Português: 30/04/21

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Análise da esparsa "Os bons vi sempre passar"


Assunto: para o sujeito poético, não existe justiça humana e os valores éticos e morais estão invertidos, pois os maus recém prémios e galardões diversos, enquanto os bons são severamente castigados. Ao dar-se conta dessa injustiça, o sujeito faz-se mau, na esperança de também ser premiado, de obter as vantagens e benefícios que observou nos outros, porém para ele logo a justiça funcionou e foi castigado.
 
 
Tema: o desconcerto / as injustiças sociais (abordado de forma jocosa).
 
 
Estrutura interna
 
1.ª hipótese
 
1.ª parte (5 versos iniciais) – Observação: o «eu» foi observando («vi»), ao longo do tempo («sempre»), que os bons eram castigados e os maus premiados.
 
2.ª parte (vv. 6-8) – Estratégia e consequências: como resultado da sua observação e perante a inversão de valores e os exemplos de injustiça, o «eu» decide ser mau, porque entende ser a melhor forma de alcançar «o bem tão mal ordenado», mas acaba por ser castigado.
 
3.ª parte (vv. 9-10) – Conclusão: o «eu» conclui, de forma irónica, que, afinal, só para si «anda o mundo concertado», dado que só ele foi castigado quando foi mau.
 
 
2.ª hipótese
 
1.ª parte (vv. 1-5) – Situação genérica: o «eu» constata a injustiça no mundo, pois os maus são premiados e os bons são castigados.
 
2.ª parte (vv. 6-10) – Situação pessoal: o «eu» confessa que decidiu mudar o seu comportamento e tornar-se mau, no entanto foi castigado, já que para si o mundo está «concertado».
 
▪ Em jeito de conclusão, podemos afirmar que o sujeito poético acaba por não saber como se conduzir, dada a injustiça e a arbitrariedade que reinam no mundo: se for bom, arrisca-se a passar «graves tormentos»; se for mau, será castigado. Assim, estará sempre à mercê dos caprichos da desordem de um mundo que parece persegui-lo pessoalmente.
 
▪ O poema procura denunciar a inversão de valores que caracteriza a sociedade: os bons são castigados e os maus são recompensados, como se o mundo andasse às avessas.
 
▪ O tema mantém-se atual, visto que ainda hoje deparamos com situações que exemplificam que nem sempre quem tem mérito é recompensado, muito pelo contrário.
 
 
Retrato / Caracterização do sujeito poético
 
            Perante o desconcerto e a injustiça que caracterizam o mundo, o sujeito poético mostra-se admirado e espantado com o que observa. Por outro lado, manifesta toda a sua desilusão, desencanto e tristeza com a injustiça e a arbitrariedade, quando verifica que, quer seja bom, quer seja mau, o mundo castiga-o sempre, o que gera nele pessimismo, frustração e impotência para alterar o estado de coisas e a sua vida.
            Além disso, o «eu» lírico apresenta-se como uma exceção, visto que apenas para si «anda o mundo concertado», ou seja, só ele foi castigado quando praticou o mal. A sua observação das coisas, a sua experiência de vida levou-o a acreditar que deveria ser premiado (como os demais que praticaram o mal), no entanto não foi isso que sucedeu.
 

Intertextualidade
 
• Esta esparsa aborda a questão do desconcerto do mundo, um tema que atravessa a literatura de forma transversal.
 
• Assim, pode relacionar com a cantiga de amigo, nomeadamente com o exemplo da donzela que ama sinceramente o seu amigo, mas não é correspondido.
 
• Por outro lado, pode associar-se também à cantiga de escárnio e maldizer, havendo diversos textos que abordam o tema de forma idêntica, como, por exemplo, aqueles que denunciam os elogios exagerados e artificiais da figura da mulher.
 
 
Análise formal
 
Classificação: esparsa.
O poema é constituído por uma única estrofe de 10 versos, sendo designado, por isso, décima. De facto, a esparsa é uma composição poética de uma só estrofe na qual, de forma breve, se apresenta um pensamento artisticamente construído. Foi um tipo de poema muito cultivado na segunda metade do século XV e no século XVI, tanto em Portugal como em Espanha.
 
Métrica: todos os versos têm 7 sílabas métricas – redondilha maior.
 
Rima:
» esquema rimático: abaabcddcd
» rima cruzada, emparelhada e interpolada
» consoante (“passar”/“espantar”)
» pobre (“passar”/”espantar”) e rica (“assim”/”mim”)
» aguda (“passar”/”espantar”) e grave (“tormentos”/”contentamentos”)
A palavra rimante «tormentos» associa-se ao verbo «passar» e ao adjetivo «graves», todos com conotações negativas e referentes aos bons. Por outro lado, «tormentos» relaciona-se com o verbo «nadar» e com o nome «mar», que sugerem a felicidade, a descontração e a liberdade que esperam os maus.
 
 
Recursos expressivos
 
Antíteses (bem/mal; bons/maus; graves tormentos/mar de contentamentos): os «bons» passam «graves tormentos», enquanto os «maus» vivem num «mar de contentamentos», ou seja, o mundo está desconcertado e dividido em dois grandes grupos, é injusto, dado que os bons sofrem e são punidos e os maus são premiados, por isso vivem felizes e tranquilos. Estas antíteses, por outro lado, realçam os contrastes existentes no poema, nomeadamente entre as consequências dos atos dos bons (penalização) e dos maus (recompensa) em termos gerais e entre as consequências dos maus atos do sujeito poético (penalização) e as dos atos dos outros (recompensa).
 
Repetição da expressão «vi sempre»: traduz a ideia de que o sujeito poético observou, pessoalmente, os acontecimentos ao longo do tempo, isto é, é testemunha da situação. Por outro lado, a repetição sublinha a recorrência desse facto.
 
Metáfora «nadar em mar de contentamentos»: exprime a felicidade e a despreocupação dos «maus» através da ideia de grandeza associada ao mar, bem como a enormidade das vantagens de que beneficiam, e acentua o espanto e a estranheza do sujeito poético perante a injustiça que grassa no mundo.
 
Aliteração, por exemplo, em /s/ (verso 1).
 
Ironia presente nos dois versos finais do poema: traduz a constatação de que o mundo só anda concertado para si.
 
Forma verbal «anda», no presente do indicativo, sugere a intemporalidade da inversão de valores que caracteriza o mundo e da arbitrariedade de que é vítima.
 
Conectores:
▪ a conjunção coordenativa adversativa «mas» (v. 8) marca a oposição entre o castigo do sujeito poético e a impunidade dos outros;
▪ a locução «Assi que» introduz a conclusão do sujeito poético: apenas para si existe justiça e ética no mundo.
 
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