Português: José Régio
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quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Análise de "A janela e as feras", de José Régio

             O poema, constituído por duas quadras e dois tercetos (soneto), abre com a referência a um hospício (localização espacial) onde há muitos residentes (“centos”), algo que, visto do exterior, não seria percetível. A entrada para o hospício é feita através de um portão que dança na dobradiça velha. A repetição da forma verbal «dança» sugere a entrada de mais doidos, ideia confirmada pela segunda parte do verso 4: “… e faz entrar mais a toda a hora”.

            Lendo a segunda quadra, apercebemo-nos de que os doidos que habitam no hospício têm uma experiência de vida marcada pelo sonho, pelo crime e pelo vício, e viveram o seu apogeu (“foram reis”) no passado remoto (“lá muito longe, outrora…”). Tendo em conta a última estrofe do texto, onde é explicitado o significado do hospício e dos doidos, podemos olhar para os versos 5 e 6 e concluir que os alienados são impulsos e desejos de sonho, crime e vício, isto é, são impulsos que, se se manifestassem, se se concretizassem, levariam a esses comportamentos nocivos e destrutivos. Neste contexto, o verso 6 significa que esses impulsos reinaram já no passado do sujeito poético. Olhá-los nos olhos causa medo e angústia. Porquê? Porque têm uma natureza hedionda e ameaçadora, além de uma potencialidade destrutiva. Presentemente, os doidos encarcerados sentem-se ansiosos, envergonhados, perturbados e inquietos por estarem aprisionados naquele hospício.

            O segundo terceto reproduz uma fala do sujeito poético (marcado pelo travessão) dirigida ao seu corpo (apóstrofe), que é, afinal, o hospício de alienados. Assim sendo, compreendemos agora que o hospício simboliza o «eu» poético, representando os doidos, os alienados os impulsos, as tentações e os desejos que nele vivem. Os doidos (isto é, os impulsos e desejos) estão «enjaulados», presos, no «eu» lírico porque este se vê forçado a mantê-los aprisionados, a não deixar que se manifestem.

            Nesse mesmo terceto, o sujeito poético exorta os seus desejos e os seus impulsos a libertarem-se da «jaula», isto é, da contenção que ele lhe impõe? Como se justifica este desejo? O «eu» quer que os seus impulsos e desejos o controlem (ao contrário do que tem sucedido até aqui) e destruam a sua vida, que se norteia pelas regras racionais e sociais. Nesta estrofe derradeira, além da apóstrofe e da exclamação, predomina a personificação, visto que os desejos são representados como loucos exaltados e agressivos, dando conta da sua ferocidade e da ansiedade que têm em sair da sua prisão.

            Note-se, por último, que a composição poética constitui uma alegoria, visto que o «eu» e os seus desejos são retratados através de uma sucessão de símbolos e metáforas interligados que se materializam na imagem de um hospício (o «eu», o seu corpo) com os seus loucos (os seus impulsos e os seus desejos).


sábado, 24 de outubro de 2020

Análise de "Narciso"

          Este poema de José Régio alude ao conhecido mito de Narciso, filho de Cefísio, rei da Fócida, e da ninfa Liríope, que era filha de Oceano e de Tétis, sua esposa. Desde jovem, Narciso era tão formoso que todas as ninfas o amavam e desejavam, mas ele não se prendia a nenhuma. A ninfa Eco, filha do Ar e da Terra, que vivia nas margens do Rio Cefísio, foi uma das que o não conseguiu seduzir, por isso morreu de amor. Tirésias, o famoso adivinho, preveniu os familiares de Narciso de que este só viveria enquanto não contemplasse a sua própria imagem. De facto, um dia, quando regressava de uma caçada, sentou-se à beira de uma fonte para beber e se refrescar e viu a sua imagem refletida na água cristalina. A contemplação do próprio rosto fez com que se apaixonasse por si mesmo e acabou por morrer extasiado. Após a sua morte, foi metamorfoseado em flor, à qual foi dado o seu nome: narciso.
         Assim, José Régio utiliza o mito de Narciso para abordar a impossibilidade de possuir o seu alter ego, neste caso não uma imagem física, mas o outro «eu» que deseja ser. O espelho em que o sujeito poético se olha não é o espelho de água, mas o da sua interioridade, proveniente de um ato de introspeção: “Dentro de mim me quis eu ver.” (v. 1); “o meu próprio poço” (v. 2). A expressão “dobrado em dois” remete para o desdobramento do «eu», que ocorre quando o sujeito lírico contempla o reflexo da sua alma, que é descrita à semelhança do que sucede com um corpo (“terrível face e arcabouço”), que, no entanto, contrasta com o corpo do «eu», qualificado como «lânguido». Ou seja, um corpo aparentemente fraco e debilitado conserva em si uma interioridade que o faz tremer: “Tremer” (v. 1).
         Na segunda estrofe, o sujeito poético faz contrastar o seu aspeto físico, a sua beleza extraordinária (“Ó lindos olhos […] de moço” ‑ v. 7), com o seu retrato psicológico, associado ao sofrimento, ao silêncio, à solidão, à ansiedade, à angústia e à melancolia. Ou seja, estamos na presença da imagem do poeta maldito, caracterizado pelo génio desprezado (“silêncio esfíngico”), possuidor de uma extrema beleza, aliada a uma personalidade angustiada (“Numa fronte a suar melancolia”).
         Na terceira estrofe, esta imagem de poeta romântico é destacada pela força dos seus poemas, “requintados e selvagens”. Por outro lado, afinal constata-se que a imagem de poeta maldito não é real, antes produto da imaginação: “Assim me desejei nestas imagens” (v. 9). Isto significa que a descrição feita na segunda estrofe não corresponde ao real reflexo da interioridade do sujeito poético, mas o que ele desejava ser.
         No primeiro terceto, é enfatizada a ideia do desejo (“desejei”, “Desejo”), ênfase essa que culmina com a referência à cor vermelha, que representa a paixão e a carne. Contudo, o vermelho é, igualmente, a cor do desejo não satisfeito, do corpo que não é possuído, ideia que é associada à figura de Narciso e ao seu sofrimento por não se poder possuir a si mesmo. Quer isto dizer que o sujeito poético sofre também por não possuir a imagem a que aspirava, não uma imagem física, mas a de si interiormente, da sua alma. Se Narciso sofre por não se poder dividir em dois, o sujeito lírico sofre por não ser uno: “Que eu vivo à espera dessa noite estranha, / Noite de amor em que me goze e tenha, / … Lá no fundo do poço em que me espelho!”.
         No segundo terceto, o sujeito lírico afirma que espera a noite em que, finalmente, possa unir-se à imagem que espelha no fundo do poço, recorrendo a uma linguagem claramente erótica: “Noite de amor em que me goze e tenha”. O poema termina com uma exclamação prenhe de esperança, mas ao mesmo tempo irónica, pois está consciente de que a realização do seu desejo será impossível.
 
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