Português: 20/09/10

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

«O menino de sua mãe»

» Génese do poema

          O poema "O menino de sua mãe" viu a luz do dia através da revista Contemporânea, III Série, n.º 1, no ano de 1926, num período de grande criatividade do poeta. Segundo o próprio Pessoa, em confissão ao amigo Carlos Queiroz, sobrinho da sua única "namorada", Ophélia Queiroz, a inspiração para a escrita do texto surgiu-lhe após a observação, na parede de uma pensão onde jantou com um camarada, de uma litografia que representava um soldado morto na guerra.
          No entanto, o ensaísta João Gaspar Simões (Vida e Obra de Fernando Pessoa) associa a figura do soldado morto do poema ao próprio Fernando Pessoa, assumindo a interpenetração da vida e obra do poeta. De acordo com esta tese, o tema da infância enquanto idade perfeita e feliz, paraíso perdido e irrecuperável, relacionar-se-ia com os primeiros cinco anos de vida, marcados pela felicidade, amor, be-estar e protecção que a família lhe proporcionam: o conforto possível da casa espaçosa do Chiado nas traseiras do Teatro de S. Carlos; a presença do pai, um homem culto e atencioso; a atenção exclusiva e dedicada da mãe, uma mulher com índices e interesses culturais pouco habituais na época entre o género feminino (por exemplo, falava fluentemente francês e inglês); o convívio com duas velhas criadas e com a avó, não obstante os sinais inequívocos de senilidade que já patenteava.
          Todavia, este quadro idílico rapidamente se alterou. Com efeito, o seu pai e o seu irmão mais novo adoeceram e, em Julho de 1893, aquele acabou mesmo por falecer, o que fez com que Pessoa se mudasse para uma casa mais modesta, distante dos espaços que ele conhecia e amava. Entretanto, o falecimento do irmão mais novo fê-lo sentir novamente a devoção, o amor e o carinho maternos, mas esta situação revelou-se sol de pouca dira, visto que, em 1895, sua mãe constituiu uma nova família ao contrair matrimónio com João Miguel Rosa, facto que obrigou o poeta a acompanhá-la para Durban, na África do Sul, para onde se deslocou em 1896 em virtude de o segundo marido aí desempenhar as funções de cônsul de Portugal.



» Análise do poema

          Este poema é susceptível de uma dupla leitura: uma literal, que nos apresenta a imagem de um soldado morto na guerra e abandonado no campo de batalha e o dramatismo da vivência familiar, representada pela mãe, e outra metafórica.


     1. Tema:
- o tema da guerra e dos meninos injustamente roubados à vida / à idade ("Agora que idade tem?"), às mães, às amas, à infância;
- a nostalgia da infância irrenediavelmente perdida.

     2. Estrutura interna

          . 1.ª parte (est. 1-2) - Descrição do «cenário»:
- Espaço:
- planície ("plaino abandonado"): a imensidão, a solidão, o abandono;
- Tempo:
- o presente;
- "a morna brisa";
- Menino:
- morto ("De balas traspassado..."; "Jaz morto...") recentemente ("... e arrefece...", não obstante a brisa morna);
- abandonado, só, na imensidão da planície, no campo de batalha ("No plaino abandonado..." → hipálage: a característica do abandono é transposta do menino para a planície);
- a farda ensopada de sangue, que vai alastrando, o que confirma que a morte foi recente;
- "De braços estendidos", abandonados;
- "alvo", cor que simboliza a pureza, a inocência e a paz, o que configura um contraste com as ideias de guerra e de morte tratadas no texto;
- louro;
- exangue → palidez advinda da morte;
- o olhar parado, sem vida, fixo ("fita") nos "céus perdidos" ("céus" → o paraíso perdido da infância).
          Em suma, nesta primeira parte o sujeito lírico remete-nos para um «plaino», cenário de guerra, onde se encontra o corpo morto de um menino.

          No que diz respeito à linguagem e ao estilo, destaque para os seguintes recursos:
. o recurso ao presente do indicativo, tempo da descrição realista do «cenário» e da morte recente do menino;
. a adjectivação rica e abundante, que exprime a morte e o abandono do menino ("traspassado", "morto", "estendidos", "langue e cego" dupla adjectivação; "perdidos"), bem como a sua juventude e inocência ("alvo, louro, exangue" tripla adjectivação);
. as sensações visuais ("Raia-lhe a farda o sangue"; "alvo, louro, exangue", etc) e tácteis ("a morna brisa aquece", etc.);
. o hipérbato: "Raia-lhe a farda o sangue..." (a ordem habitual dos elementos da frase seria a seguinte: "O sangue raia-lhe a farda...");
. o contraste antitético entre a brisa morna e o corpo do menino que arrefece;
. o predomínio de frases de tipo declarativo, que se adequam ao tom descritivo das duas estrofes iniciais.


          . 2.ª parte (est- 3-5) - Discurso emotivo, judicativo, onde se destacam:
- a juventude do menino, traduzida pelas exclamações e pela repetição do adjectivo «jovem», que simultaneamente remete para a perplexidade / o espanto do sujeito lírico pela morte absurda de alguém tão jovem;
- a «ausência de idade»;
- o ser filho único;
- o amor, o carinho, a ternura de que era objecto por parte da mãe, presente na expressão com que ela o chamava e que funciona como título do poema ("O menino de sua mãe.");
- a «cigarreira breve» (hipálage), prenda da mãe:
. símbolo do amor e carinho maternos;
. símbolo da efemeridade da vida do menino (nem teve tempo de a usar, daí que ela se encontre «inteira e boa» - dupla adjectivação -, em contraste com ele, morto - antítese);
- o lenço bordado, oferecido pela "criada / Velha que o trouxe ao colo":
. símbolo do carinho e da protecção;
. símbolo da pureza e inocência, representadas pela «brancura embainhada» (hipálage);
. símbolo da brevidade da vida.


          . 3.ª parte (6.ª estrofe) - O espaço familiar:
- espaço: a casa, o ambiente familiar, outrora sinónimo de protecção, refúgio, e agora de saudade e esperança;
- a distância: «Lá longe»;
- a prece (inútil: «em vão»):
. a saudade do menino;
. a esperança no seu regresso rápido e são / saudável;
. a mãe, símbolo de amor, carinho, saudade e esperança;
. o desfasamento entre a realidade (o menino morto) e as expectativas presentes na prece da mãe e da criada → o dramatismo, o carácter trágico daquela morte;
. a causa da tragédia - o desejo de Impérios, presente no discurso parentético do verso 28 - e a intemporalidade da mensagem do poema, evidenciada pela utilização do presente do indicativo;
. a intensificação do realismo, assente no recurso à gradação ("Jaz morto e arrefece." - v. 5; "Jaz morto, e apodrece..." - v. 29), que traduz a passagem do tempo, manifesta no apodrecimento do cadáver, o resultado final da guerra.


     3. Estrutura narrativa do poema

          » Narrador: o sujeito lírico (subjectivo, porque emite juízos de valor sobre o que «narra»).

          » Acção: a morte de um menino na guerra.

          » Personagens: o menino, a mãe, a criada...

          » Espaço:
               - o plaino abandonado, o campo de batalha, símbolo da morte;
               - lá longe, em casa: o dramatismo presente nas preces vãs para que volte cedo e bem.

          » Tempo: presente (o da morte e da prece) e passado (o carinho, o amor, a protecção caseiras).



     4. Estrutura formal

          Esta composição poética é constituída por seis quintilhas de versos hexassílabos (seis sílabas métricas: No / plai / no a/ ban / do / na ) e rima cruzada, emparelhada e interpolada, de acordo com o seguinte esquema rimático: a b a a b.



» Conclusão

          Não obstante as leituras biográficas deste poema a que se aludiu no início do «post», a verdade é que a sua leitura nos remete para o drama que afligiu o poeta e que encontramos quer no ortónimo quer nos heterónimos: a nostalgia da infância, símbolo da inocência, da inconsciência, da felicidade (inconsciente) e da alegria, em suma, uma idade perfeita - um paraíso - (neste poema, simbolizada pela cigarreira e pelo lenço, representações do passado vivido junto de quem amava e de quem o amava), mas longínqua e irrecuperável, o que gera nostalgia, desesperança, para mais em contraste com a consciência aguda que lhe provoca dor, bem como a sensação de desconhecimento de si mesmo, de perda da identidade.
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