Português: Castro Alves
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quarta-feira, 26 de julho de 2023

Análise do poema "Laço de fita", de Castro Alves


    Este poema foi escrito em 1868 e faz parte da obra Espumas Flutuantes, publicada em 1870, a única em vida do poeta, que faleceu aos 24 anos. Além de cantar o amor nos seus textos, Castro Alves também o viveu. De facto, em meados de 1866, conheceu, apaixonou-se e tornou-se amante de Eugénia Câmara, a “dama negra”, uma atriz portuguesa. Embora não seja taxativo que o poeta tenha escrito este poema diretamente motivado por esta paixão, a realidade é que compôs várias composições lírico-amorosas movido por essa paixão.
    O poema descreve a paixão do sujeito poético por uma jovem mulher que participa num baile e usa como adereço um laço de fita no cabelo. Há que ter presente que a dança é um motivo que acompanha a humanidade deste a Pré-História, por exemplo em rituais religiosos que contemplam elementos dançantes. Além disso, é importante observar que diversos animais, nomeadamente aves, executam movimentos coreográficos relacionados com o acasalamento. Na chamada cultura ocidental, desde os poemas homéricos (a Ilíada e a Odisseia), passando pela própria Bíblia (onde encontramos a performance de Salomé para convencer Herodes a executar João Baptista) até à contemporaneidade, a dança tem acompanhado o ser humano. No caso da literatura, foi a partir do século XIX, através de artistas como Mallarmé, que se deu uma aproximação entre a literatura, nomeadamente a poesia, e a dança.
    O título do poema constitui uma sinédoque que representa o corpo da mulher amada, o qual será envolvido pelo sujeito poético numa valsa ansiosa e palpitante. Observe-se, a este propósito, a forma como o «eu» materializa progressivamente o «abraço» do par enamorado, como se pode comprovar por palavras / expressões como «prendi», «qu’enlaça», «enroscava-se», «prisioneiro», «cadeias», «elos», que estão dispostos no poema de forma a construir a imagem poética do abraço, em função do qual ele se descobre definitivamente “acorrentado” à amada.
    Por outro lado, o “laço de fita” é também a imagem projetada do casal enlaçado no momento da dança: o par amoroso “enrosca-se” suavemente como um laço de fita. Além disso, este é ainda uma espécie de serpente que «enlaça» e «enrosca», que encanta todos os que contemplam a sua beleza envolvente e sedutora, serpente essa que simboliza a descoberta e a revelação do amor e do seu fruto proibido. A tudo isto associa-se a dança como elemento de sedução e desejo que toma parte no ritual de corte e conquista. Basta recordar as singelas cantigas de amigo bailias em que a donzela convidava as amigas para bailar, sabendo que os amigos lá estariam para as ver.
    Na primeira estrofe, temos todos os aspetos importantes, que se vão repetir nas seguintes. Repete-se o motivo e explora-se o refrão, que é uma característica popular. É um poema universal, em que se desenvolve um motivo: o laço de fita como elemento simbólico e sensual. A fita é simbólica e é o elemento mais importantes do poema. A sua construção lembra uma cantiga com refrão e é dotada de uma enorme simplicidade.
    O poema abre com uma interrogação e uma apóstrofe dirigida à mulher que nos mostra que deve ser mais nova do que o «eu»: “Não sabes, criança?” De seguida, confessa-lhe a sua paixão por ela: “’Stou louco de amores”. O objeto que despertou esse sentimento é um adereço usado pela mulher: um laço de fita que ela usa no cabelo durante um baile / uma festa, um objeto metonímico (sinédoque), isto é, designa a parte da “formosa Pepita” que desperta a sua líbido. A referência ao objeto está presente em todas as estrofes, com ligeiras diferenças, mostrando a forma como o sujeito poético está envolvido pelo laço, no qual se esconde um fetiche, um desejo. Atente-se na repetição da locução prepositiva «no» no terceiro verso (“Mas onde? No templo, no espaço, nas névoas?”), que enfatiza a paixão e o modo como o «eu» a «vê» em múltiplos lugares.
    O laço de fita constitui, assim, uma metáfora que se metamorfoseia noutras: é um laço, pois prende, une. Essas metáforas acumulam-se a partir da segunda estrofe, na qual elementos da natureza são associados aos cabelos de Pepita e à sua capacidade de sedução. Assim, a associação das madeixas à “selva sombria” mostra como a mulher tinha cabelos pretos, ondulados e em abundância. Por seu turno, a imagem bíblica da serpente aponta para a ideia do pecado, de acordo com a tradição judaico-cristã: o Diabo disfarçou-se de serpente para convencer Eva a desobedecer a Deus e a comer a maçã. No caso deste poema, é o laço de fita e a forma como está preso aos cabelos que lembra a serpente, sendo o pecado o homem mais velho desejar uma jovem (menina?). Por outro lado, o nome da mulher – Pepita – constitui ao mesmo tempo um apelido e uma metáfora, contribuindo para a construção de um retrato feminino que se distancia do arquétipo romântico da figura feminina inatingível e intocável. No que diz respeito ao cabelo, estes simbolizam a sensualidade feminina. De facto, o seu agitar, o abanar de um lado para o outro, ou o desfazer do penteado, representam a sensualidade feminina. Em quantos filmes já não deparámos com o gesto da mulher sacudir os seus cabelos, com o auxílio das mãos ou não, para chamar a atenção e/ou seduzir o elemento masculino? Neste caso concreto, esta menina-mulher seduz o sujeito poético e torna-o cativo dos seus encantos.
    Na terceira e na quarta estrofes, o «eu» lírico revela que está numa festa (“Meu ser, que voava nas luzes da festa”), na qual viu subitamente a mulher e o seu laço de fita e desta forma se prendem em ambos, ele que era um pássaro livre. Esta metáfora do pássaro, que representa o «eu», mostra como, ao vê-los, deixou de ser livre (“voava”) e foi seduzido pelo adorno do cabelo. Ele tentou libertar-se dessa «prisão» (“Debalde minh’alma se embate, irrita…”), soltar-se do laço de fita, luta (“se embate”), mas é em vão, pois ele não consegue desprender-se do laço, isto é, da sedução e da paixão por Pepita: “O braço, que rompe cadeias de ferro, / Não quebra teus elos, ó laço de fita.” Atente-se no recurso à hipérbole para evidenciar a força da sedução e da paixão em que o sujeito poético se enleou: os braços que quebram cadeias de ferro são incapazes de quebrar os elos com um singelo laço de fita.
    Na quinta estrofe, o sujeito poético, de forma exaltada / entusiástica (“Meu Deus!”), reflete sobre os atributos dos astros, falenas, anjos e, como é evidente, da sua Pepita, que usa um laço de fita que o faz morrer de amor por ela. Esta referência é construído de forma contrastante, evidenciada pelo uso da conjunção coordenativa adversativa no último verso da estrofe: “Mas tu… tens por asas um laço de fita.” Nenhum ornamento, por mais belo que seja, supera o encanto daquele laço de fita.
    A sexta estrofe remete para um momento anterior recente em que a amada dançava a valsa (a forma verbal «voavas» sugere a leveza com que dançava, como se voasse, como se deslizasse no solo, sem tocar com os pés no chão). Com quem dançava ela? Com o «eu» poético ou com outro homem, enquanto aquele apenas observava? A interrogação “Por que é que tremeste?” parece sugerir que é o sujeito lírico quem efetivamente baila com a mulher. Além disso, indicia que não era apenas ele que se deixara seduzir pela mulher, pois a forma verbal «tremeste» mostra que também ela foi seduzida e o desejava, por isso tremeu.
    Por outro lado, esta estrofe confirma que a figura feminina retratada se afasta bastante do já referido modelo romântico da mulher intocável e inatingível, uma espécie de virgem pudica, pois esta tanto seduz como igualmente sente desejo. Pepita não consegue esconder que também deseja o sujeito lírico, uma atitude muito pouco comum na época, incluindo no contexto literário. A atração é mútua.
    A sétima estrofe mostra o entusiasmo e a excitação do «eu», que antevê o cenário em que os dois se encontrarão quando o baile e a festa terminarem. Ele imagina-a a despir-se (“despindo os adornos”) na alcova, isto é, no quarto, desfazendo o laço de fita e o penteado à luz da vela (“N’alcova onde a vela ociosa… crepita, / Talvez da cadeia libertes as tranças”), que ciosamente crepita. Porém, nos dois últimos versos, introduzidos por nova conjunção coordenativa adversativa, através da antítese, o sujeito poético reforça a sua condição de cativo do laço de fita: “Mas eu… fico preso / No laço de fita.”
    A última estrofe esclarece que nem mesmo a morte, anunciada através da perífrase e do eufemismo, apagará a sua atração pelo laço de fita, ou seja, confinar o que sente pela mulher. Além disso, faz-lhe um pedido: ele deseja que, quando morrer, lhe retirem os seus títulos, os seus «louros» (metáfora que traduz a ideia de um feito, uma vitória, a conclusão com sucesso de algo, e da respetiva recompensa) e o honrem com o laço de fita da mulher amada: “E dá-me por c’roa… / Teu laço de fita.”. Recordemos que os heróis da Antiguidade eram reconhecidos através da colocação na cabeça de uma coroa de louros ou de ramos de oliveira.
    À semelhança do que sucede com outras composições de Castro Alves, este poema faz uso de uma linguagem carregada de sensualidade e erotismo, projetada num laço de fita. O amor, em Castro Alves, ao contrário do que sucede com a primeira geração romântica brasileira, não é abordado como um sentimento platónico, puro e idealizado, mas como sinónimo de paixão, de sensualidade e erotismo – o que está em causa é o desejo carnal, a líbido. As mulheres que encontramos nos seus poemas são sensuais, insinuantes, sedutoras, bem longe da idealização de outros poetas.
    Em suma, neste poema, o sujeito poético descreve a sua paixão por uma mulher jovem que encontrou num baile e que usava um adereço que granjeou a sua atenção: um laço de fita. A partir daí, essa figura feminina, uma menina-mulher sensual, vai envolvendo e seduzindo o «eu» por meio desse adereço, que se torna uma espécie de fetiche para ele.
    Por outro lado, habitualmente, no campo do jogo da sedução, é o homem que seduz a mulher, contudo, neste poema de Castro Alves, há uma inversão de papéis, pois é a jovem que seduz um homem mais velho, que se lhe refere como «criança» e regista o processo de encantamento e de sensualidade vivido. Os cabelos são um elemento muito importante a ter em conta, desde logo porque é neles que se encontra o objeto de que se enamora. Neste contexto, é importante ter presente que, na época da elaboração do poema, as mulheres o usavam preso e apenas o soltavam na presença do marido.
    Quem seria esta Pepita? Afrânio Peixoto considera que seria, provavelmente, Maria Carolina de Almeida Torres, uma linda e travessa menina, enteada de uma irmã de Alvares de Azevedo, ou Sinhá Lopes dos Anjos, filha de um médico baiano, de São Paulo, correspondente e amigo de Castro Alves. Mas poderão ser outras: Eugénia, Leonídia, Agnese, Ester, Brasília Vieira, Idalina, Sinhazinha Lopes, Tereza, Joana, Lúcia ou Dalila.

terça-feira, 25 de julho de 2023

Análise do poema "O navio negreiro", de Castro Alves


    “O navio negreiro” foi publicado após a promulgação da lei Euzébio Queirós, datada de 1850, que proibia o comércio de escravos, e a legislação de 1854 que impedia o desembarque de navios negreiros nas costas brasileiras. Está dividido em seis secções, de extensão diversa, compostas sobretudo por sextilhas e versos decassílabos, abordando temáticas ao gosto romântico, como, por exemplo, a liberdade do ser humano, ou outras, como a visão sensorial e emotiva da Natureza. Por outro lado, essas seis secções partem do ambiente exterior e envolvente para o interior do navio negreiro, culminando com uma crítica acutilante à nação que permite realidades tão degradantes e infames como a escravidão.
    A primeira secção abre com a localização especial e a descrição do cenário através da anáfora “Stamos em pleno mar”, que inicia as quatro quadras iniciais. Além do mar, é referido outro espaço – o céu – e os dois confundem-se (“Doudo no espaço / Brinca o luar […] / E as vagas após ele correm… causam”), num movimento agitado, indiciado pelas formas verbais no presente do indicativo «correm», «causam» e «saltam», bem como o adjetivo «inquieta». Além destes recursos, encontramos também, logo a partir da primeira estrofe, comparações bem expressivas (“Como turba de infantes inquieta”, “como espumas de ouro”) e a animalização de elementos da Natureza (“Brinca o luar – dourada borboleta”, “Nesta seara os corcéis o pó levantam”).
    A referida confusão do mar e do céu fica bem clara: “Dois infinitos / Ali se estreitam num abraço insano”), concretizando-se “num abraço insano” que recupera a ideia de loucura anteriormente já sugerida pelo adjetivo «doudo» (verso 1). Essa confusão faz-se tanto de características físicas (“azuis, dourados”) percecionadas pelo sentido da visão como psicológicas (“plácidos, sublimes”), para posteriormente se transformar numa unidade: “Qual dos dous é o céu? Qual o oceano?” Mar e céu não se distinguem.
    De seguida, o «eu» poético foca-se na embarcação, nomeando-o (“veleiro brigue”) e identificando alguns dos seus elementos: “abrindo as velas”, “vibrações marinhas”, etc. A comparação entre o barco e as andorinhas confirma a forte conexão entre o mar e o céu, comungando ambos do mesmo movimento.
    A quinta estrofe é marcada por várias interrogações, que suscitam dúvidas para as quais parece não haver resposta: “Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?” (note-se a associação entre a indefinição, o desconhecimento do rumo do barco e a imensidão do oceano que atravessa). De seguida, o mar adota a forma de um deserto (“neste saara”) que é atravessado metaforicamente pelas ondas (“os corcéis o pó levantam”) que “não deixam traço”). O sujeito poético, situado num plano superior contempla esse cenário (“Embaixo – o mar em cima – o firmamento”), sentindo-se feliz (“Bem feliz quem”) por poder usufruir daquela paisagem sublime (“Sentir deste painel a majestade”) e sem limites (“E no mar e no céu – a imensidade!”). As emoções do «eu» – de felicidade, prazer, êxtase – baseiam-se no que os diferentes sentidos captam: o tato (“que doce harmonia traz-me a brisa!”) e a audição (“Que música suave ao longe soa!”; “como é sublime um canto ardente!”), além da visão. Dirigindo-se a Deus (“Meu Deus!”), ele parece antever desde já o canto dos náufragos num mar imenso e que não se detém (“Pelas vagas sem fim boiando à toa!”).
    A atenção do sujeito poético centra-se, então, no veleiro. Começa por se dirigir aos “Homens do mar!” para, de seguida, os caracterizar psicologicamente (“rudes marinheiros”) e anunciar a diversidade de nacionalidades a que pertencem (“dos quatro mundos!”). Apesar disso, há um traço comum que os une: possuem um passado semelhante (“Crianças que a procela acalentara”) e têm o mar como destino (“No berço desses pélagos profundos!”).
    A estrofe seguinte abre com um apelo, traduzido pela repetição do verbo «esperar» no imperativo: “Esperai! Esperai!”. O «eu» marca claramente a sua presença no texto através do uso da primeira pessoa do pronome pessoal forma de sujeito (“deixai que eu beba…”), nutrindo-se da sua criação (“Esta selvagem, livre poesia”), caracterizada por meio de uma hipálage que a apresenta como um canto acompanhado pela música do mar (“Orquestra – é o mar que ruge pela proa / E o vento, que nas cordas assobia”).
    De seguida, o «eu» poético procura encontrar uma justificação através da anáfora: “Por que foges assim…? / Por que foges do…?”). Segue-se-lhe a expressão do desejo de o acompanhar (“Oh! quem me dera acompanhar-te”), estabelecendo uma comparação entre “a esteira” e o “doudo cometa”, numa clara retoma da relação entre o mar e o céu que foi iniciada no começo do poema e está sempre associada à ideia de loucura, novamente veiculada pelo adjetivo «doudo».
    A última quadra da primeira secção introduz um novo elemento – o albatroz –, designado como “águia do oceano” e a quem o sujeito poético faz um apelo: “dá-me estas asas”. Neste ponto, convém ter presente a influência que a literatura francesa exercem sobre os autores brasileiros pós-independência. Assim sendo, é possível associar esta referência ao albatroz ao poema “L’ Albatros”, da autoria de Charles Baudelaire, e identificar várias semelhanças: o cenário semelhante, a presença do mar, a narração de uma cena ocorrida em alto mar, os mesmos atores – os marinheiros, a identificação entre o «eu» e o albatroz, a superioridade espacial e espiritual do poeta relativamente ao homem comum, associada a um domínio aéreo e celeste. Por outro lado, enquanto símbolo da poesia, o albatroz adquire um caráter demoníaco quando é posto em paralelo com o Leviathan, o monstro bíblico que vive no mar e aí permanece se não for acordado. Capaz de devorar o Sol, Leviathan é a entidade que, por extensão, devora do divino e, assim, possibilita a imposição do mal. Tal como sucede no poema de Baudelaire, o albatroz é o companheiro do poeta e com ele desempenha a mesma tarefa de transmissor de uma mensagem. Além disso, enquanto símbolo da liberdade, esta ave estabelece, através da associação com Leviathan, uma ligação estreita com o espaço marítimo, dominando-o.
    Na segunda secção, descritiva como a primeira, o sujeito poético contra a sua atenção nos marinheiros, os quais trocaram o seu lar em terra por um novo no mar, cujo ritmo é poesia (“Ama a cadência do verso / Que lhe ensina o velho mar!”) e merece ser cantado (“Cantai!”).Apesar de o mar ser um espaço repleto de perigos e associado à morte, o «eu» incita os marinheiros a não a recearem (“que a morte é divina!”), enquanto o barco desliza e se afasta envolvido pelo sentimento da saudade (“Resvala o brigue à bolina / Como golfinho veloz. / […] Saudosa bandeira acena / As vagas que deixa após.”).
    De seguida, o sujeito lírico elogia-os por serem de várias nacionalidades e se submeterem ao desafio de enfrentarem as viagens marítimas por outras terras. A cada nacionalidade é associado um referente diferente: à espanhola, “as cantilenas / Requebradas de langor”; à italiana, a cultura lírica clássica (“Relembra os versos de Tasso”) ou a história de Romeu e Julieta (“Canta Veneza dormente / – Terra de amor e traição”); à inglesa, o espaço insular e o conquistador Nelson; à grega, a cultura clássica, pela referência a Ulisses e a Homero (“Do mar que Ulisses cortou, / […] Vão cantando em noite clara / Versos que Homero gemeu…”). Os únicos marinheiros que não possuem qualquer referente são os de origem francesa, aludindo o sujeito poético, de forma genérica, a um passado glorioso (“Canta os louros do passado / E os loureiros do porvir!”).
    A última estrofe desta secção apresenta-nos três versos que englobam todos os marinheiros (“Nautas de todas as plagas”), formando um conjunto que aprecia a viagem e que encontra nela uma certa melodia celeste (“Vós sabeis achar nas vagas / As melodias do céu!...”).
    A terceira secção é a mais breve, pois é constituída por uma única sextilha, e traça-nos uma visão genérica da situação vivida no interior do navio, caracterizada por um ambiente de horror e indignação (“Que quadro de amarguras! / E canto funeral!... Que tétricas figuras!... / Que cena infame e vil… Meu Deus! Meu Deus! Que horror!”), traduzido pelas exclamações, pelas reticências e pelas repetições. O vocabulário enquadra-se no campo semântico do terrível: “amarguras”, “funeral”, “tétricas”, “infame e vil”, “horror”. Perante este cenário, novamente observado a partir de um plano superior, o sujeito poético mostra-se, desta vez, chocado com o que vê, não escondendo a sua revolta e o seu repúdio.
    A quarta secção é bem mais extensa: seis sextilhas. Nelas, descrevem-se os horrores que acontecem no navio. O primeiro verso remete para a figura de Dante: “Era um sonho dantesco”. Tal significa que a embarcação é a encarnação do Inferno descrito pelo escritor italiano, com a diferença de que a ele vão parar não os mortos ,mas os vivos. A presença da cor vermelha remete para o «sangue», que é a consequência dos violentos castigos sofridos pelos marinheiros (“Tinir de ferros… Estalar de açoite…”), uma mancha negra que se confunde com a noite (“Legiões de homens negros como a noite”) e que causa horror mesmo que numa atividade lúdica (“horrendo a dançar”).
    A estrofe seguinte traz-nos uma figura feminina que amamenta os seus filhos não com leite, mas com sangue, num cenário horrendo: “cujas bocas pretas / Rega o sangue das mães”. Outras mulheres mais jovens (“Outras moças, mas nuas e espantadas”) movimentam-se no meio dos cadáveres (“No turbilhão dos espectros arrastados”), ansiosas e magoadas, mas em vão (“Em ânsia e mágoa vãs!”).
    As imagens paradoxais da sextilha posterior mostram-nos que o cenário descrito não gerou qualquer pranto, antes se ouve uma “orquestra irónica, estridente” e ocorre uma dança macabra, da qual emerge um ser macabro, uma serpente, que simboliza o Mal: “E da ronda fantástica a serpente / Faz doudas espirais”. A vocalização do sofrimento (“Ouvem-se gritos…”) incita ao castigo e não à piedade (“o chicote estala / E voam mais e mais…”).
    Nova imagem mostra-nos que os escravos formam uma cadeia de agrilhoados (“Presos nos elos de uma só cadeia”) que, paradoxalmente (“E chora e dança ali!”), estão unidos por diferentes sinais de loucura, em resultado da brutalidade de que são vítimas: “Um de raiva delira, outro enlouquece, / Outro, que martírios embrutece, / Cantando, geme e ri!”. O capitão do navio é, simultaneamente, o carrasco: “o capitão manda a manobra, / […] «Vibrai rijo o chicote, marinheiros! / Fazei-os mais dançar!...”.
    Os três versos iniciais da terceira estrofe repetem-se na última sextilha desta secção: o Inferno constitui um pesadelo em que já não são corpos que se anunciam, mas «sombras». Num tumulto de ruídos (“Gritos, ais, maldições, preces ressoam!”), sobressai a figura de Satanás, como se Deus estivesse surdo às preces dos escravos.
    Na quinta secção, o sujeito poético interpela Deus para que este lhe dê uma justificação para tanto sofrimento que observa (“Dizei-me vós, Senhor Deus! / Se é loucura… se é verdade / Tanto horror perante os céus?!”), o qual se apresenta como uma mancha indelével (“Ó mar, porque não apagas / […] / De teu manto este borrão?...”) contra a qual nenhum elemento consegue atuar: “Astros! noites! tempestades! / Rolai das imensidades! / Varrei os mares, tufão!”). Perante aquele quadro e, sobretudo, a atitude de Deus, que, em vez de se compadecer de tamanho sofrimento e horror, ri (“Que não encontram em vós / Mais que o rir calmo da turba”), o sujeito poético fica indignado e furioso. Ao verificar que o seu apelo não é escutado e atendido, recorre à Musa, que funciona como alegoria do poema de denúncia: “Dize-o tu, severa Musa, / Musa libérrima, audaz!...”).
    Na estrofe seguinte, o «eu» poético atribui uma identidade aos supliciados: primeiro às figuras masculinas (“São os filhos do deserto / […] / A tribo dos homens nus”), depois às femininas (“São mulheres desgraçadas”). Os homens viveram um passado em que eram “simples, fortes, bravos” e hoje veem-se reduzidos a “míseros escravos”, reduzidos a nada (“Sem luz, sem ar, sem razão…”). Por seu turno, as mulheres são associadas a Agar, personagem bíblica que emprestou o corpo a Sara, esposa de Abraão, para lhe assegurar a descendência através do filho Ismael, e que foi vítima da ingratidão de Sara e da cobardia de Abraão, conservando ambos um papel positivo e remetendo para Deus a responsabilidade de banir Agar. Esta representa, pois, a mãe martirizada (“Como Agar sofrendo tanto, / Que nem o leite de pranto / Têm que dar para Ismael.”), sofredora e incapaz de amamentar os filhos. Todas estas personagens foram retiradas do seu habitat natural (“Lá nas areias infindas, / Das palmeiras no país”), do qual se têm de despedir (“Adeus, ó choça do monte, / Adeus, palmeiras da fonte!... / Adeus, amores, adeus…”). Segue-se a travessia do deserto (“Depois, o areal extenso / Depois, o oceano de pó”), que leva à desistência (“Ai! quanto infeliz que cede, / E cai p’ra não mais s’erguer!...”) e à morte (“Mas o chacal sobre a areia / Acha um corpo que roer”). Na sequência, é apresentado o contraste entre um passado de liberdade (“Ontem a Serra Leoa / […] / O sono dormido à toa / Sob as tendas d’amplidão”) e um espaço ilimitado e um presente com um espaço confinado, infecto e imundo – o porão (“o porão negro, fundo / Infecto, apertado, imundo”) –, onde ronda a morte (“Pelo arranco de um finado, / E o baque de um corpo ao mar…”).
    A estrofe seguinte retoma a oposição entre os dois tempos, um passado de liberdade e um presente de maldade, escravidão e sofrimento (“Ontem plena liberdade / Hoje… cúmulo de maldade / Nem são livres p’ra morrer”), compondo um cenário que suscita o riso escarninho de Satanás (“E assim zombando da morte / Dança a lúgubre coorte”). Esta secção fecha de forma circular com a repetição liberal da primeira sextilha.
    A sexta e última secção do poema, composta por três oitavas, compreende uma feroz crítica por parte do sujeito poético dirigida à sua pátria por manter a prática de atos desumanos como a escravatura: “Existe um povo que a bandeira empresta / P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...”. Tudo isto deixa-o ainda mais indignado: “E deixa-a transformar-se nessa festa / Em manto impuro de bacante fria!” A interpelação dirigida a Deus traduz a incompreensão pelo facto de a sua pátria – representada pela bandeira – se manter indiferente a tanto sofrimento, mesmo que apenas traduzida através da poesia.
    Na oitava seguinte, o sujeito poético dirige-se à bandeira (“Auriverde pendão de minha terra”) e revolta-se por esta servir dois propósitos distintos: ela foi o símbolo de um povo vitorioso, cheio de esperança e livre (“Estandarte que a luz do sol encerra / E as promessas divinas da esperança… / Tu que, da liberdade após a guerra, / Foste hasteado dos heróis na lança”), porém atualmente é desprezível, pois permite a escravatura e a morte (“Antes te houvessem morto na batalha / Que servires a um povo de mortalha!…”). Atente-se no recurso ao adjetivo «auriverde», que aponta para as cores da bandeira brasileira (verde e amarelo),símbolo da identidade nacional e valorizador da riqueza natural do ouro e das florestas do Brasil.
    O poema termina com o sujeito poético a manifestar a sua vergonha pela situação que descreveu (“Extingue nesta hora o brigue imundo / O trilho que Colombo abriu nas vagas”. A descoberta de Colombo deixou nos mares uma ferida (“Da etérea plaga”); se a descoberta do Novo Mundo só acarretou coisas vis, era preferível que as navegações nunca tivesse ocorrido.
    Por outro lado, a composição apresenta um subtítulo: “Tragédia no mar”. O nome «tragédia» remete para o modo dramático e, num sentido mais geral, reporta-se a uma situação caracterizada pela ocorrência de uma desgraça, enquanto a expressão “no mar” remete para uma localização espacial, um local muito vasto, isolado e solitário, traços que acentuam a tragicidade da situação.
    As personagens do texto formam dois grupos conflituantes: o dos dominados (os escravos) e o dos dominadores, representado pelo capitão. Eles, mesmo sem comunicarem entre si, configuram um quadro particularmente trágico que choca quem a ele assiste. Sucede que a situação descrita no poema está presente noutra forma de arte: a pintura “Navio Negreiro”, da autoria de Johann Moritz, um pintor alemão que viajou pelo Brasil entre 1822 e 1825, pintando os povos e os seus costumes, quando integrou a missão do barão Langsdorff. Desde logo, são óbvias as semelhanças entre os títulos das duas obras de arte. Além disso, no quadro encontramos um cenário que é constituído por um amontoado de negros, homens, mulheres e crianças. Os corpos nus formam uma mancha negra que se junta à ausência de luz nesse espaço algo cavernoso, interior e fundo. Confinados a esse espaço exíguo – o porão, no qual se veem prateleiras onde tem de se acomodar aquele amontoado de escravos –, isolados no meio de um mar sem retorno, estas figuras estão agrilhoadas com correntes e algemas, símbolos de domínio, ordem e poder. Contrastando com a multidão de escravos seminus, três homens brancos, envergando roupas limpas e bem tratadas, transportam um escravo morto que é necessário retirar do navio. Deste modo, tanto no poema como na pintura, assistimos a um drama da tortura que a figura bíblica de Agar representa. Perante esta mãe sofredora, os cristãos não se compadecem minimamente. O conflito entre duas forças desiguais é claro e o Mal não tem solução: à força em número de escravos, completamente desmaterializada, opõe-se a força política encarnada pelo capitão (“No entanto o capitão manda a manobra, / E após, fitando o céu que se desdobra / Tão puro sobre o mar”), que desvia o olhar em vez de se apiedar, como faz o «eu» poético. A vida dos escravos é regida pela sociedade dos brancos; o escravo perde a sua identidade e a sua existência pertence ao seu senhor.

terça-feira, 4 de julho de 2023

Análise do poema "Antítese", de Castro Alves


    O título do poema aponta para um contraste presente no texto entre o homem branco (livre) e o negro (negro e escravo).
    Partindo do título, podemos dividir o poema em duas partes:
        - uma parte de festa: riqueza, luz e som;
        - a descrição do ambiente em que se vai integrar a personagem.
    De um lado, temos a festa, que é cor de vida, mas também falsidade e hipocrisia; do outro lado, está o velho desamparado.

    O poema abre com a descrição de um baile sumptuoso, num ambiente luxuoso, cheio de luz, requinte, cor e vida, onde se destacam os enfeites (“serpentinas”), o vestuário dos presentes (“sedas e querubins”), a orquestra, a riqueza e o luxo. A alegria que se vive é tão grande que os pares dançando parecem silfos numa valsa mágica: “como silfos / na valsa os pares perpassam / sobre as flores, que se enlaçam nos tapetes de coxins”.

    A partir da segunda estrofe começa a desenhar-se a antítese. O poema sai do ambiente de festa para “a névoa da noite, no átrio, na vasta rua”, enquadrando aquele que “como um sudário flutua / nos ombros da solidão”, isto é, aquele que recebeu como prémio o desprezo e uma carta de alforria: o escravo. O espaço que este habita não é o dos salões de festa, mas a praça: “a praça em meio se agita”. Ele é uma espécie de “cão sem dono”, imagem que evidencia a degradação da condição humana, que se acentua nos versos seguintes: “Desprezado na agonia, / Larva da noite sombria, / Mescla de trevas e horror.”

    A penúltima estrofe descreve o ser em questão e a sua situação social: “É ele o escravo maldito, / O velho desamparado / (…) / Tem por leito de agonias / As lájeas do pavimento, / E como único lamento / Passa rugindo o tufão.”

    Na última estrofe, o sujeito poético manifesta a sua solidariedade em favor do escravo: “Chorai, orvalhos da noite, / Soluçai, ventos errantes. / Astros da noite brilhantes / Sede os círios do infeliz!”. Os quatro últimos versos retratam a morte social do escravo (“cadáver insepulto”), que a alforria e a liberdade, embora não assistida, não conseguem ultrapassar.

    O elemento brasileiro (o escravo velho) não está numa posição dominante; o que está em causa é uma ideia romântica: a procura da liberdade, através de um processo muito caro ao Romantismo – a evasão.

segunda-feira, 3 de julho de 2023

Análise do poema "Adormecida", de Castro Alves


                 “Adormecida” é um poema de 1868 de Castro Alves, publicado na obra “Espumas Flutuantes”, datada de 1870. Trata-se de uma composição constituída por sete quadras em versos decassílabos e com rima cruzada nos versos 2 e 4 de cada estrofe, sendo o primeiro e o terceiro brancos ou soltos.

                Este é considerado um dos poemas mais bem conseguidos da poesia romântica de Castro Alves, que descreve a mulher amada pelo sujeito poético adormecida, como é indiciado pelo título do texto. De facto, estamos na presença de uma descrição romântica da cena de uma mulher a dormir. Por outro lado, o título recorda-nos o conto tradicional “A bela adormecida”: quando completasse quinze anos, espetaria o dedo no fuso de uma roca e dormiria durante cem anos, até um príncipe a desencantar com um beijo. O despertar, em ambos os textos, constitui uma metáfora da passagem da adolescência para a idade adulta, para  amaturidade.

                O poema parte de uma epígrafe retirada de Musset, um poeta romântico francês, que se refere aos cabelos, à sensualidade e à cruz, símbolo da religião. Aqui, junta dois elementos: a sensualidade e a religiosidade, que será o assunto do texto. A epígrafe não é sinal de imitação, mas estabelece a ponte para o sonho e para a evasão, associando-se ao título por remeter também para a circunstância de uma jovem adormecida: “Ses longs cheveux épars la couvrent tout entière / La croix de son collier repose dans sa main, / Comme pour témoigner qu’elle a fait sa prière. / Et qu’elle va la faire em s’eveiliant demain.”

                A descrição é feita a partir da memória, pois trata-se de uma recordação do sujeito lírico: “Uma noite eu me lembro…”. Ele recorda a imagem da mulher a dormir numa rede, uma cena prenhe de serenidade, doçura e sensualidade: ela está encostada “molemente”, de roupão “quase aberto”, cabelos soltos e pé descalço. De facto, na primeira quadra, é construída a imagem da mulher amada, associando-a à sensualidade e à languidez suave, ideias sugeridas, por exemplo, pelo advérbio de modo «molemente», pelos adjetivos (“aberto”, “solto”, “descalço”). Por sua vez, as reticências abrem as portas ao onírico e deixam algo em suspense, à imaginação, enquanto elementos como a noite, a rede, o roupão, o cabelo ou o tapete contribuem para a construção do ambiente íntimo da figura feminina, sugerindo claramente a intimidade e a proximidade do «eu» e da amada.

                A segunda quadra centra-se na janela aberta, por onde entra um cheiro agreste, proveniente das silvas da campina, e através da qual se pode ver uma noite “plácida e divina” e “um pedaço de horizonte”. O «eu» evoca o cheiro agreste das silvas e, de seguida, o jasmineiro, cujos galhos entravam pela janela e tocavam na mulher, que dormia sensualmente. Ocorre aqui uma divinização ou espiritualização do momento, quando o «eu» refere que a noite era plácida e divina e, na quarta, se alude a um «quadro celeste», que é desenvolvido nas estrofes seguintes. Enquanto isso, a brisa suave invadia o compartimento, fazendo com que o jasmineiro, que estava em flor, balançasse e tocasse a mulher. Esse instante em que a flor a tocava e ela, ao senti-la, a procurava suavemente, causava sensações eróticas no sujeito poético.

                As duas estrofes seguintes apresentam um “quadro celeste”, doce e sensual: o jasmineiro, personificado, é apresentado num movimento cujos galhos, obviamente também personificados (“galhos encurvados / indiscretos entravam pela sala… / Iam na face trémula beijá-la”), quais braços humanos, balançam, ora se aproximando, ora se afastando da mulher adormecida, constituindo cada aproximação da face feminina uma tentativa de a beijar. O jasmineiro, um ser inanimado, é, de facto, personificado, isto é, são-lhe atribuídas características dos seres animados, de modo a poder executar as ações que o «eu» não pode ou não consegue. Assim, a planta passa a desejar a mulher, sendo que esta o manipula por meio da sedução, ou seja, permanecendo dormindo, sedutora, na rede.

                O que se segue é uma espécie de jogo de sedução, em que o jasmineiro e a mulher brincam como “duas cândidas crianças”: quando a flor da planta beija a figura feminina, esta, mesmo que em sonhos, estremece e, quando tenta devolver o beijo, aquela foge com o balanço do jasmineiro. O sujeito poético coloca-se na posição de observador e contempla esta cena. Por outro lado, ao colocar a natureza e a mulher em contacto físico – e logo através de algo tão profundamente íntimo como um beijo – prossegue a construção da cena de sensualidade. O recurso a formas verbais no pretérito imperfeito (“estremecia”, “serenava”, “beijava”) e a insistência nas reticências criam um clima de erotismo comedido através da interação e troca contínua de carícias entre a mulher e a flor. O jasmineiro age como um amante que, sorrateiramente, acaricia a figura feminina, beija a sua face e depois se afasta quando ela tenta devolver o beijo. Atente-se ainda no facto de a flor, para a biologia, ser o órgão reprodutor das plantas, pelo que se pode entender como metáfora do órgão sexual feminino, constituindo o seu desfloramento a perda da virgindade.

                É curioso observar dois movimentos contrários. Num primeiro momento, o jasmineiro, através dos seus galhos, seduz a mulher, beijando-a (o que deleita o sujeito lírico: “quadro celeste”), contudo, posteriormente ocorre uma inversão de papéis quando ela tenta beijar a planta, que, no entanto, foge. Ou seja, ela não só aceita a sedução, como também a retribui, porém é recusada.

                Por que razão é escolhido o jasmineiro e não uma outra planta ou árvore para contracenar com a mulher? O jasmineiro é um arbusto pequeno, ereto ou trepador com caules longos, o que permite encará-lo como metáfora do órgão sexual masculino. Por outro lado, essa planta também possui propriedades afrodisíacas, o que reforça a ideia da sedução presente no texto.

                A quinta estrofe infantiliza a mulher e coloca-a num plano virginal, ao associá-la a uma criança, enquanto a brisa, que agitava as folhas verdes, fazia ondular os seus cabelos negros entrançados. Vocábulos como «doce», «brincavam», «cândidas» e «crianças» conferem à cena ingenuidade, infantilizando a figura feminina e valorizando a virgindade, característica de sociedades antigas e mais conservadoras.

                A sexta retoma o tom erótico que percorre o poema, ao recuperar o jogo de sedução entre a flor e a figura feminina e o contacto físico entre ambas: “E o ramo ora chegava ora afastava-se.” Sempre que a mulher, despeitada pela «recusa» do «eu», parece que se vai zangar, o jasmineiro derrama-lhe uma “chuva de pétalas no seio”. O adjetivo «despeitada», além de idealizar os seios nus, exprime também a noção de ressentimento. Note-se que ela não é alheia ao clima de sensualidade, antes parece participar, pois, durante a espécie de dança entre ambos, estremece a cada carícia que a planta lhe faz e tenta retribuir os beijos que ele lhe dá. A chuva de pétalas no seio reforça todo o ambiente erótico: trata-se de algo íntimo, delicado, que pode ser interpretado como uma chuva de beijos no peito da mulher adormecida ou, de acordo com uma leitura intensamente erotizada do poema, como a metáfora da ejaculação masculina.

                O verso “e o ramo ora chegava, ora afastava-se” pode ser interpretado de forma mais profunda que não a mera imagem da boca do amado que ora se afasta ora se aproxima para beijar a amada: funciona como metáfora do ato sexual, isto é, indicia o movimento de vaivém do órgão sexual masculino (o jasmineiro) no interior do corpo feminino, sugerindo a consumação daquele ato. A antítese “chegava” / “afastava”, as reticências e a reiteração de «ora» remetem para o ato e a sua duração. Contudo, no final, ficamos a saber que a jobem permanece virgem, o que significa que a relação sexual nunca aconteceu. Neste contexto, a chuva de pétalas podem interpretar-se também como a metáfora do sémen e da ejaculação.

                A última estrofe enaltece o caráter virginal da mulher amada e estabelece a relação de identificação entre a mulher e a natureza. Nos dois versos iniciais, o sujeito lírico clarifica o seu estatuto de observador da cena (“Eu, fitando esta cena”) e, nos dois últimos, começa por caracterizar o jasmineiro de “virgem das campinas”, para, no derradeiro, se dirigir à amada, apelidando-a de virgem e a definir como a flor da sua vida. Assim, ao denominar a natureza e a mulher por meio do mesmo vocabulário, promove a identificação entre ambas. Na verdade, podemos concluir que o «eu», ao observar o jogo de sedução entre o jasmineiro e a jovem, o vento que lhe agita os cabelos, os beijos da flor e o subsequente retraimento, na realidade, desejava ser ele mesmo a  acariciá-la, beijá-la e repeli-la. Note-se também que a imagem final que ressalta passa pela negação da sedução negativa e pela exaltação da pureza e virgindade da mulher: ela permanece virgem, apesar de toda a sedução de que é objeto e da ação do jasmineiro / da flor. Atente-se na expressividade do adjetivo «lânguida», que caracteriza a noite, o qual significa “doçura”, “sensualidade”, “voluptuosidade”, mas também “abatimento”, “fraqueza emocional ou física”.

                Ao longo do poema, existe uma oposição entre as ideias de sedução/sensualidade (o roupão aberto, a carícia, os beijos, a chuva de pétalas no seio, o estremecimento da mulher, o cabelo solto, o adormecimento, etc.) e de pureza, sugerida pela adjetivação (“cândidas”, “celeste”, “divina”, “doce”), pela associação a uma criança ou por nomes como “virgem” ou “sonhos”.

                Neste poema, já não temos a natureza em todo o seu esplendor, mas sim uma cena de interior, em que aquela está presente apenas em parte: aquilo que entra pela janela. É uma natureza muito expressiva e essencialmente romântica. No Romantismo, a natureza começa por ser cenário; depois é mais que isso: participa na ação e pode identificar-se com a mulher – “Brincavam duas cândidas crianças” (natureza + mulher).

                Apesar de ser um poema romântico, há elementos específicos do Brasil, como a «rede», elemento específico dos costumes brasileiros, símbolo da sensualidade e que aparece ligada à mulher. Esta é identificada com a natureza, mas também com a criança. A descrição surge de uma atitude de contemplação do «eu» poético: é retórica e principalmente expressiva e tem como características fundamentais a sensualidade. Essa identificação acentua-se nos dois últimos versos do poema, ao ser classificada como «virgem» a flor e a «virgem» como flor.

                Além dos traços românticos anteriormente apurados, há que atentar também ao quadro simultaneamente de volúpia e naturalidade da mulher adormecida, para o qual contribuem o detalhe do espaço físico, o realce dado ao perfume do ambiente, o estado da mulher, a janela aberta e a exaltação da natureza.

domingo, 2 de julho de 2023

Análise do poema "Sonho da Boémia", de Castro Alves

     "Sonho da Boémia" é um poema tipicamente romântico:
        - mulher sensual;
        - idealização como evasão: a vontade constante de fugir leva-o à criação de uma utopia. Idealiza um lugar, no qual junta a fantasia da evasão ao amor e constrói um paraíso. A ideia de errância está presente nos seguintes versos:
                                "Como boémios errantes:
                                Que repetem delirantes:
                                P'ra ser feliz basta amar!"
        - referência à moda espanhola;
        - conceção do amor: é um amor muito egoísta, pois só vive e só é possível no isolamento:
                                "Faremos os nossos ninhos
                                Lá onde ninguém mais for."
    É um amor egoísta, só possível com o apartamento da sociedade.

Análise do poema "Horas de Martírio", de Castro Alves

     O poema pode dividir-se em duas partes distintas:
        = Situação de ausência, evidenciada pelo tempo/relógio que anda devagar.
        = Depois, em que se situam a lembrança, recordação, memória e saudade.
    A mulher é caracterizada como «anjo caído» e com base em dois aspetos: pureza e sensualidade. Isto é próprio da inconstância amorosa e espiritual do poema romântico.
    Encontramos ainda uma definição do amor, visto numa dupla perspetiva (típico do Romantismo): o amor dela, que engrandece e dá forças e o amor dele, que é delírio e volúpia. Temos assim o amor em duas facetas, mas na mesma pessoa, porque é o que ele sente que está em causa; o que ela sente só nos é dado a conhecer por ele, ou seja, o que ele pensa que ela sente por ele.

domingo, 1 de janeiro de 2023

Análise do poema "O Gondoleiro do Amor"

     Este poema é apresentado como uma barcarola, uma composição poética característica da poesia medieval. O vocabulário também é medievalista: gondoleiro. Isto são características românticas, ou seja, estamos perante o regresso ao medievalismo:
                - ritmo ágil;
                - uso da redondilha maior e o nome "barcarola";
                - vcabulário;
                - toda a sensualidade que existe no poema:
                    Ex.:    "Como as noites sem luar...
                                São ardentes, são profundas,
                                Como o negrume do mar."
    O sujeito poético descreve a amada desde os olhos, voz, sorriso, seios, até ao colo. Ignora os cabelos. Isto é uma marca de sensualismo e medievalismo.

sábado, 31 de dezembro de 2022

Análise do poema "Os Três Amores"


             O poema é constituído por três sétimas com rima emparelhada, cruzada e interpolada, de acordo com o esquema rimático ABCADDB, com um verso na primeira estrofe, e versos decassílabos.

            O tema é o amor, tratado em três partes distintas, mas de construção paralela: I: Tasso – Eleonora; II: Romeu – Julieta; III: D. Juan – Júlia. Os nomes são exemplificativos, porque personificam uma situação própria e simbólica. A mudança de personagens condiciona a mudança de ambiente. A construção formal é a mesma nas três estrofes; muda o motivo, os símbolos e o ambiente. Isto aponta para a divisão do «eu» romântico abstrato concretizado em personagens reais. Se atentarmos na data de escrita do poema (setembro de 1866), podemos especular que a composição tenha sido escrita para a sua amada, a atriz portuguesa Eugénia Câmara. Nela, o «eu» cita três diferentes situações vivíveis com a mulher amada, aludindo a três obras importantes da literatura mundial para descrever esses momentos com a mulher: a ópera Torquato Tasso, a peça Romeu e Julieta e El Burlador de Sevilla o El Convidado de Piedra.

            Assim, a primeira estrofe remete para a mencionada ópera, da autoria de Gaetano Donizetti, que decorre na cidade italiana de Ferrara e se baseia na vida do poeta Torquato Tasso, que vive um romance cheio de desencontros e escândalos que termina com a perda da amada. O sujeito poético encarna o poeta italiano e retrata o amor de forma idealizada, um amor não realizado, embora sublime e sereno. Com efeito, há uma apropriação da história dos amores de Tasso por Eleonora, nobre de Ferrara a quem ele dedicara os seus versos e que acaba ensandecido pela ideia fixa de perseguição religiosa. Tasso é o cantor do sofrimento amoroso, que chora (canta) a cidade da sua amada, cuja visão risonha lhe afugenta o sofrimento e a solidão.

            A segunda estrofe remete para a peça Romeu e Julieta, também ela situada em Itália, concretamente na cidade de Verona, onde decorrem os amores impossíveis e contrariados entre dois jovens de famílias rivais, uma paixão que termina de forma trágica com a morte dos dois apaixonados. O sujeito poético deixa de lado o plano espiritual e passa ao terreno amoroso. Para isso, pede a ajuda dos ícones da literatura amorosa, ainda que trágica: Romeu e Julieta. Ao encarnar o herói de Shakespeare, o «eu» alude ao amor transcendental, isto é, ao amor que, apesar das barreiras sociais que o obstaculizem, se concretiza. O recurso à conjunção coordenativa copulativa «e» no último verso une as duas figuras femininas referidas no poema: Eleonora é também Julieta, isto é, são duas mulheres numa (quando concluída a terceira estrofe, serão três numa). Dito de outra forma, a mulher amada pelo sujeito poético é Eleonora, mas também é Julieta e ainda Júlia, ou seja, ele deseja as várias facetas da mulher. Para ele, o amor não possui apenas uma face, mas várias, e a mulher é, ao mesmo tempo, pura e sensual.

            Por sua vez, a terceira estrofe contém referências à obra de Tirso de Molina, cujo protagonista é D. Juan, um jovem belo que seduz Júlia, uma rapariga espanhola de origem nobre que assassina o pai. Estamos na presença de um amor sensual, carnal e amaldiçoado, cujo desenlace é igualmente trágico. O amor platónico cede lugar ao desejo ardente, à volúpia e à paixão descontrolada: “Na volúpia das noites andaluzas / O sangue ardente em minhas veias rola…”. Como não poderia deixar de ser, o vocabulário traduz esse amor/paixão/desejo, através de uma linguagem repleta de erotismo: ”sangue”, “ardente”, “leito”, “seio”, “desfaço-te”. Atente-se também na expressão «Eu morro», que alude à petit mort, isto é, ao orgasmo, se, por acaso, ele lhe desfizer a mantilha. Em suma, esta estrofe alude claramente à iniciação amorosa de D. Juan por Júlia, a espanhola fogosa.

Análise do poema "Boa noite"


             O poema “Boa noite”, de 1868, faz parte da obra Espumas Flutuantes, único livro de Castro Alves publicado em vida, e narra, através de um pretenso diálogo, com características de monólogo, uma aventura amorosa que se desenrola em dez quadras, onde se dá nota do envolvimento do «eu» poético com a mulher amada através dos ritmos e formas da natureza, que testemunham o drama da separação dos amantes, no domínio do tempo, entre a escuridão da noite e os primeiros raios da aurora (VENTURELLI, Suzette, in Arte e Tecnologia…).

            O poema contém uma epígrafe, que é a primeira fala de Julieta da cena V de Romeu e Julieta, em francês, e que introduz o tema do poema. Nesse passo da obra de Shakespeare, Romeu apressa-se para partir, pois o dia está a nascer, o que pode denunciar a sua presença ali, nos jardins dos Capuletos, e, consequentemente, o encontro furtivo de ambos, porém Julieta tenta convencê-lo de que o canto que ouvem pertence ao rouxinol, ave que canta à noite, e não à cotovia, que anuncia a chegada do dia. Isto significa que Julieta não quer que o amado parta. Esta é uma característica tipicamente romântica. De facto, a mulher desempenha um papel ativo no relacionamento amoroso, procurando impedir a partida do «eu», fazendo uso das artimanhas da sedução, nomeadamente apertando-o contra os seus seios, entre beijos, abraços e, sobretudo, descobrindo o peito. Perante este cenário, quem deixaria essa alcova?

            A composição abre com o «eu» poético anunciado que “é tarde”, por isso ele vai-se embora. Estas atitudes encontram-se noutros poemas de Castro Alves e torno da figura de D. Juan, já que este seduz a mulher e depois abandona-a. No entanto, neste poema, esse esquema é desrespeitado, visto que o abandono não se concretiza, dando lugar ao jogo sensual, que vai da necessidade de ir ao desejo de ficar. De facto, nas duas estrofes iniciais, o sujeito lírico, mesmo anunciando a sua partida, deseja ficar e sente-se seduzido pela amada: “Boa-noite, Maria! É tarde…. é tarde… / Não me apertes assim contra teu seio.”; “Boa-noite!... E tu dizes – Boa noite. / (…) / Mas não digas assim por entre beijos… / Mas não mo digas descobrindo o peito, /– Mas de amor onde vagam meus desejos.”

            Na terceira estrofe, o sujeito poético chama por Julieta e refere-se a ela até à oitava estrofe, e fá-lo através de uma linguagem sensual e erótica, que se estende por todo o poema, numa gradação de volúpia que alimenta ainda mais a vontade de ficar: “Desmanchando o roupão, a espada nua – / O globo de teu peito entre os arminhos”; “os teus contornos”; “afago de meus lábios mornos”. A descrição do espaço amoroso, tal como a descrição do corpo da mulher, é alimentada com o fogo da paixão. Nesse passo, as imagens ligam-se à noite, o tempo dos amantes: “Boa-noite”, “a lua, “é tarde”, “cabelo preto”, “a frouxa luz da alabastrina lâmpada”, “negro e sombrio firmamento”. Na sétima estrofe, encontra-se outra cena sensual em que ocorrem imagens eróticas como a personificação da luz a lamber os contornos da mulher e a menção a um fetiche, sugerindo o ato sexual pela aproximação dos lábios do «eu» poético aos pés da mulher amada: “A frouxa luz da alabastrina lâmpada / Lambe voluptuosa os teus contornos… / Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos / Ao doudo afago de meus lábios mornos.”

            Note-se, por outro lado, que há a fragmentação da mulher, aludindo a uma possível infidelidade amorosa. De facto, a figura feminina duplica-se: primeiro é Maria, depois Julieta, Marion e, por último, Consuelo. Estas quatro mulheres representam uma única aventura amorosa que decorre entre a noite e o dia. O “Boa noite”, que, de início, soa como forma de cumprimento noturno de despedida e separação (o «eu» poético deseja ir-se embora), no final parece configurar-se como abandono e entrega no reduto da amada, mesmo que se trate de uma entrega dúbia, pois o dormir, no contexto do “negro e sombrio firmamento” do cabelo da mulher, assume ares de morte, de mergulho na noite, de dissolução e desdobramento do sujeito poético num Eros infinito, negro e sombrio, ligado ao reino de Tânatos, no desenvolvimento do poema.

            O «eu» poético, assim como Don Juan, não se contenta com uma única mulher, quere-as todas. Ele encontra-se em busca permanente pela mulher ideal, por isso, a mulher que já foi Maria, na primeira estrofe, e já foi Julieta, na penúltima estrofe, é Marion, musa de Victor Hugo, e será, na última estrofe, Consuelo, “personagem de George Sand, que viria dar o título à poesia inspirada por Agnèse Murri em 1871.

            Um elemento que desempenha papel importante no poema é a natureza, que funciona como cenário dos acontecimentos, mas cujo papel não se esgota aí, pois reflete a mulher e até o «eu», conferindo grandeza à beleza feminina e ao próprio sentimento amoroso. Assim, a natureza é personificada e associada à mulher e às suas formas. Na segundo estrofe, o peito da mulher é apresentado como um mar de amor onde vagam os desejos do sujeito lírico. Na terceira, o canto da calhandra é comparado ao hálito da amada; enquanto na quarta o cabelo preto é a noite; na quinta, o peito é a lua; na sexta, as cortinas são as asas do arcanjo dos amores; na sétima, a lâmpada lambe voluptuosa os contornos de Julieta; na oitava, das teclas dos seios saem harmonias e escalas de suspiros; na décima, o cabelo feminino é associado a um negro e sombrio firmamento.

            Para os dois apaixonados, a noite é o tempo do encontro, da sua vida enquanto amantes, enquanto que, para os restantes, é momento da «morte». O dia, por sua vez, é o momento da separação do casal, portanto de morte amorosa, e de vida para a realidade dos homens. Atente-se no seguinte verso: “A lua nas janelas bate em cheio”. Metaforicamente, podemos vislumbrar aqui a ideia da penetração carnal, dado que a janela, sendo um orifício, indicia a imagem da penetração.

            Por outro lado, o poema é bastante rico em matéria de recursos estilísticos. Destacam-se, desde logo, as anáforas, por exemplo nos versos 16 e 17, bem como no final da quarta e no início da quinta estrofe: “É noite ainda”; “É noite, pois…”. Segue-se a hipérbole, nomeadamente na comparação dos versos 37 e 38 (“Como um negro e sombrio firmamento, / Sobre mim desenrola teu cabelo…”), onde o cabelo da mulher amada é comparado à escuridão da noite infinita, enfatizando o poder misterioso que este tem sobre o sujeito poético, o que acentua a hipótese da relação de Eros com a morte (negro e sombrio). Destacam-se também a enumeração e a gradação, que surgem sobretudo na oitava estrofe, quando das teclas do seio da amada o «eu» bebe “harmonias / Que escalas de suspiros”, ou na nona, quando a cavatina do delírio “Ri, suspira, soluça, anseia e chora…”. Por último, considere-se a apóstrofe, que é usada principalmente para pôr em evidência a(s) amada(s). A presença do hipérbato (“Se a estrela d’alva os derradeiros raios / Derrama nos jardins de Capuleto”, etc.) conferem uma certa feição barroca ao texto, mas de exaltação à vida, não de melancolia e pessimismo.

            O poema descreve quatro mulheres, que se poderão resumir a uma: Maria. A composição parte de Maria, passa pela platónica Julieta de Shakespeare, atinge o seu clímax na figura de Marion (Delorme) – a intensa e sexual musa de Alfred de Vigny e Victor Hugo – e termina em Consuelo, o protótipo de musa (grande cantora lírica) de George Sand, não tanto platónica ou sexual como Julieta ou Marion.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Análise do poema "Prometeu", de Castro Alves


             Prometeu é uma figura da mitologia grega que teria sido o criador da humanidade, que amassara em argila e água ou com as suas lágrimas. O mito é abordado por Hesíodo na sua Teogonia e, depois, em O Trabalho e os Dias: Prometeu, “hábil e de versátil astúcia”, era um dos filhos de Jápeto e Clímene, filha do Oceano. Os outros eram Atlas, o “esforçado”, Menécio”, o “glorioso”, e Epimeteu, o “torpe”. Enquanto reinou Cronos, homens e deuses conviveram pacificamente, mas, posteriormente, Zeus submeteu os primeiros. Para terminar com uma querela entre as divindades e os humanos, era necessário que se oferecesse um sacrifício a Zeus. Prometeu dividiu um boi em duas partes, cobriu a carne boa com a pele do animal e colocou os ossos debaixo de uma camada de gordura apetitosa. Como represália, Zeus negou entregar o fogo aos homens, que eram os protegidos de Prometeu.
            Epimeteu e Prometeu tinham sido encarregados de criar o ser humano e todos os animais: o primeiro concretizaria a criação e o segundo supervisionaria a tarefa. Deste modo, Epimeteu atribuiu a cada animal os vários dons (rapidez, força, coragem, asas, etc.),mas, quando chegou a vez do homem, formou-o do barro e, como já havia gastado todos os recursos nos outros animais, recorreu a Prometeu, que então roubou o fogo aos deuses, que era seu exclusivo, e o entregou aos mortais num galho oco, ensinando-lhes também várias artes. Tudo isto assegurou a superioridade dos homens sobre os demais animais.
            Como castigo, Zeus ordenou a Hefesto que acorrentasse Prometeu ao monte Cáucaso, onde todos os dias uma águia dilacerava o seu fígado, que, de seguida, se regenerava. O sofrimento só terminou quando Hércules, séculos depois, concluídos os seus doze trabalhos, matou a águia e o libertou. Além disso, Zeus ordenou a Hefesto que escupisse a estátua de uma mulher e pediu a Hermes que lhe oferecesse um espírito cínico e um caráter volúvel. Assim, foi criada Pandora (que mais tarde se casou com Epimeteu), cuja caixa continha todos os males e que, ao ser aberta, se espalharam e atormentaram a humanidade. No fundo da caixa, ficou somente a esperança para suavizar a condição humana.
 
            Este poema de Castro Alves pode dividir-se em duas partes: na primeira, dá-se a descrição do sofrimento de Prometeu, enquanto, na segunda, se estabelece a comparação da figura mítica com o povo de África.
            Na primeira estrofe, é descrita a agonia de Prometeu no cumprimento do seu castigo e feita a sua descrição, destacando-se a sua capacidade de resistências às agruras a que é submetido, tendo como consolo o pranto das Nereidas. Assim, é arrogante / desafiador, forte, “sublime no sofrer” e resistente (“vencido, – não domado”), vive em agonia (“Na sublime agonia arqueja Prometeu”), preso ao monte Cáucaso (“O Cáucaso é seu cepo”), constituindo o céu o seu sudário. O dramatismo da cena – o de alguém amarado a um monte, de olhar cravado no sol, arquejando – é acentuado pela referência crua ao abutre que lhe rói as entranhas.
            Na estrofe seguinte, é destacada a solidão de Prometeu: ninguém o consola, todos o abandonaram. Enquanto isso, no Olimpo, a morada dos deuses, Cupido brinca “por entre os seios nus” e as bacantes correm pelas montanhas dançando, nos seus tradicionais bacanais. Está, pois, aqui presente o contraste entre a agonia e a solidão de Prometeu e o ambiente de festa, erotismo e até alucinação vivido entre os deuses. Apenas um consolo existe para ele: o pranto das Nereidas.
            Posteriormente, a figura de Prometeu transforma-se na alegoria do povo. Assim, tal como a figura mitológica, o povo é infeliz, é um mártir eterno, tendo como algoz, não a águia, mas os maus reis e as leis injustas, e sendo o poder o instrumento de tortura. O mito é, assim, nacionalizado e transferido de espaço: Prometeu agoniza agora no continente sul-americano (“Era pequeno o Cáucaso… amarram-te nos Andes.”). O mártir já não é a figura mitológica, mas o povo, um “mártir eterno”, um “Prometeu moderno”, enquanto “O século da luz olha… caminha… ri…”. A herança do desenvolvimento humano é distribuída de forma desigual, e a figura da divindade castigada cruelmente – no caso do poema, encarnada no povo – anónima, portanto –, retorna sob a forma da crueldade, não dos deuses, mas dos “maus reis”.
            Os versos que se seguem aludem ao Iluminismo: “E enquanto tu, Titão, sangrento arcas aí, / O século da luz olha… caminha… ri…”. Ou seja, em pleno século das luzes, dominado por espíritos racionais e esclarecidos, Prometeu – o povo – continua a agonizar, só e desprezado por essas mentes. Estes versos mostram claramente a sua indiferença pelo sofrimento alheio. O Prometeu moderno – o povo – será cantado pelo «eu» poético, que coloca o seu discurso ao seu serviço enquanto espaço público para discussão dos destinos da humanidade: “A musa do poeta irá – filha do mar – / O oceano de sua alma… em cantos derrama…”.
            O importante no mito clássico era o castigo infligido a Prometeu; agora temos a solidão. O herói desafia o destino e sofre as consequências. Há uma transformação da figura mitológica num herói romântico, que, mais que o herói castigado, é o herói que fica só. Há um paralelo entre este herói e o homem negro, chamado «povo infeliz», povo mártir eterno. O poeta romântico tem consciência da sua missão: defender e cantar o negro. Assim sendo, o objetivo do poema é criticar a sociedade de então; está-se num século de luz onde ainda se pratica a escravatura, perante a indiferença geral.

Análise do poema «O "adeus" de Teresa»


             O tema deste poema, que nos relata o processo de conhecimento e descoberta amorosa entre o sujeito poético e Teresa, até ao seu fim, é a despedida. Nesta situação, não se pode falar propriamente de engano ou traição, porque não há enganos quando ambos sabem o que querem.

            Nele encontramos todos os elementos de uma narrativa: tempo, espaço, ação e personagens (ele, ela e o outro). Tudo começa pelo enamoramento, dominado pela paixão. Há uma partida do «ele» e uma volta que depara com uma situação diferente que motiva a escrita do texto:

enamoramento: paixão
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partida      /      volta
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modificação
            Cada um dos versos iniciais das quatro estrofes apresenta uma nota temporal que traduz um momento da relação entre o casal enamorado:
- “A vez primeira que eu fitei Teresa” (v. 1);
- “Uma noite… entreabriu-se um reposteiro” (v. 7);
- “Passaram tempos… séc’los de delírio” (v. 13);
- “Quando voltei… era o palácio em festa!...” (v. 19).
Assim, o primeiro da estrofe inicial marca o primeiro encontro, remetendo desde logo para um forte envolvimento amoroso, arrebatador como a corrente e envolvente como os giros da valsa(comparação): “Como as plantas que arrasta a correnteza, / A valsa nos levou nos giros seus…”. Atente-se na presença da aliteração em /r/ (“arrasta a correnteza”), que sugere o ruído da dança, e em /s/ (“valsa nos giros seus”), que insinua o farfalhar das sedas das vestes de Teresa. Por sua vez, o hipérbato do verso 1 realça a noção de tempo, marcado o início do relacionamento, e a figura de Teresa, que sobressai por constituir a palavra rimante. O hipérbato do segundo verso, colocando o nome “correnteza” após o verbo, indicia o arrebatamento que caracterizou este primeiro encontro, além da própria valsa, o seu ritmo e passos, intensificados pela comparação. Por sua vez, a metonímia “A valsa nos levou nos giros seus” significa que o par amoroso se deixou levar pela dança. A despedida ocorrida nesta estrofe é feito num clima de grande emoção: “«Adeus» eu disse-lhe a tremer co’a fala”. Esta é a despedida típica de um casal imerso na paixão.

            O segundo momento da relação consiste na concretização do amor do casal através da sugestão do ato sexual. O hipérbato do verso 2 (“E da alcova saía um cavaleiro”) envolve a figura num ambiente de mistério, disfarçando, pelo recurso à terceira pessoa, a personagem que o verso seguinte esclarece ser o próprio «eu», que beija uma mulher sem véus, isto é, Teresa. Este estratagema desperta, naturalmente, a curiosidade, mesmo que por breves instantes, relativamente àquela figura. As aliterações em /d/ e /b/ em “inda beijando” sugerem o ruído do beijo. A despedida, neste segundo momento, ocorre após um momento de amor tórrido, constituindo uma separação temporária, em plena vivência da paixão que os une.

            O terceiro momento reafirma o caráter intenso do romance e a partida do sujeito poético, desta vez por um período de tempo mais longo, sugerindo que os encontros amorosos que decorreram nesse período foram muitos e intensos: “Passaram-se tempos… séc’los de delírio / Prazeres divinais… gozos do Empíreo”. Note-se a presença de várias hipérboles nesta estrofe: “séc’los de delírio”, “prazeres divinais”, “gozos do Empíreo”, as quais intensificam a relação amorosa e prolongam a ideia de arrebatamento da primeira, bem como as aliterações em /p/, /t/ e /d/ (“Passaram tempos… delírio”; “prazeres divinais… Empíreo…”), que sugerem o ritmo e a sonoridade da estrofe e o arroubo da paixão. A despedida neste caso dá-se antes de o «eu» viajar, prometendo voltar, assumindo, assim, uma carga de maior dramatismo, até porque a figura feminina fica muito chorosa.

            O quarto momento corresponde à rutura amorosa: de acordo com a perspetiva do sujeito poético, Teresa está apaixonada pelo outro homem (“Foi a última vez que eu vi Teresa!...”). O uso do pronome pessoal maiusculado (“Ela”) enfatiza a figura feminina, destacando-a no contexto da festa, demonstrando o espanto do sujeito poético ao deparar com uma cena inimaginável para si – encontra-la com outro homem – e invertendo a posição de dominador e presa na relação amorosa. O nome «lares» aponta também para o espaço geográfico onde o «eu» lírico mora, o que evidencia que ele e Teresa pertencem a espaços diferentes. A assonância em /a/ e /e/ (“era o palácio em festa”) sugere a atmosfera festiva e musical que rodeia Teresa. Esta última despedida ocorre quando o sujeito lírico regressa e a encontra numa festa acompanhada por outro homem, com o qual canta junto à orquestra.

            Por outro lado, as quatro reações de Teresa às despedidas – “corando” (v. 6), “entre beijos” (v. 12), “em soluços” (v. 18) e “arquejando” (v. 24) – evidenciam a trajetória da relação, marcada por uma evolução (de “corando” para “entre beijos”), seguida de um declínio (de “em soluços” para “arquejando”). Ou seja, a relação amorosa evolui de um amor repentino para a sua realização sexual e desta para o distanciamento e a rutura, uma situação característica do Romantismo.

            O título do poema aponta, desde logo, para a despedida, concretamente através do uso do vocábulo “adeus”, colocado entre aspas e antecedido do determinante artigo definido “o”, e que é repetido várias vezes ao longo do texto. Por outro lado, o resto do título remete a responsabilidade da última despedida para afigura de Teresa, quando quem até aí partia e se despedia era o «eu», o elemento do par amoroso que dominava a relação, que definia quando os encontros tinham lugar, enquanto ela se limitava a responder ao adeus, murmurar, chorar e soluçar. Esta ideia é confirmada pelo recurso ao adjetivo «presa», no verso “Adeus lhe disse conservando-a presa”, que sugere que ela está amarrada a ele, podendo também ver-se nela o resultado da caça. Tudo isto corresponde a uma certa tradição literária, que apresenta o homem como o elemento dominante na relação e a mulher, o dominado e submisso. No entanto, o título parece contradizer esta ideia, pois aponta Teresa como a responsável pela separação, bem como a traição final, pois, na época, o poder de seduzir e de fazer o homem sofrer é sempre da mulher.

            No que diz respeito à conceção da figura feminina, Teresa não corresponde ao modelo tradicional da mulher apaixonada, recatada e submissa que permanece fiel ao homem amado, que partiu e está ausente, e que encontramos, por exemplo, nos poemas homéricos, encarnada na personagem de Penélope, a esposa de Ulisses, que se lhe manteve fiel durante os vinte anos em que esteve ausente de casa (dez da guerra de Troia e dez do regresso ao torrão natal). Pelo contrário, Teresa afirma-se como uma mulher independente e livre que procura satisfazer os seus desejos e prazeres.

            Formalmente, o poema é constituído por versos decassílabos, com rima emparelhada e interpolada, de acordo com o esquema AABCCB, consoante (“Teresa” / “correnteza”) e rica (“seus” – determinante – “adeus” – nome).

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Análise do poema "Vozes de África", de Castro Alves


             “Vozes de África” é um poema escrito por Castro Alves, composto em São Paulo, em 11 de junho de 1868. Trata-se de um texto épico sobre África, constituído por dezanove estrofes, compostas por seis versos cada (sextilhas), com rima emparelhada e interpolada, de acordo com o esquema AABCCB. Por outro lado, é interessante notar que estamos perante um texto inacabado, como o demonstram as linhas pontilhadas entre os versos 42 e 43, 72 e 73, 78 e 79 e 108 e 109.

            O sujeito poético deste poema representa todo o continente africano, isto é, todos os homens e mulheres que eram forçados a abandonar a sua terra para trabalhar como escravos. Assim sendo, podemos deduzir que o «eu» lírico é, no fundo, todo um continente que sofre com os seus homens e mulheres que partem e sofrem todo o tipo de provações. De facto, o texto é construído a partir do ponto de vista do continente africano. Por outro lado, a composição poética denuncia o tráfico negreiro e a escravidão a que os negros eram sujeito e mostra as arbitrariedades e a injustiça que decorrem dessa cultura de aprisionamento da pessoa negra. Em simultâneo, esse mesmo sujeito poético suplica a intervenção e a bondade divinas e procura compreender os motivos que originam tal situação e tanto sofrimento.

            No início do poema, o «eu» personifica a África, por ser uma criação de Deus, e toma para si as palavras ditas por Jesus Cristo, seu Filho, há mais de dois mil anos, na tentativa de ser ouvido por Ele. O mesmo sucederá, ao longo do texto, com os outros continentes, sendo, pois, todos vistos como entidades humanas. Ele clama por Deus de forma desesperada pelo facto de nesses dois milénios ter implorado, em vão, a sua ajuda, no sentido de o libertar do sofrimento (a escravidão). De facto, a composição apresenta o negro como uma vítima e personifica a África (que correspondeu ao «eu»), que, desesperada, pede perdão pelos seus crimes. No fundo, trata-se de um olhar católico sobre a situação, radicado na visão europeia do mundo e das coisas, daí as referências religiosas referidas e a atitude de resignação que se adivinha. De facto, a África dirigir-se-ia não ao Deus monoteísta cristão, mas a um deus (com «d» minúsculo) ou aos deuses, em respeito pela sua cultura politeísta. Assim sendo, se é verdade que Castro Alves reconhece o sofrimento do povo africano, fá-lo a partir de uma perspetiva cristão europeia. África, como tantas vezes tem sucedido ao longo dos tempos, reclama da escravidão que tem sido imposta aos seus filhos e questiona a figura divina por a ter abandonado e se manter silenciosa relativamente ao seu drama.

            Na segunda estrofe, o sujeito lírico faz referência ao mito de Prometeu, o irmão de Atlas que roubou o fogo sagrado aos deuses do Olimpo para o dar aos seres humanos e, por isso, foi acorrentado ao Cáucaso, onde, diariamente, uma ave de rapina lhe comia o fígado, que se regenerava de seguida. Deste modo, Prometeu constitui o símbolo do sofrimento incessante, daí a sua comparação com África, para quem o sofrimento é igualmente eterno. Contudo, neste caso, ainda não se conhece o motivo da punição. No poema de Castro Alves, a ave de rapina que atormentava Prometeu é comparada ao sol ardente que todos os dias castiga o continente africano. Por seu turno, o próprio continente africano está preso por correntes à região litoral de Suez, na Itália: “E a terra de Suez – foi a corrente / Que me ligaste ao pé…”. Note-se que até 1859, quando o engenheiro Ferdinand de Lesseps construiu o Canal de Suez, o Médio Oriente era considerado parte do território africano. Só então houve a separação geográfica e cultural entre esses espaços. Esta nota coloca a Europa na dependência da África, ou seja, a cultura ocidental baseou-se no continente africano para construir muitas das suas formas de conhecimento. O castigo passa também pelo ambiente fragoso e desértico que caracteriza África.

            A partir da terceira estrofe até à sétima, África compara-se às suas irmãs, isto é, aos outros continentes, num percurso que vai do passado ao presente, e indaga a razão do seu sofrimento em relação à Europa e à Ásia: “Minhas irmãs são belas, são ditosas… / Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas”; ”A Europa – é sempre Europa, a gloriosa!...”. Embora se considere irmã dos outros continentes, torna claras as diferenças e queixa-se de que aquelas são as preferidas de deus, pois foram contempladas com coisas maravilhosas, enquanto que ela foi abandonada (v. 49), sendo que até o próprio deserto conspira, escondendo as suas lágrimas, para que Deus não as veja (vv. 46, 47 e48). África contempla as riquezas das suas duas “irmãs”, às quais mais tarde se vem juntar a traidora América. No que diz respeito à Ásia, é enfatizada a sua beleza e exuberância cultural e natural, descrita de forma idealizada, como é característico do Romantismo: os haréns do Sultão, a natureza (os animais – os elefantes brancos, os Himalaias, o rio Ganges, os corais), a cultura e os monumentos / templos, as crenças, os deuses, os pagodes. Relativamente à Europa, está presente uma dose apreciável de realismo crítico, de rancor e ironia quando se lhe refere. Assim, aquela é apelidada, ironicamente, de “Progressista” (quando era a responsável pelo tráfico negreiro), de mulher vaidosa, dominadora e meretriz. Por isso, a voz de África solicita aos ícones da cultura que se libertem dos valores da “grande meretriz” presentes no “mármore de Carrara” (tipo de mármore branco ou azul-cinza de alta qualidade muito usado em esculturas, por exemplo, extraído na zona da cidade de Carrara, da região da Toscana, em Itália) e nos “hinos de Ferrara”, dado que a dominação europeia foi construída em cima da subjugação tirânica e violenta dos povos africanos, pelo que cabe à Europa uma contestação judicial (“litígio”). Ou seja, neste passo, sugere-se uma espécie de ressarcimento de todos os bens e danos cometidos com a exploração do ser africano.

            Contrastando com o poder da Europa e o exotismo exuberante da Ásia, a África só tem para mostrar a sua miséria: “Eu triste abandonada”; “Perdida marcho em vão! / Se choro… bebe o pranto a areia ardente”; “E nem tenho uma sombra de floresta…”. De um lado, encontram-se as irmãs “belas” e “ditosas”; do outro, ela perdida no deserto ígneo do seu sofrimento. Por isso, atormentada, África suplica a proteção salvadora da divindade, que parece, porém, indiferente: «Embalde aos quatro céus chorando grito: “Abriga-me, Senhor!...”».

            Na décima terceira estrofe, volta-se para o seu “Deus terrível”, questionando-o sobre se não chega já de dor e os motivos de tanto sofrimento: “E que é que fiz, Senhor? que torvo crime / Eu cometi jamais que assim me oprime / Teu gládio vingador?!”. Como estes versos indiciam, o «eu» deseja conhecer a origem do crime pelo qual padece até ao presente, isto é, encontrar as razões dos padecimentos africanos. Convém, a este propósito, fixar o seguinte: o poema contém diversas imagens bíblicas e referências religiosas, que o «eu» poético usa para criticar não apenas o sistema esclavagista, mas sobretudo a forma como a Igreja sustentava, através do seu discurso, o direito de os homens brancos escravizarem os seus congéneres negros. Esse discurso “justificava o tráfico atlântico pela transferência do cativo de um mundo africano de barbárie para a civilização cristã brasileira” (MAESTRI). Ora, um mundo civilizado jamais promoveria a escravidão do seu semelhante; ao fazê-lo, a Europa constituía um exemplo de barbarismo. Por outro lado, acusa Deus de ser alguém terrível e cheio de sentimentos de vingança e rancor, ligados à presença de Cam em África, cuja história está narrada no Génesis, livro que também dá conta da jornada épica do povo hebreu, o qual conheceu a escravidão no Egito até ser libertado por Moisés. Esse mesmo povo e o seu sofrimento no cativeiro seriam vingados por Javé. Embora em nenhum passo o referido texto dê a entender que Cam e os seus descendentes se exilaram em África, o uso do nome «vingança» no poema parece indiciar a referência a esse povo.

            A décima quarta estrofe parece fornecer o motivo, a culpa original de África, após o dilúvio: o matrimónio entre duas culturas – “Cam!... Serás meu esposo bem amado… / Serei tua Eloá…”. Cam é o filho mais novo de Noé, que foi salvo do dilúvio, juntamente com os seus dois irmãos (Sem e Jafé), na arca que Deus mandara construir ao pai. Quando o fenómeno bíblico cessou, Noé plantou uma vinha, colheu as uvas nela produzidas, embriagou-se com o vinho feito e adormeceu, nu, na sua cabana. De acordo com o relato bíblico, Cam surpreendeu o pai embriagado, desacordado e nu, e, em vez de o cobrir, foi contar aos irmãos, que, andando de costas, o taparam sem ver a nudez paterna. Quando acordou, Noé amaldiçoou Canaã, um dos filhos de Cam, referindo-se-lhe como “servo dos servos”: “Maldito seja Canaã; servo dos servos será de seus irmãos”. Segundo alguns estudiosos, ao proferir tais palavras, Noé estaria a profetizar que um dos irmãos de Canaã iria herdar a terra dos cananeus (os habitantes da antiga terra de Canaã, situada no Médio Oriente e que correspondia sensivelmente ao atual território de Israel), enquanto outros sustentam que Cam poderá ter mantido relações incestuosas com a mulher do seu pai, pelo que Canaã teria sido amaldiçoado por ser o produto dessa união ilícita. Esta maldição terá sido aproveitada por várias religiões monoteístas para justificar o racismo e a escravidão de negros africanos, que acreditavam ser descendentes de Cam. No Brasil, foi usada para fundamentar a escravização dos índios: “Não há lei divina nem humana que proíba a possessão de escravos […] [e os índios brasileiros] são da descendência da maldição de Cam” (João de Sousa Ferreira, missionário). Por outro lado, a partir do século XVIII, diversos autores europeus começaram a defender que, etimologicamente, a palavra “Cam” significaria «queimado» ou «escurecido», tese que é cabalmente desmentida pelo estudo de línguas antigas. Na versão europeia, como Cam e o seu filho passaram a habitar a África, o homem negro estava fadado à escravidão. Esse matrimónio entre África e Cam é o cruzamento de culturas e etnias que ocorreu ao longo da História desde os remotos tempos bíblicos, o que parece apontar para o pecado original. Seja como for, graças a essa “mancha original” que envolve Cam e Eloá (do hebraico, significa “Deus”), as gerações africanas sofrem o «anátema cruel» ao longo dos séculos. A partir daí, os africanos perderam-se nos valores do «judeu maldito» e foram arruinados e destruídos pelas «garras» da Europa (décima quinta e décima sexta estrofes). Dito isto, o perdão reclamado por África é, portanto, pelo seu crime de ter recebido um viajante “Negro, sombrio, pálido, arquejante” (vv. 79-80), isto é, a figura amaldiçoada de Cam. A sua descrição como homem negro não possui qualquer fundamento bíblico, pelo que o mais provável é que Castro Alves o tenha caracterizado dessa forma para mostrar Cam era um ser etnicamente semelhante àqueles que o expulsaram, ideia que indicia que a cor da pele, a razão apontada para justificar o direito de um homem escravizar outro, deixa de existir. Assim, o poeta procurou mostrar que essa ideologia, a associação entre escravos e negros, era uma criação por quem se dedicava a esse tipo de comércio e tinha, portanto, interesses económicos na situação.

Na décima sexta, o «eu» alude à perseguição a que Moisés e os hebreus foram sujeitos pelos egípcios aquando da fuga do Egito: “Vi meu povo seguir – Judeu maldito – / Trilho de perdição”. Na décima sétima, África mostra o seu ceticismo relativamente ao Cristianismo, pois Cristo sacrificou-se em vão, já que não houve qualquer redenção da humanidade: a África e os seus filhos continuam a alimentar, com o suor e o sangue do seu corpo, as duas «irmãs» dominantes. Cristo foi crucificado e morreu para que os pecados dos homens fossem apagados, no entanto essa crucificação foi inútil para África, dado que o seu pecado original não foi lavado pelo sangue de Jesus, pois continua a sofrer. Mas que pecado foi esse? África recebeu Cam e a sua descendência, facto que justificaria a sua escravização. Note-se que o facto de Jesus Cristo ter sido escondido no continente africano e passar a habitá-lo não o tornou berço da cultura mais elevada (também Belém de Judá, onde Jesus nasceu, era considerada, antes da construção do Canal do Suez, parte de África). Jesus, que passou despercebido entre os egípcios por ter um tom de pele semelhante, depois de morto foi embranquecido pelos europeus para assim propagar a ideologia branca. “No poema a voz d’África diz que o «sangue não lavou a mancha original». Se se considera a mancha original a tal mentira eurocêntrica que, depois de dar interpretação para o racismo, também mentiu ao esconder que enaltecia um negro como seu salvador, é a ancestralidade africana que fala; se se considera a mancha original o corpo negro de Cristo que através da morte livrou o homem negro da escravidão, quem fala pode ter pele negra, mas usa a mesma máscara branca que fez com que Cristo se tornasse branco.” Além disso, o sujeito poético apresenta o continente africano como uma fazenda onde se criam animais para o trabalho: “Meus filhos – alimária do universo, / Eu – pasto universal…” (vv. 101-102).

A penúltima estrofe introduz a terceira irmã, a América «traidora», que se transformou em ave de rapina (“Condor que transformara-se em abutre, / Ave da escravidão, / Ela juntou-se às mais…”), subjugando África no processo de escravidão. De facto, a América, tida como o símbolo da liberdade, e o Brasil, que, nas margens do rio Ipiranga, proclamara o fim da sua submissão a Portugal, são retratados não como portadores dessa promessa de liberdade, mas como um abutre que se alimenta do sangue africano, do seu suor, da sua existência, como o demonstrava a existência de inúmeros escravos nestes territórios, distribuídos pelas plantações e pelos afazeres domésticos. Alude-se depois a outro episódio bíblico, o de José do Egito, que foi vendido pelos próprios irmãos, comparando o destino da personagem bíblica à sina de África ver os filhos vendidos pela irmã malvada

            Na última estrofe, a África suplica por redenção pelo seu crime original: “Basta, Senhor!”, projetando o seu grito no infinito.

            Em suma, o poema configura uma alegoria do destino trágico do ser africano, visto através da própria África enquanto continente. Assim, é esta que narra as suas desgraças, lamenta o seu destino e implora a misericórdia divina. Além disso, os africanos, metonimicamente, apresentados todos como uma nação, queixam-se a Deus pela sua desventura, pela tristeza de ver os seus conterrâneos arrancados do solo pátrio para serem escravizados. Mais do que isso, o poema sugere a ideia da condenação eterna, isto é, a personagem África observa que o seu destino será sempre a exploração, “sem lugar ao sol”. Fica a ideia de desejo de liberdade e autonomia.

            Castro Alves impõe-se como o cantor do negro escravo. Ele assume uma postura de indignação face à escravatura, o que o leva a cantar o escravo. Esta indignação está presente na imagem de grandeza, nas antíteses, símiles, comparações. Tudo nele é grande e infinito. A sua poesia abolicionista caracteriza-se por essa eloquência e grandiosidade. Em Castro Alves, nota-se um certo exagero na escrita e na forma: uso inconsciente de imagens, vertigem oral, abundância de adjetivos, o que contrasta com a contenção de Gonçalves Dias.

            O escravo é aqui apresentado como um drama amplo e abstrato, ao contrário da individualização de A Cachoeira. É como se o negro tivesse em si o próprio destino humano. Tudo isto mostra o destino como um elemento fundamental no Romantismo, sendo a função do poeta cantá-lo. A sua visão do negro acaba sempre por ser idealizada: ele cobre o negro com um manto redentor; é um herói integralmente humano, que sofre e ama. Claro que o processo de defesa do negro aparece numa altura em que ele era a principal fonte de mão de obra, o que justifica a resistência do público e dele mesmo, o que o leva a idealizar os traços físicos e morais do negro.

            Quanto à natureza, ela surge como personagem central e necessária, não só como cenário, mas também como cenário onde se integram as personagens.

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