz respeito à procedência, assegura que os obteve através de uma burguesa (“que me deu ua burguesa”), e enviar-lhos-á em saquinhos próprios, cada um contendo dois.
    O presente agradará à abadessa (“Mui bem vos semelharam”), pois possuem traços especiais: têm cordões (“ca sequer levam cordões”), são descomunalmente grandes (“quatro caralhos asnaes”) e possuem um manípulo que facilita o seu manuseio (“enmanguados em coraes / com que calhedes a mam.”). Assim sendo, o trovador destaca quatro aspetos dos consolos: a origem, a qualidade, o tamanho e a praticidade.
    Em primeiro lugar, ele deixa bem claro que os caralhos são franceses (origem), o que implica que haveria outros tipos de caralhos no mercado além daqueles. Dito isto, tendo em conta que as práticas sexuais femininas eram fortemente reguladas pela Igreja, como poderiam as mulheres aceder a brinquedos sexuais? Parece evidente que a esmagadora maioria não teria acesso aos mesmos, desde logo porque não seria fácil encontra-los. Seja como for, a cantiga parece fornecer uma solução para a questão, quando refere a figura de uma burguesa (a qual teria fornecido os consolos), o que quererá dizer que eles seriam encontrados num ambiente urbano. Por outro lado, a referência à burguesa e ao seu papel de «fornecedora» dos objetos significará que se trata de um assunto exclusivamente feminino, tratado entre mulheres.
    Em segundo lugar, temos a qualidade do produto. O «eu» poético descreve os “caralhos franceses” e dá conta que são ornados de coral (v. 20), o que aponta para o facto de haver o cuidado de os enfeitar e embelezar, desde logo porque, além da função sexual que cumpriam, eram igualmente um artefacto de mesa (“quatro caralhos de mesa” – v. 12), adornos. Claramente, estamos na presença de uma ironia.
    Em terceiro lugar, é abordada a questão do tamanho, que, de acordo com o verso 19 (“asnaes”), evidencia a qualidade do produto. Por outro lado, esta referência ao tamanho descomunal indicia que havia variedade de tamanhos à escolha. Na cantiga, o trovador, porque é amigo dela, faz questão de enviar à abadessa os melhores / maiores possíveis, para lhe provar o sentimento que nutre pela mulher e porque esta merece.
    Em quarto e último lugar, a praticidade é sugerida pelo facto de os “caralhos” possuírem um manípulo que facilitava o seu manuseio. Ou seja, os instrumentos eram de grandes dimensões e fáceis de manusear, pelo que certamente proporcionariam prazer a quem os usasse.
    A cantiga dá testemunho da existência de brinquedos eróticos na Península Ibérica medieval, de origens variadas, aspetos, tamanhos e materiais. O acesso, quase de certeza, seria bastante restrito, e itens mais paramentados – como os referenciados à abadessa – deveriam ter um custo elevado. Note-se que, de acordo com o verso 15 (“Muito bem vos semelharam”, ou seja, me lembram de vós), não seria a primeira vez que a abadessa possuiria esse tipo de objeto.
    Por outro lado, se havia outros tipos de instrumentos e com outras imagens, estes talvez fossem mais acessíveis a outras mulheres interessadas. Seja como for, esta cantiga alude, por um lado, a uma temática diferente no contexto da poesia trovadoresca – a masturbação feminina – e, por outro, traduz práticas dissidentes das regulamentadas pela Igreja. O sexo – ou, como é o caso desta composição poética, a sua simulação – podia consumar-se de modo diverso do regulamentado e permitido pela união matrimonial. Se uma abadessa conseguia ter acesso a um instrumento de prazer como este, o que impedia que uma mulher casasa também o pudesse?

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