quarta-feira, 26 de julho de 2023
Análise do poema "Laço de fita", de Castro Alves
terça-feira, 25 de julho de 2023
Análise do poema "O navio negreiro", de Castro Alves
terça-feira, 4 de julho de 2023
Análise do poema "Antítese", de Castro Alves
segunda-feira, 3 de julho de 2023
Análise do poema "Adormecida", de Castro Alves
O poema
parte de uma epígrafe retirada de Musset, um poeta romântico francês, que se
refere aos cabelos, à sensualidade e à cruz, símbolo da religião. Aqui, junta
dois elementos: a sensualidade e a religiosidade, que será o assunto do texto.
A epígrafe não é sinal de imitação, mas estabelece a ponte para o sonho e para
a evasão, associando-se ao título por remeter também para a circunstância de
uma jovem adormecida: “Ses longs cheveux épars la couvrent tout entière / La
croix de son collier repose dans sa main, / Comme pour témoigner qu’elle a fait
sa prière. / Et qu’elle va la faire em s’eveiliant demain.”
A
descrição é feita a partir da memória, pois trata-se de uma recordação do
sujeito lírico: “Uma noite eu me lembro…”. Ele recorda a imagem da mulher a
dormir numa rede, uma cena prenhe de serenidade, doçura e sensualidade: ela
está encostada “molemente”, de roupão “quase aberto”, cabelos soltos e pé
descalço. De facto, na primeira quadra, é construída a imagem da mulher amada,
associando-a à sensualidade e à languidez suave, ideias sugeridas, por exemplo,
pelo advérbio de modo «molemente», pelos adjetivos (“aberto”, “solto”,
“descalço”). Por sua vez, as reticências abrem as portas ao onírico e deixam
algo em suspense, à imaginação, enquanto elementos como a noite, a rede, o
roupão, o cabelo ou o tapete contribuem para a construção do ambiente íntimo da
figura feminina, sugerindo claramente a intimidade e a proximidade do «eu» e da
amada.
A
segunda quadra centra-se na janela aberta, por onde entra um cheiro agreste,
proveniente das silvas da campina, e através da qual se pode ver uma noite
“plácida e divina” e “um pedaço de horizonte”. O «eu» evoca o cheiro agreste
das silvas e, de seguida, o jasmineiro, cujos galhos entravam pela janela e
tocavam na mulher, que dormia sensualmente. Ocorre aqui uma divinização ou
espiritualização do momento, quando o «eu» refere que a noite era plácida e
divina e, na quarta, se alude a um «quadro celeste», que é desenvolvido nas
estrofes seguintes. Enquanto isso, a brisa suave invadia o compartimento,
fazendo com que o jasmineiro, que estava em flor, balançasse e tocasse a
mulher. Esse instante em que a flor a tocava e ela, ao senti-la, a procurava
suavemente, causava sensações eróticas no sujeito poético.
As duas
estrofes seguintes apresentam um “quadro celeste”, doce e sensual: o
jasmineiro, personificado, é apresentado num movimento cujos galhos, obviamente
também personificados (“galhos encurvados / indiscretos entravam pela sala… /
Iam na face trémula beijá-la”), quais braços humanos, balançam, ora se
aproximando, ora se afastando da mulher adormecida, constituindo cada
aproximação da face feminina uma tentativa de a beijar. O jasmineiro, um ser
inanimado, é, de facto, personificado, isto é, são-lhe atribuídas
características dos seres animados, de modo a poder executar as ações que o
«eu» não pode ou não consegue. Assim, a planta passa a desejar a mulher, sendo
que esta o manipula por meio da sedução, ou seja, permanecendo dormindo, sedutora,
na rede.
O que
se segue é uma espécie de jogo de sedução, em que o jasmineiro e a mulher
brincam como “duas cândidas crianças”: quando a flor da planta beija a figura
feminina, esta, mesmo que em sonhos, estremece e, quando tenta devolver o
beijo, aquela foge com o balanço do jasmineiro. O sujeito poético coloca-se na
posição de observador e contempla esta cena. Por outro lado, ao colocar a
natureza e a mulher em contacto físico – e logo através de algo tão
profundamente íntimo como um beijo – prossegue a construção da cena de
sensualidade. O recurso a formas verbais no pretérito imperfeito (“estremecia”,
“serenava”, “beijava”) e a insistência nas reticências criam um clima de
erotismo comedido através da interação e troca contínua de carícias entre a
mulher e a flor. O jasmineiro age como um amante que, sorrateiramente, acaricia
a figura feminina, beija a sua face e depois se afasta quando ela tenta
devolver o beijo. Atente-se ainda no facto de a flor, para a biologia, ser o
órgão reprodutor das plantas, pelo que se pode entender como metáfora do órgão
sexual feminino, constituindo o seu desfloramento a perda da virgindade.
É
curioso observar dois movimentos contrários. Num primeiro momento, o
jasmineiro, através dos seus galhos, seduz a mulher, beijando-a (o que deleita
o sujeito lírico: “quadro celeste”), contudo, posteriormente ocorre uma
inversão de papéis quando ela tenta beijar a planta, que, no entanto, foge. Ou
seja, ela não só aceita a sedução, como também a retribui, porém é recusada.
Por que
razão é escolhido o jasmineiro e não uma outra planta ou árvore para
contracenar com a mulher? O jasmineiro é um arbusto pequeno, ereto ou trepador
com caules longos, o que permite encará-lo como metáfora do órgão sexual
masculino. Por outro lado, essa planta também possui propriedades afrodisíacas,
o que reforça a ideia da sedução presente no texto.
A
quinta estrofe infantiliza a mulher e coloca-a num plano virginal, ao
associá-la a uma criança, enquanto a brisa, que agitava as folhas verdes, fazia
ondular os seus cabelos negros entrançados. Vocábulos como «doce», «brincavam»,
«cândidas» e «crianças» conferem à cena ingenuidade, infantilizando a figura
feminina e valorizando a virgindade, característica de sociedades antigas e
mais conservadoras.
A
última estrofe enaltece o caráter virginal da mulher amada e estabelece a
relação de identificação entre a mulher e a natureza. Nos dois versos iniciais,
o sujeito lírico clarifica o seu estatuto de observador da cena (“Eu, fitando
esta cena”) e, nos dois últimos, começa por caracterizar o jasmineiro de
“virgem das campinas”, para, no derradeiro, se dirigir à amada, apelidando-a de
virgem e a definir como a flor da sua vida. Assim, ao denominar a natureza e a
mulher por meio do mesmo vocabulário, promove a identificação entre ambas. Na
verdade, podemos concluir que o «eu», ao observar o jogo de sedução entre o
jasmineiro e a jovem, o vento que lhe agita os cabelos, os beijos da flor e o
subsequente retraimento, na realidade, desejava ser ele mesmo a acariciá-la, beijá-la e repeli-la. Note-se
também que a imagem final que ressalta passa pela negação da sedução negativa e
pela exaltação da pureza e virgindade da mulher: ela permanece virgem, apesar
de toda a sedução de que é objeto e da ação do jasmineiro / da flor. Atente-se na
expressividade do adjetivo «lânguida», que caracteriza a noite, o qual
significa “doçura”, “sensualidade”, “voluptuosidade”, mas também “abatimento”, “fraqueza
emocional ou física”.
Ao
longo do poema, existe uma oposição entre as ideias de sedução/sensualidade (o
roupão aberto, a carícia, os beijos, a chuva de pétalas no seio, o
estremecimento da mulher, o cabelo solto, o adormecimento, etc.) e de pureza,
sugerida pela adjetivação (“cândidas”, “celeste”, “divina”, “doce”), pela
associação a uma criança ou por nomes como “virgem” ou “sonhos”.
Neste
poema, já não temos a natureza em todo o seu esplendor, mas sim uma cena de
interior, em que aquela está presente apenas em parte: aquilo que entra pela
janela. É uma natureza muito expressiva e essencialmente romântica. No
Romantismo, a natureza começa por ser cenário; depois é mais que isso:
participa na ação e pode identificar-se com a mulher – “Brincavam duas cândidas
crianças” (natureza + mulher).
Apesar
de ser um poema romântico, há elementos específicos do Brasil, como a «rede»,
elemento específico dos costumes brasileiros, símbolo da sensualidade e que
aparece ligada à mulher. Esta é identificada com a natureza, mas também com a
criança. A descrição surge de uma atitude de contemplação do «eu» poético: é
retórica e principalmente expressiva e tem como características fundamentais a
sensualidade. Essa identificação acentua-se nos dois últimos versos do poema,
ao ser classificada como «virgem» a flor e a «virgem» como flor.
domingo, 2 de julho de 2023
Análise do poema "Sonho da Boémia", de Castro Alves
Análise do poema "Horas de Martírio", de Castro Alves
domingo, 1 de janeiro de 2023
Análise do poema "O Gondoleiro do Amor"
sábado, 31 de dezembro de 2022
Análise do poema "Os Três Amores"
O poema é constituído por três sétimas com rima emparelhada, cruzada e interpolada, de acordo com o esquema rimático ABCADDB, com um verso na primeira estrofe, e versos decassílabos.
O tema é o amor, tratado em três
partes distintas, mas de construção paralela: I: Tasso – Eleonora; II: Romeu –
Julieta; III: D. Juan – Júlia. Os nomes são exemplificativos, porque
personificam uma situação própria e simbólica. A mudança de personagens
condiciona a mudança de ambiente. A construção formal é a mesma nas três
estrofes; muda o motivo, os símbolos e o ambiente. Isto aponta para a divisão
do «eu» romântico abstrato concretizado em personagens reais. Se atentarmos na
data de escrita do poema (setembro de 1866), podemos especular que a composição
tenha sido escrita para a sua amada, a atriz portuguesa Eugénia Câmara. Nela, o
«eu» cita três diferentes situações vivíveis com a mulher amada, aludindo a
três obras importantes da literatura mundial para descrever esses momentos com
a mulher: a ópera Torquato Tasso, a peça Romeu e Julieta e El
Burlador de Sevilla o El Convidado de Piedra.
Assim, a primeira estrofe remete
para a mencionada ópera, da autoria de Gaetano Donizetti, que decorre na cidade
italiana de Ferrara e se baseia na vida do poeta Torquato Tasso, que vive um
romance cheio de desencontros e escândalos que termina com a perda da amada. O
sujeito poético encarna o poeta italiano e retrata o amor de forma idealizada,
um amor não realizado, embora sublime e sereno. Com efeito, há uma apropriação
da história dos amores de Tasso por Eleonora, nobre de Ferrara a quem ele dedicara
os seus versos e que acaba ensandecido pela ideia fixa de perseguição
religiosa. Tasso é o cantor do sofrimento amoroso, que chora (canta) a cidade
da sua amada, cuja visão risonha lhe afugenta o sofrimento e a solidão.
A segunda estrofe remete para a peça
Romeu e Julieta, também ela situada em Itália, concretamente na cidade
de Verona, onde decorrem os amores impossíveis e contrariados entre dois jovens
de famílias rivais, uma paixão que termina de forma trágica com a morte dos
dois apaixonados. O sujeito poético deixa de lado o plano espiritual e passa ao
terreno amoroso. Para isso, pede a ajuda dos ícones da literatura amorosa,
ainda que trágica: Romeu e Julieta. Ao encarnar o herói de Shakespeare, o «eu»
alude ao amor transcendental, isto é, ao amor que, apesar das barreiras sociais
que o obstaculizem, se concretiza. O recurso à conjunção coordenativa
copulativa «e» no último verso une as duas figuras femininas referidas no
poema: Eleonora é também Julieta, isto é, são duas mulheres numa (quando
concluída a terceira estrofe, serão três numa). Dito de outra forma, a mulher
amada pelo sujeito poético é Eleonora, mas também é Julieta e ainda Júlia, ou
seja, ele deseja as várias facetas da mulher. Para ele, o amor não possui
apenas uma face, mas várias, e a mulher é, ao mesmo tempo, pura e sensual.
Por sua vez, a terceira estrofe
contém referências à obra de Tirso de Molina, cujo protagonista é D. Juan, um
jovem belo que seduz Júlia, uma rapariga espanhola de origem nobre que
assassina o pai. Estamos na presença de um amor sensual, carnal e amaldiçoado,
cujo desenlace é igualmente trágico. O amor platónico cede lugar ao desejo
ardente, à volúpia e à paixão descontrolada: “Na volúpia das noites andaluzas /
O sangue ardente em minhas veias rola…”. Como não poderia deixar de ser, o
vocabulário traduz esse amor/paixão/desejo, através de uma linguagem repleta de
erotismo: ”sangue”, “ardente”, “leito”, “seio”, “desfaço-te”. Atente-se também
na expressão «Eu morro», que alude à petit mort, isto é, ao orgasmo, se,
por acaso, ele lhe desfizer a mantilha. Em suma, esta estrofe alude claramente
à iniciação amorosa de D. Juan por Júlia, a espanhola fogosa.
Análise do poema "Boa noite"
O poema contém uma epígrafe,
que é a primeira fala de Julieta da cena V de Romeu e Julieta, em
francês, e que introduz o tema do poema. Nesse passo da obra de Shakespeare,
Romeu apressa-se para partir, pois o dia está a nascer, o que pode denunciar a
sua presença ali, nos jardins dos Capuletos, e, consequentemente, o encontro
furtivo de ambos, porém Julieta tenta convencê-lo de que o canto que ouvem
pertence ao rouxinol, ave que canta à noite, e não à cotovia, que anuncia a
chegada do dia. Isto significa que Julieta não quer que o amado parta. Esta é
uma característica tipicamente romântica. De facto, a mulher desempenha um
papel ativo no relacionamento amoroso, procurando impedir a partida do «eu», fazendo
uso das artimanhas da sedução, nomeadamente apertando-o contra os seus seios,
entre beijos, abraços e, sobretudo, descobrindo o peito. Perante este cenário,
quem deixaria essa alcova?
A composição abre com o «eu» poético
anunciado que “é tarde”, por isso ele vai-se embora. Estas atitudes
encontram-se noutros poemas de Castro Alves e torno da figura de D. Juan, já que
este seduz a mulher e depois abandona-a. No entanto, neste poema, esse esquema
é desrespeitado, visto que o abandono não se concretiza, dando lugar ao jogo
sensual, que vai da necessidade de ir ao desejo de ficar. De facto, nas duas
estrofes iniciais, o sujeito lírico, mesmo anunciando a sua partida, deseja
ficar e sente-se seduzido pela amada: “Boa-noite, Maria! É tarde…. é tarde… /
Não me apertes assim contra teu seio.”; “Boa-noite!... E tu dizes – Boa noite.
/ (…) / Mas não digas assim por entre beijos… / Mas não mo digas descobrindo o
peito, /– Mas de amor onde vagam meus desejos.”
Na terceira estrofe, o sujeito poético
chama por Julieta e refere-se a ela até à oitava estrofe, e fá-lo através de
uma linguagem sensual e erótica, que se estende por todo o poema, numa gradação
de volúpia que alimenta ainda mais a vontade de ficar: “Desmanchando o roupão,
a espada nua – / O globo de teu peito entre os arminhos”; “os teus contornos”; “afago
de meus lábios mornos”. A descrição do espaço amoroso, tal como a descrição do
corpo da mulher, é alimentada com o fogo da paixão. Nesse passo, as imagens
ligam-se à noite, o tempo dos amantes: “Boa-noite”, “a lua, “é tarde”, “cabelo
preto”, “a frouxa luz da alabastrina lâmpada”, “negro e sombrio firmamento”. Na
sétima estrofe, encontra-se outra cena sensual em que ocorrem imagens eróticas
como a personificação da luz a lamber os contornos da mulher e a menção a um
fetiche, sugerindo o ato sexual pela aproximação dos lábios do «eu» poético aos
pés da mulher amada: “A frouxa luz da alabastrina lâmpada / Lambe voluptuosa os
teus contornos… / Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos / Ao doudo afago de
meus lábios mornos.”
Note-se, por outro lado, que há a
fragmentação da mulher, aludindo a uma possível infidelidade amorosa. De facto,
a figura feminina duplica-se: primeiro é Maria, depois Julieta, Marion e, por
último, Consuelo. Estas quatro mulheres representam uma única aventura amorosa
que decorre entre a noite e o dia. O “Boa noite”, que, de início, soa como
forma de cumprimento noturno de despedida e separação (o «eu» poético deseja
ir-se embora), no final parece configurar-se como abandono e entrega no reduto
da amada, mesmo que se trate de uma entrega dúbia, pois o dormir, no contexto
do “negro e sombrio firmamento” do cabelo da mulher, assume ares de morte, de
mergulho na noite, de dissolução e desdobramento do sujeito poético num Eros
infinito, negro e sombrio, ligado ao reino de Tânatos, no desenvolvimento do
poema.
O «eu» poético, assim como Don Juan,
não se contenta com uma única mulher, quere-as todas. Ele encontra-se em busca
permanente pela mulher ideal, por isso, a mulher que já foi Maria, na primeira
estrofe, e já foi Julieta, na penúltima estrofe, é Marion, musa de Victor Hugo,
e será, na última estrofe, Consuelo, “personagem de George Sand, que viria dar
o título à poesia inspirada por Agnèse Murri em 1871.
Um elemento que desempenha papel
importante no poema é a natureza, que funciona como cenário dos acontecimentos,
mas cujo papel não se esgota aí, pois reflete a mulher e até o «eu», conferindo
grandeza à beleza feminina e ao próprio sentimento amoroso. Assim, a natureza é
personificada e associada à mulher e às suas formas. Na segundo estrofe, o
peito da mulher é apresentado como um mar de amor onde vagam os desejos do
sujeito lírico. Na terceira, o canto da calhandra é comparado ao hálito da
amada; enquanto na quarta o cabelo preto é a noite; na quinta, o peito é a lua;
na sexta, as cortinas são as asas do arcanjo dos amores; na sétima, a lâmpada
lambe voluptuosa os contornos de Julieta; na oitava, das teclas dos seios saem
harmonias e escalas de suspiros; na décima, o cabelo feminino é associado a um
negro e sombrio firmamento.
Para os dois apaixonados, a noite é
o tempo do encontro, da sua vida enquanto amantes, enquanto que, para os
restantes, é momento da «morte». O dia, por sua vez, é o momento da separação
do casal, portanto de morte amorosa, e de vida para a realidade dos homens.
Atente-se no seguinte verso: “A lua nas janelas bate em cheio”.
Metaforicamente, podemos vislumbrar aqui a ideia da penetração carnal, dado que
a janela, sendo um orifício, indicia a imagem da penetração.
Por outro lado, o poema é bastante
rico em matéria de recursos estilísticos. Destacam-se, desde logo, as anáforas,
por exemplo nos versos 16 e 17, bem como no final da quarta e no início da
quinta estrofe: “É noite ainda”; “É noite, pois…”. Segue-se a hipérbole,
nomeadamente na comparação dos versos 37 e 38 (“Como um negro e sombrio
firmamento, / Sobre mim desenrola teu cabelo…”), onde o cabelo da mulher amada
é comparado à escuridão da noite infinita, enfatizando o poder misterioso que
este tem sobre o sujeito poético, o que acentua a hipótese da relação de Eros
com a morte (negro e sombrio). Destacam-se também a enumeração e a gradação,
que surgem sobretudo na oitava estrofe, quando das teclas do seio da amada o
«eu» bebe “harmonias / Que escalas de suspiros”, ou na nona, quando a cavatina
do delírio “Ri, suspira, soluça, anseia e chora…”. Por último, considere-se a
apóstrofe, que é usada principalmente para pôr em evidência a(s) amada(s). A
presença do hipérbato (“Se a estrela d’alva os derradeiros raios / Derrama nos
jardins de Capuleto”, etc.) conferem uma certa feição barroca ao texto, mas de
exaltação à vida, não de melancolia e pessimismo.
O poema descreve quatro mulheres,
que se poderão resumir a uma: Maria. A composição parte de Maria, passa pela
platónica Julieta de Shakespeare, atinge o seu clímax na figura de Marion
(Delorme) – a intensa e sexual musa de Alfred de Vigny e Victor Hugo – e termina
em Consuelo, o protótipo de musa (grande cantora lírica) de George Sand, não
tanto platónica ou sexual como Julieta ou Marion.
quarta-feira, 28 de dezembro de 2022
Análise do poema "Prometeu", de Castro Alves
Análise do poema «O "adeus" de Teresa»
Nele encontramos todos os elementos
de uma narrativa: tempo, espaço, ação e personagens (ele, ela e o outro). Tudo
começa pelo enamoramento, dominado pela paixão. Há uma partida do «ele» e uma
volta que depara com uma situação diferente que motiva a escrita do texto:
O segundo momento da relação
consiste na concretização do amor do casal através da sugestão do ato sexual. O
hipérbato do verso 2 (“E da alcova saía um cavaleiro”) envolve a figura num
ambiente de mistério, disfarçando, pelo recurso à terceira pessoa, a personagem
que o verso seguinte esclarece ser o próprio «eu», que beija uma mulher sem
véus, isto é, Teresa. Este estratagema desperta, naturalmente, a curiosidade,
mesmo que por breves instantes, relativamente àquela figura. As aliterações em
/d/ e /b/ em “inda beijando” sugerem o ruído do beijo. A despedida, neste
segundo momento, ocorre após um momento de amor tórrido, constituindo uma
separação temporária, em plena vivência da paixão que os une.
O terceiro momento reafirma o
caráter intenso do romance e a partida do sujeito poético, desta vez por um
período de tempo mais longo, sugerindo que os encontros amorosos que decorreram
nesse período foram muitos e intensos: “Passaram-se tempos… séc’los de delírio
/ Prazeres divinais… gozos do Empíreo”. Note-se a presença de várias hipérboles
nesta estrofe: “séc’los de delírio”, “prazeres divinais”, “gozos do Empíreo”,
as quais intensificam a relação amorosa e prolongam a ideia de arrebatamento da
primeira, bem como as aliterações em /p/, /t/ e /d/ (“Passaram tempos…
delírio”; “prazeres divinais… Empíreo…”), que sugerem o ritmo e a sonoridade da
estrofe e o arroubo da paixão. A despedida neste caso dá-se antes de o «eu»
viajar, prometendo voltar, assumindo, assim, uma carga de maior dramatismo, até
porque a figura feminina fica muito chorosa.
O quarto momento corresponde à
rutura amorosa: de acordo com a perspetiva do sujeito poético, Teresa está
apaixonada pelo outro homem (“Foi a última vez que eu vi Teresa!...”). O uso do
pronome pessoal maiusculado (“Ela”) enfatiza a figura feminina, destacando-a no
contexto da festa, demonstrando o espanto do sujeito poético ao deparar com uma
cena inimaginável para si – encontra-la com outro homem – e invertendo a
posição de dominador e presa na relação amorosa. O nome «lares» aponta também
para o espaço geográfico onde o «eu» lírico mora, o que evidencia que ele e
Teresa pertencem a espaços diferentes. A assonância em /a/ e /e/ (“era o
palácio em festa”) sugere a atmosfera festiva e musical que rodeia Teresa. Esta
última despedida ocorre quando o sujeito lírico regressa e a encontra numa
festa acompanhada por outro homem, com o qual canta junto à orquestra.
Por outro lado, as quatro reações de
Teresa às despedidas – “corando” (v. 6), “entre beijos” (v. 12), “em soluços”
(v. 18) e “arquejando” (v. 24) – evidenciam a trajetória da relação, marcada
por uma evolução (de “corando” para “entre beijos”), seguida de um declínio (de
“em soluços” para “arquejando”). Ou seja, a relação amorosa evolui de um amor
repentino para a sua realização sexual e desta para o distanciamento e a
rutura, uma situação característica do Romantismo.
O título do poema aponta,
desde logo, para a despedida, concretamente através do uso do vocábulo “adeus”,
colocado entre aspas e antecedido do determinante artigo definido “o”, e que é
repetido várias vezes ao longo do texto. Por outro lado, o resto do título remete
a responsabilidade da última despedida para afigura de Teresa, quando quem até
aí partia e se despedia era o «eu», o elemento do par amoroso que dominava a
relação, que definia quando os encontros tinham lugar, enquanto ela se limitava
a responder ao adeus, murmurar, chorar e soluçar. Esta ideia é confirmada pelo
recurso ao adjetivo «presa», no verso “Adeus lhe disse conservando-a presa”,
que sugere que ela está amarrada a ele, podendo também ver-se nela o resultado
da caça. Tudo isto corresponde a uma certa tradição literária, que apresenta o
homem como o elemento dominante na relação e a mulher, o dominado e submisso.
No entanto, o título parece contradizer esta ideia, pois aponta Teresa como a
responsável pela separação, bem como a traição final, pois, na época, o poder
de seduzir e de fazer o homem sofrer é sempre da mulher.
No que diz respeito à conceção da
figura feminina, Teresa não corresponde ao modelo tradicional da mulher
apaixonada, recatada e submissa que permanece fiel ao homem amado, que partiu e
está ausente, e que encontramos, por exemplo, nos poemas homéricos, encarnada
na personagem de Penélope, a esposa de Ulisses, que se lhe manteve fiel durante
os vinte anos em que esteve ausente de casa (dez da guerra de Troia e dez do
regresso ao torrão natal). Pelo contrário, Teresa afirma-se como uma mulher
independente e livre que procura satisfazer os seus desejos e prazeres.
Formalmente, o poema é constituído
por versos decassílabos, com rima emparelhada e interpolada, de acordo com o
esquema AABCCB, consoante (“Teresa” / “correnteza”) e rica (“seus” –
determinante – “adeus” – nome).
segunda-feira, 26 de dezembro de 2022
Análise do poema "Vozes de África", de Castro Alves
O sujeito poético deste poema
representa todo o continente africano, isto é, todos os homens e mulheres que
eram forçados a abandonar a sua terra para trabalhar como escravos. Assim
sendo, podemos deduzir que o «eu» lírico é, no fundo, todo um continente que
sofre com os seus homens e mulheres que partem e sofrem todo o tipo de
provações. De facto, o texto é construído a partir do ponto de vista do
continente africano. Por outro lado, a composição poética denuncia o tráfico
negreiro e a escravidão a que os negros eram sujeito e mostra as
arbitrariedades e a injustiça que decorrem dessa cultura de aprisionamento da
pessoa negra. Em simultâneo, esse mesmo sujeito poético suplica a intervenção e
a bondade divinas e procura compreender os motivos que originam tal situação e
tanto sofrimento.
No início do poema, o «eu»
personifica a África, por ser uma criação de Deus, e toma para si as palavras
ditas por Jesus Cristo, seu Filho, há mais de dois mil anos, na tentativa de
ser ouvido por Ele. O mesmo sucederá, ao longo do texto, com os outros
continentes, sendo, pois, todos vistos como entidades humanas. Ele clama por
Deus de forma desesperada pelo facto de nesses dois milénios ter implorado, em
vão, a sua ajuda, no sentido de o libertar do sofrimento (a escravidão). De
facto, a composição apresenta o negro como uma vítima e personifica a África
(que correspondeu ao «eu»), que, desesperada, pede perdão pelos seus crimes. No
fundo, trata-se de um olhar católico sobre a situação, radicado na visão
europeia do mundo e das coisas, daí as referências religiosas referidas e a
atitude de resignação que se adivinha. De facto, a África dirigir-se-ia não ao
Deus monoteísta cristão, mas a um deus (com «d» minúsculo) ou aos deuses, em
respeito pela sua cultura politeísta. Assim sendo, se é verdade que Castro
Alves reconhece o sofrimento do povo africano, fá-lo a partir de uma perspetiva
cristão europeia. África, como tantas vezes tem sucedido ao longo dos tempos,
reclama da escravidão que tem sido imposta aos seus filhos e questiona a figura
divina por a ter abandonado e se manter silenciosa relativamente ao seu drama.
Na segunda estrofe, o sujeito
lírico faz referência ao mito de Prometeu, o irmão de Atlas que roubou o fogo
sagrado aos deuses do Olimpo para o dar aos seres humanos e, por isso, foi
acorrentado ao Cáucaso, onde, diariamente, uma ave de rapina lhe comia o
fígado, que se regenerava de seguida. Deste modo, Prometeu constitui o símbolo
do sofrimento incessante, daí a sua comparação com África, para quem o
sofrimento é igualmente eterno. Contudo, neste caso, ainda não se conhece o
motivo da punição. No poema de Castro Alves, a ave de rapina que atormentava
Prometeu é comparada ao sol ardente que todos os dias castiga o continente
africano. Por seu turno, o próprio continente africano está preso por correntes
à região litoral de Suez, na Itália: “E a terra de Suez – foi a corrente / Que
me ligaste ao pé…”. Note-se que até 1859, quando o engenheiro Ferdinand de
Lesseps construiu o Canal de Suez, o Médio Oriente era considerado parte do
território africano. Só então houve a separação geográfica e cultural entre
esses espaços. Esta nota coloca a Europa na dependência da África, ou seja, a
cultura ocidental baseou-se no continente africano para construir muitas das
suas formas de conhecimento. O castigo passa também pelo ambiente fragoso e
desértico que caracteriza África.
A partir da terceira estrofe
até à sétima, África compara-se às suas irmãs, isto é, aos outros
continentes, num percurso que vai do passado ao presente, e indaga a razão do
seu sofrimento em relação à Europa e à Ásia: “Minhas irmãs são belas, são
ditosas… / Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas”; ”A Europa – é sempre Europa,
a gloriosa!...”. Embora se considere irmã dos outros continentes, torna claras
as diferenças e queixa-se de que aquelas são as preferidas de deus, pois foram
contempladas com coisas maravilhosas, enquanto que ela foi abandonada (v. 49),
sendo que até o próprio deserto conspira, escondendo as suas lágrimas, para que
Deus não as veja (vv. 46, 47 e48). África contempla as riquezas das suas duas
“irmãs”, às quais mais tarde se vem juntar a traidora América. No que diz
respeito à Ásia, é enfatizada a sua beleza e exuberância cultural e natural,
descrita de forma idealizada, como é característico do Romantismo: os haréns do
Sultão, a natureza (os animais – os elefantes brancos, os Himalaias, o rio
Ganges, os corais), a cultura e os monumentos / templos, as crenças, os deuses,
os pagodes. Relativamente à Europa, está presente uma dose apreciável de
realismo crítico, de rancor e ironia quando se lhe refere. Assim, aquela é
apelidada, ironicamente, de “Progressista” (quando era a responsável pelo
tráfico negreiro), de mulher vaidosa, dominadora e meretriz. Por isso, a voz de
África solicita aos ícones da cultura que se libertem dos valores da “grande
meretriz” presentes no “mármore de Carrara” (tipo de mármore branco ou
azul-cinza de alta qualidade muito usado em esculturas, por exemplo, extraído
na zona da cidade de Carrara, da região da Toscana, em Itália) e nos “hinos de
Ferrara”, dado que a dominação europeia foi construída em cima da subjugação
tirânica e violenta dos povos africanos, pelo que cabe à Europa uma contestação
judicial (“litígio”). Ou seja, neste passo, sugere-se uma espécie de
ressarcimento de todos os bens e danos cometidos com a exploração do ser
africano.
Contrastando com o poder da Europa e
o exotismo exuberante da Ásia, a África só tem para mostrar a sua miséria: “Eu
triste abandonada”; “Perdida marcho em vão! / Se choro… bebe o pranto a areia
ardente”; “E nem tenho uma sombra de floresta…”. De um lado, encontram-se as
irmãs “belas” e “ditosas”; do outro, ela perdida no deserto ígneo do seu
sofrimento. Por isso, atormentada, África suplica a proteção salvadora da
divindade, que parece, porém, indiferente: «Embalde aos quatro céus chorando
grito: “Abriga-me, Senhor!...”».
Na décima terceira estrofe,
volta-se para o seu “Deus terrível”, questionando-o sobre se não chega já de
dor e os motivos de tanto sofrimento: “E que é que fiz, Senhor? que torvo crime
/ Eu cometi jamais que assim me oprime / Teu gládio vingador?!”. Como estes
versos indiciam, o «eu» deseja conhecer a origem do crime pelo qual padece até
ao presente, isto é, encontrar as razões dos padecimentos africanos. Convém, a
este propósito, fixar o seguinte: o poema contém diversas imagens bíblicas e
referências religiosas, que o «eu» poético usa para criticar não apenas o
sistema esclavagista, mas sobretudo a forma como a Igreja sustentava, através
do seu discurso, o direito de os homens brancos escravizarem os seus congéneres
negros. Esse discurso “justificava o tráfico atlântico pela transferência do
cativo de um mundo africano de barbárie para a civilização cristã
brasileira” (MAESTRI). Ora, um mundo civilizado jamais promoveria a escravidão
do seu semelhante; ao fazê-lo, a Europa constituía um exemplo de barbarismo.
Por outro lado, acusa Deus de ser alguém terrível e cheio de sentimentos de
vingança e rancor, ligados à presença de Cam em África, cuja história está
narrada no Génesis, livro que também dá conta da jornada épica do povo
hebreu, o qual conheceu a escravidão no Egito até ser libertado por Moisés.
Esse mesmo povo e o seu sofrimento no cativeiro seriam vingados por Javé.
Embora em nenhum passo o referido texto dê a entender que Cam e os seus
descendentes se exilaram em África, o uso do nome «vingança» no poema parece
indiciar a referência a esse povo.
A décima quarta estrofe
parece fornecer o motivo, a culpa original de África, após o dilúvio: o
matrimónio entre duas culturas – “Cam!... Serás meu esposo bem amado… / Serei
tua Eloá…”. Cam é o filho mais novo de Noé, que foi salvo do dilúvio, juntamente
com os seus dois irmãos (Sem e Jafé), na arca que Deus mandara construir ao
pai. Quando o fenómeno bíblico cessou, Noé plantou uma vinha, colheu as uvas
nela produzidas, embriagou-se com o vinho feito e adormeceu, nu, na sua cabana.
De acordo com o relato bíblico, Cam surpreendeu o pai embriagado, desacordado e
nu, e, em vez de o cobrir, foi contar aos irmãos, que, andando de costas, o
taparam sem ver a nudez paterna. Quando acordou, Noé amaldiçoou Canaã, um dos
filhos de Cam, referindo-se-lhe como “servo dos servos”: “Maldito seja Canaã;
servo dos servos será de seus irmãos”. Segundo alguns estudiosos, ao proferir
tais palavras, Noé estaria a profetizar que um dos irmãos de Canaã iria herdar
a terra dos cananeus (os habitantes da antiga terra de Canaã, situada no Médio
Oriente e que correspondia sensivelmente ao atual território de Israel),
enquanto outros sustentam que Cam poderá ter mantido relações incestuosas com a
mulher do seu pai, pelo que Canaã teria sido amaldiçoado por ser o produto dessa
união ilícita. Esta maldição terá sido aproveitada por várias religiões
monoteístas para justificar o racismo e a escravidão de negros africanos, que
acreditavam ser descendentes de Cam. No Brasil, foi usada para fundamentar a
escravização dos índios: “Não há lei divina nem humana que proíba a possessão
de escravos […] [e os índios brasileiros] são da descendência da maldição de
Cam” (João de Sousa Ferreira, missionário). Por outro lado, a partir do século
XVIII, diversos autores europeus começaram a defender que, etimologicamente, a
palavra “Cam” significaria «queimado» ou «escurecido», tese que é cabalmente
desmentida pelo estudo de línguas antigas. Na versão europeia, como Cam e o seu
filho passaram a habitar a África, o homem negro estava fadado à escravidão.
Esse matrimónio entre África e Cam é o cruzamento de culturas e etnias que
ocorreu ao longo da História desde os remotos tempos bíblicos, o que parece
apontar para o pecado original. Seja como for, graças a essa “mancha original”
que envolve Cam e Eloá (do hebraico, significa “Deus”), as gerações africanas
sofrem o «anátema cruel» ao longo dos séculos. A partir daí, os africanos
perderam-se nos valores do «judeu maldito» e foram arruinados e destruídos
pelas «garras» da Europa (décima quinta e décima sexta estrofes).
Dito isto, o perdão reclamado por África é, portanto, pelo seu crime de ter
recebido um viajante “Negro, sombrio, pálido, arquejante” (vv. 79-80), isto é,
a figura amaldiçoada de Cam. A sua descrição como homem negro não possui
qualquer fundamento bíblico, pelo que o mais provável é que Castro Alves o
tenha caracterizado dessa forma para mostrar Cam era um ser etnicamente
semelhante àqueles que o expulsaram, ideia que indicia que a cor da pele, a
razão apontada para justificar o direito de um homem escravizar outro, deixa de
existir. Assim, o poeta procurou mostrar que essa ideologia, a associação entre
escravos e negros, era uma criação por quem se dedicava a esse tipo de comércio
e tinha, portanto, interesses económicos na situação.
Na décima sexta, o «eu» alude à perseguição a que
Moisés e os hebreus foram sujeitos pelos egípcios aquando da fuga do Egito: “Vi
meu povo seguir – Judeu maldito – / Trilho de perdição”. Na décima sétima,
África mostra o seu ceticismo relativamente ao Cristianismo, pois Cristo
sacrificou-se em vão, já que não houve qualquer redenção da humanidade: a
África e os seus filhos continuam a alimentar, com o suor e o sangue do seu
corpo, as duas «irmãs» dominantes. Cristo foi crucificado e morreu para que os pecados
dos homens fossem apagados, no entanto essa crucificação foi inútil para
África, dado que o seu pecado original não foi lavado pelo sangue de Jesus, pois
continua a sofrer. Mas que pecado foi esse? África recebeu Cam e a sua
descendência, facto que justificaria a sua escravização. Note-se que o facto de
Jesus Cristo ter sido escondido no continente africano e passar a habitá-lo não
o tornou berço da cultura mais elevada (também Belém de Judá, onde Jesus
nasceu, era considerada, antes da construção do Canal do Suez, parte de
África). Jesus, que passou despercebido entre os egípcios por ter um tom de
pele semelhante, depois de morto foi embranquecido pelos europeus para assim
propagar a ideologia branca. “No poema a voz d’África diz que o «sangue não lavou
a mancha original». Se se considera a mancha original a tal mentira
eurocêntrica que, depois de dar interpretação para o racismo, também mentiu ao
esconder que enaltecia um negro como seu salvador, é a ancestralidade africana
que fala; se se considera a mancha original o corpo negro de Cristo que através
da morte livrou o homem negro da escravidão, quem fala pode ter pele negra, mas
usa a mesma máscara branca que fez com que Cristo se tornasse branco.” Além
disso, o sujeito poético apresenta o continente africano como uma fazenda onde
se criam animais para o trabalho: “Meus filhos – alimária do universo, / Eu –
pasto universal…” (vv. 101-102).
A penúltima estrofe introduz a terceira irmã, a
América «traidora», que se transformou em ave de rapina (“Condor que
transformara-se em abutre, / Ave da escravidão, / Ela juntou-se às mais…”),
subjugando África no processo de escravidão. De facto, a América, tida como o
símbolo da liberdade, e o Brasil, que, nas margens do rio Ipiranga, proclamara
o fim da sua submissão a Portugal, são retratados não como portadores dessa
promessa de liberdade, mas como um abutre que se alimenta do sangue africano,
do seu suor, da sua existência, como o demonstrava a existência de inúmeros
escravos nestes territórios, distribuídos pelas plantações e pelos afazeres
domésticos. Alude-se depois a outro episódio bíblico, o de José do Egito, que
foi vendido pelos próprios irmãos, comparando o destino da personagem bíblica à
sina de África ver os filhos vendidos pela irmã malvada
Na última estrofe, a África
suplica por redenção pelo seu crime original: “Basta, Senhor!”, projetando o
seu grito no infinito.
Em suma, o poema configura uma alegoria
do destino trágico do ser africano, visto através da própria África enquanto
continente. Assim, é esta que narra as suas desgraças, lamenta o seu destino e
implora a misericórdia divina. Além disso, os africanos, metonimicamente,
apresentados todos como uma nação, queixam-se a Deus pela sua desventura, pela
tristeza de ver os seus conterrâneos arrancados do solo pátrio para serem
escravizados. Mais do que isso, o poema sugere a ideia da condenação eterna,
isto é, a personagem África observa que o seu destino será sempre a exploração,
“sem lugar ao sol”. Fica a ideia de desejo de liberdade e autonomia.
Castro Alves impõe-se como o cantor
do negro escravo. Ele assume uma postura de indignação face à escravatura, o
que o leva a cantar o escravo. Esta indignação está presente na imagem de
grandeza, nas antíteses, símiles, comparações. Tudo nele é grande e infinito. A
sua poesia abolicionista caracteriza-se por essa eloquência e grandiosidade. Em
Castro Alves, nota-se um certo exagero na escrita e na forma: uso inconsciente
de imagens, vertigem oral, abundância de adjetivos, o que contrasta com a
contenção de Gonçalves Dias.
O escravo é aqui apresentado como um
drama amplo e abstrato, ao contrário da individualização de A Cachoeira.
É como se o negro tivesse em si o próprio destino humano. Tudo isto mostra o
destino como um elemento fundamental no Romantismo, sendo a função do poeta
cantá-lo. A sua visão do negro acaba sempre por ser idealizada: ele cobre o
negro com um manto redentor; é um herói integralmente humano, que sofre e ama. Claro
que o processo de defesa do negro aparece numa altura em que ele era a
principal fonte de mão de obra, o que justifica a resistência do público e dele
mesmo, o que o leva a idealizar os traços físicos e morais do negro.
Quanto à natureza, ela surge como personagem central e necessária, não só como cenário, mas também como cenário onde se integram as personagens.