Português: 28/09/21

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Sermão de Santo António aos Peixes - Introdução, contextualização e retórica


Análise da cantiga "Levantou-s'a velida"

 
Assunto: a donzela levanta-se ao romper da manhã e vai lavar camisas (brancas) a uma nascente. Quando aí chega, o vento começa a soprar e faz voar as camisas, o que deixa a jovem zangada.
 
 
Tema:
a. sentido literal: o aborrecimento da donzela;
b. metafórico: a descrição de uma primeira relação sexual.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª e 2.ª coblas) – Introdução:

- localização espacial: alto mar/rio;

- localização temporal: a madrugada;

- sujeito poético: a donzela;

- ação: lavar camisas.

 
2.ª parte (3.ª e 4.ª coblas) – Desenvolvimento: o vento leva as camisas à donzela.
 
3.ª parte (5.ª e 6.ª coblas) – Desenlace: reação irada da donzela.
 
 
Dupla leitura do poema
 
            De acordo com uma leitura superficial, esta cantiga retrata uma simples situação rural: uma jovem rapariga levanta-se de madrugada e vai lavar camisas que o vento lhe leva e ela, zangada, segue-o.
            Optando por uma outra leitura, de cariz metafórico, o poema descreve uma primeira experiência sexual, marcada por um erotismo sugerido: acordado pela manhã, um casal de namorados, que terão passado a noite juntos, irrita-se com o nascer do dia, que obrigará à sua separação. Neste contexto, a cantiga ilustra a donzela como alguém envolvido ativamente na relação amorosa, já que se submeteu ao lugar alto da nascente de água – onde se encontrava à mercê do vento – colocando-se à prova, oscilando entre o desejo e o receio, algo característico da primeira relação sexual.
            Deste modo, pode compreender-se a ira da jovem ao ver o vento levar-lhe as camisas. Ao perdê-las, perde também a sua virgindade. Por outro lado, de acordo com Hélder Macedo, estamos na presença de uma relação em que a iniciação erótica é «implicitamente rejeitada ao nível da sua vontade, mas simbolicamente requerida pela sua condição biológica e social de núbil».
 
 
Elementos narrativos da cantiga

▪ Personagens: a donzela e o amigo (simbolizado pelo vento).

▪ Espaço: o rio.

▪ Tempo: a madrugada – presente.

▪ Ação: a ida da donzela ao rio para lavar camisas.

 
 
Estrutura formal
• Coblas: seis quintilhas.
• Rima:
- cruzada;
- toante (“velida”/”camisas”);
- pobre (“louçana”/”alva”) e rica (“velida”/”camisas”);
- grave.
• Métrica: versos de 2, 4 e 6 sílabas.
• Ritmo rápido: transmite a forma lesta como a donzela se levanta e encaminha para o rio, a passagem do vento, que lhe leva as camisas, e a imediata ira da jovem.
• Refrão: é ambíguo, devido à presença da palavra «alva».
 
 
Recursos expressivos
• Assonância: repetição insistente das vogais a e i.
• Aliterações:
- em v: sugere o som do vento (= amigo a sua presença constante);
- em l.
• Palavra «alva»:
- enquanto nome: significa «madrugada», isto é, indicia que a donzela se levantou de madrugada;
- enquanto adjetivo significa «branca».
. moça de pele branca;
. simbolismo: o branco é a cor simbólica da pureza, inocência e virgindade, ideia corroborada pelo ato de lavar (tornar limpo algo sujo).
Assim sendo, o vocábulo adquire vários sentidos:
. o amanhecer;
. a água onde lava a roupa;
. a donzela (ainda) pura;
. a necessidade de se «manter pura»;
. ou a necessidade de se «tornar pura», se a intimidade for «manchada».
Como é usada simultaneamente em vários sentidos, esta palavra estabelece uma identidade entre a moça – e por extensão metonímica – a própria água onde ela lava a roupa, para, implicitamente, também a tornar ou manter «alva» (= pura).
• Nomes:
- camisas:
. de linho ou de seda, vestiam-se sobre a pele, quer pelo homem quer pela mulher, correspondendo à atual roupa interior;
. simbolismo: a intimidade da donzela:
- vento:
. traduz o ambiente pouco ameno que, pela agressividade, contrasta com a delicadeza da donzela;
. simbolismo:
- as preocupações e as inquietações que o amigo provoca;
- o tumulto interior da jovem;
- o sopro fálico que pressupõe a relação sexual e a fecundidade a que se vê exposta – as camisas representam o contacto com o corpo nu, ao passo que o vento que as leva, a presença masculina reforçada pela aproximação metonímica entre o facto de transportar o pólen e o papel masculino na relação sexual.
• Expressão «lavar camisas»: como o banho nupcial era um ritual simbólico por parte da noiva, lavar camisas permite associar a água à sensualidade feminina.
• Dois pontos: introduzem um momento de suspense, anterior ao segundo verso do refrão.
• Anáfora: “Levantou-se…”/”levantou-se…”.
• Conjunção coordenativa copulativa «e»: serve de elo de ligação entre a 1.ª e a 2.ª partes.
• Metáforas: giram em torno das conotações que as palavras «alva» e «vento» possuem.
 
 
Classificação
 
1. Cantiga de amigo (?): em termos estritamente formais, o poema não poderá ser classificado exatamente como uma cantiga de amigo, dado que a voz feminina está ausente. Contudo, quer a protagonista, quer o cenário em que se movimenta são claramente característicos da cantiga de amigo, pelo que é neste género que é inserida.
 
1.1. Temática: alva ou alvorada (faz referência à madrugada/ ao amanhecer).
 
1.2. Formal:
- cantiga de refrão;
- cantiga de paralelismo perfeito e «leixa-pren».

Apresentação da Ilíada

 
Autor: Homero.

Data de escrita: cerca de 750 a 650 a.C.

Género: poema épico.

Narrador: omnisciente, na terceira pessoa.

Língua original: grego antigo.

Homero e os primórdios da Antiguidade Clássica

             Homero viveu numa época de profundas transformações na história da Grécia, tendo em conta que o poeta terá vivido algures entre 725 e 625 a.C., o que significa que coincidiu com o início do chamado período arcaico, o período da Antiguidade Clássica, cujo princípio foi associado ao séc. XIII a.C., em paralelo com o desenvolvimento das cidades-estado gregas, com a expansão das rotas comerciais gregas e com o surgimento do alfabeto grego simplificado. Isto significa que o bardo grego viveu e compôs as suas obras numa época em que a civilização grega antiga estava a começar.

            Os historiadores dividem a história da Grécia pré-clássica em dois períodos: a Idade do Bronze e a Idade do Ferro, marcando as principais transformações culturais e tecnológicas, relacionadas com as mudanças ocorridas em decorrência dos metais usados pelas sociedades. Deste modo, a expressão «Idade do Bronze» designa uma época em que o bronze era o principal metal a ser usado, e os povos que povoaram a Grécia nesses tempos eram conhecidas como micénicos. A civilização micénica entrou em decadência por alturas do ano 1200 a.C., deixando para a eternidade os primeiros escritos gregos, que foram compostos num script conhecido como Linear B, que nos permite concluir que já no século XV a.C. os Micénicos se serviam de um silabário para fazer os seus registos, silabário esse que deriva do Linear A, ainda não decifrado, que usavam os Minoicos. Precisamente porque a língua empregada no Linear B era já grego, foi possível concluir que os Micénicos eram gregos. No entanto, este complicado processo de escrita (do Linear B já se encontraram mais de 1000 tabuinhas), que usa um sinal diferente para cada sílaba (e não de um para cada som, como o alfabeto) desapareceu por completo (como única reminiscência, embora duvidosa, poderá apontar-se um passo do Canto VI da Ilíada, na história de Belerofonte, quando o rei Proitos, para se vingar daquele jovem, injustamente caluniado, o manda a seu sogro, rei da Lícia, com umas tabuinhas em que estavam traçados sinais ominosos, que deviam provocar a sua morte – se esses sinais eram convencionais ou constituíam já um processo de escrita, não se consegue determinar pelo contexto. O verso 163 do referido canto refere que o capitão de um navio usada no comércio marítimo «lembra a carga», expressão que pode significar que fixa a sua importância ou que a anota por escrito. Este último costume era uma prática corrente entre os Micénicos.) da memória dos homens com a invasão dórica, em 1100 a.C., sendo resgatado, milhares de anos depois, pelos arqueólogos.

            A recuperação do colapso da civilização micénica e a sua reorganização conduziram os Gregos à Idade do Ferro, quando este metal substitutivo do bronze como principal material industrial. Apesar dos avanços metalúrgicos, este novo período constituiu um obscurecimento. Por exemplo, enquanto na Idade do Bronze floresceram dois sistemas de escrita distintos, a do Ferro foi predominantemente analfabeta. Por outro lado, a arte da representação, que se tinha desenvolvido na era anterior, cessou. Por último, se os acontecimentos retratados nos Poemas Homéricos tiveram lugar na Idade do Bronze, a do Ferro foi caracterizada relativamente por poucos eventos de importância histórica.

            Por seu turno, a Antiguidade Clássica (isto é, o período Arcaico) que se seguiu representou uma fase de renovação e florescimento cultural, constituindo as obras atribuídas a Homero parte importante do início desse período. De facto, os Poemas Homéricos iniciam a Antiguidade Clássica ao olharem para a Idade de Bronze em busca de inspiração. O poeta, à semelhança de outros seus contemporâneos, obteve material para os seus textos na Idade do Bronze, um período em que se imaginava que os heróis eram maiores, mais fortes e mais «divinos» do que qualquer outro indivíduo na época. Porém, ao socorrer-se desses eventos históricos, Homero não se limitou a narrar históricas fantásticas de deuses e guerreiros semelhantes a divindades, antes ajudou a moldar o universo moral da cultura grega presente e futura. Dito de outra forma, o uso da história por Homero, embora ficcional, ajudou a criar a civilização e a cultura gregas que moldaram a Antiguidade Clássica.

A influência de Homero

             A Grécia clássica encarava os Poemas Homéricos como relatos históricos de acontecimentos vividos por heróis que serviam como paradigma de honra e cuja influência perdurou para além do Império Romano.

            Os estudiosos gregos começaram a escrever sobre Homero a partir do final do século VI a.C. e a sua influência sobreviveu pelos séculos seguintes. Por exemplo, o poeta latino Virgílio, mais de 500 anos depois, na sua Eneida, emulou a métrica do poeta grego, os símiles épicos, a estrutura da ação e muitos outros elementos característicos do género épico. Mais de um milénio depois, o poeta latino Dante inclui personagens de ambos os Poemas Homéricos na sua Divina Comédia.

            As obras de Homero não são, contudo, os únicos textos épicos antigos de tradição oral. Por exemplo, o poeta indiano Vyasa é o autor provável de Mahabharata, surgido cerca de 400 a.C., e Valmiki, também de origem hindu, produziu Ramanaya, por volta do ano 500 a.C. Ambas as produções contêm tropos heroicos e metáforas de guerra semelhantes.

Técnica poética da Ilíada

             A estrutura dos poemas épicos de Homero provém da longa tradição da poesia oral, não significando isto, porém, que o poema tenha sido memorizado palavra por palavra. Em vez disso, os poetas improvisavam a partir de uma estrutura narrativa básica, fazendo uso de fórmulas que podiam ser combinadas de várias formas e de modo criativo. Estas repetições permitiam aos ouvintes o rápido reconhecimento dos elementos dos textos, compreendendo melhor a história.

            Por outro lado, os poemas eram compostos geralmente em versos hexâmetros, sendo cada verso dividido em seis secções, também chamadas “pés”. Cada pé podia ser constituído por uma sílaba longa seguida por duas curtas (dáctilo), ou por duas longas (espondeu).

A guerra de Troia

             Durante séculos, muitos estudiosos acreditavam que a Guerra de Troia e os seus intervenientes eram uma criação da imaginação grega. No entanto, no final do século XIX, um arqueólogo chamado Heinrich Schliemann declarou que tinha descoberto os vestígios de Troia. As ruínas que ele descobriu situam-se a algumas dezenas de quilómetros da costa do mar Egeu, no noroeste da Turquia, um local que se encaixa nas descrições geográficas que Homero fez da cidade de Troia na Ilíada. Das várias camadas encontradas no local, uma delas, correspondendo aproximadamente ao ponto na história em que teria ocorrido a queda de Troia, mostra evidências de incêndio e destruição consistentes com a descrição da Ilíada. Embora a maioria dos estudiosos aceite a cidade descoberta por Schliemann com o local da antiga cidade de Troia, muitos outros mantêm-se céticos sobre se a guerra de Troia que serve de pano de fundo ao poema épico de Homero realmente aconteceu. No entanto, muitos estudiosos admitem a existência de algum fundo de verdade na história contada na Ilíada.

            Acredita-se que a Guerra de Troia terá tido lugar no século XIII a.C. O interesse por ela na época de Homero, cerca de 400 anos depois. As cidades-estado gregas eram muito independentes e estavam perpetuamente em guerra umas com as outras, no entanto o poeta descreve o exército aqueu como originário de mais de 150 locais diferentes de toda a Grécia continental e do Peloponeso. Certas evidências arqueológicas encontradas na antiga cidade que se acredita ser Troia apoiam a sua destruição na guerra por volta de 1250 a.C.

            Crê-se que a cidade de Troia se localizaria no noroeste da Ásia Menor, perto da foz do Helesponto, atualmente Dardanelos, na atual Turquia, o que fazia com que os troianos vivessem separados da Grécia pelo Mar Egeu. No entanto, a cultura grega disseminou-se por grande parte do oeste da Ásia Menor na época de Homero, que os descreve como adoradores dos mesmos deuses e vivendo de acordo com os mesmos valores dos gregos contra os quais lutavam.

            A origem da Guerra de Troia radica no rapto de Helena por parte do príncipe troiano Páris, contudo os estudiosos especulam que o conflito teria mais a ver com uma disputa sobre rotas comerciais e a localização estratégia da cidade no Helesponto.

A questão da autoria dos Poemas Homéricos

             A questão homérica designa o problema da autoria dos Poemas Homéricos.

            Se os gregos antigos acreditavam piamente na existência de Homero (a mais antiga referência ao poeta foi encontrada num fragmento de Calino, do século VII a.C., que o dá como autor de uma Tebaida), no entanto, já na época alexandrina houve quem afirmasse que a Ilíada tinha um autor e a Odisseia outro.

            As dificuldades de estabelecimento da autoria das obras são muitas. A primeira tem a ver com a linguagem, onde há formas de diversas épocas e elementos de quatro dialetos diferentes (iónico, eólico, arcado-cipriota e ático). Outra questão prende-se com a arqueologia, não havendo concordância entre estratos linguísticos e estratos arqueológicos. Um exemplo disto tema ver com o elmo de presas de javali, ornamento dos guerreiros micénicos, que aparece no Canto X da Ilíada, mais conhecido como Doloneia, que linguisticamente é dos mais recentes.

            A data da composição dos textos oferece igualmente grandes dificuldades, visto que os poemas decorrem na época micénica, com heróis micénicos e ignoram a invasão dórica (a única referência aos Dórios é a da Odisseia, num passo bastante suspeito; em relação aos heróis, nomes como Aias, Akhilleus, Glaukos, Hektor, eram frequentes entre os Micénicos). Daqui o ter-se-lhes atribuído, inicialmente, uma data muito recuada, ideia que tem vindo a ser modificada graças a investigações recentes.

            Relativamente à questão literária, o estudioso norte-americano Milman Parry, partindo da observação direta dos processos de composição de bardos da antiga Jugoslávia, concluiu que os Poemas Homéricos assentavam numa técnica de improvisação oral, que explicaria as repetições e pequenas incongruências da narrativa: as obras repetem frequentemente epítetos e até versos inteiros, porque eram obra de improvisação oral, que necessitam de ter pontos de apoio, frases armazenadas, que deem tempo de pensar no verso seguinte, enquanto se vai cantando o anterior. Assim, por exemplo, quando o poeta quer dizer que o dia nasceu, tem já preparado um verso como este: [p. 52] [«Quando surgiu a Aurora de dedos róseos, filha da manhã»]. Se quiser introduzir em discurso direto a resposta de um herói, pode dizer o seguinte: [p. 52 – 2.ª] [«Em resposta disse-lhe o poderoso Agamémnon»]. Se o interlocutor for Aquiles, basta substituir o segundo hemistíquio: [p. 53] [«Em resposta disse-lhe Aquiles de pés velozes»]. Ou pode conservar este segundo hemistíquio e variar o primeiro: [p. 53 – 2.ª] [«Franzindo o sobrolho, disse-lhe Aquiles de pés velozes»].

            Por outro lado, os nomes dos heróis com os seus atributos ocupam metade do verso (do começo até à cesura, ou desta até ao fim) ou mesmo um inteiro, como é o caso deste: [p. 53 – 3.ª] [«o herói Atrida, Agamémnon de vasto poder»]. Estes epítetos ajudam a caracterizar o herói e a destacar uma qualidade sua, que naquele momento tem relevância especial. Por exemplo, o verso 12 do Canto I da Ilíada acabado de transcrever, evoca o poder do Rei de Micenas, na ocasião em que vai deixar explodir a sua cólera sobre a assembleia. Os epítetos de Aquiles acentuam a sua superioridade física. E assim sucessivamente.

            Outro aspeto prende-se com a historicidade da Ilíada. O estudioso alemão Schliemann fez uma série de escavações na colina de Hissarlik (na atual Turquia) e encontrou sete cidades sobrepostas, a que Dörpfeld, seu adjunto, acrescentou duas. Inicialmente, supôs que a mais antiga seria a homérica, mas acabaram por se inclinar mais para a Troia VI, onde encontraram restos de cerâmica idênticos aos de Micenas e Tirinto.

            O investigador Blegen demonstrou que Troia VI era uma cidade rica, que sucumbiu após um terramoto, seguindo-se-lhe, sem solução de continuidade nem de cultura, Troia VIIa, que termina num violento incêndio. A Troia VIII apresenta solução de cultura, enquanto a IX é muito tardia. A queda de Troia VIIa teria ocorrido depois dos meados do século XIII, talvez cerca de 1230 a.C., o que distaria poucos decénios da data tradicional da guerra de Troia (1184, segundo Eratóstenes).

            Deste modo, é lícito concluir que a Ilíada funde a opulência da Troia VI com a destruição da Troia VIIa. Com aquela tinha-se iniciado uma civilização diferente da anterior, introduzindo o cavalo (note-se que os troianos constituem o único povo que Homero caracteriza como «domadores de cavalos»), por exemplo, civilização essa que seria continuada pela VIIa.

            A decifração de textos hititas e dados arqueológicos vieram comprovar estas hipóteses. Por exemplo, os textos hititas contêm referências ao ataque dos Ahhiyawa, posteriormente identificados com os Aqueus, a Millawanda, provavelmente Mileto, a Wilusa e Tarwisa, que seriam, respetivamente, Ílion e Troia (note-se que a Ilíada não apresenta uma distinção entre Troia e Ílion, supondo o estudioso alemão Bergen que a primeira designaria primitivamente a região e a segunda a cidade). Este acontecimento teria tido lugar no século XIII a.C., coincidindo com a época do grande poderio de Micenas e anterior à queda de Pilos.

            Estas teses não são, todavia, unânimes. Assim, há estudiosos que destacam a reconstituição diferente que se fez nos últimos tempos da geografia política do império hitita e a sua cronologia. Outros contrariam a identificação dos Ahhiyawa com os Aqueus, afirmando inclusive que nem sequer pertenceriam à zona micénica, mas antes à Trácia; além disso, o seu tempo não seria o século XIII a.C., mas os começos do império hitita. Por outro lado, a vinda dos Povos do Mar, mencionada em textos egípcios, não teria constituído um movimento simultâneo, no qual se inscreveria a guerra de Troia, mas uma sucessão de destruições que teriam ocorrido ao longo de vários anos. O próprio fundamento de alguns epítetos de Troia e dos troianos é igualmente negado, em detrimento da tese que os considera como simples remodelação tardia, à semelhança do que sucedeu com os epítetos dos Aqueus.

            A presença de elementos micénicos nos Poemas Homéricos não é igualmente consensual. Assim, durante muito tempo considerou-se serem micénicos as personagens e os seus epítetos, a riqueza de Micenas, a escassez do ferro, a noção de que ´'αναξ (soberano) é mais do que Βασιλεúς (rei), o fausto  dos funerais de Pátroclo (embora ele seja cremado, e não inumado, como era tradição micénica), a arquitetura dos palácios, nomeadamente a presença do mégaron e objetos como o elmo de presas de javali, a taça de Nestor, a espada cravejada de prata de Heitor, a técnica de incrustações e o escudo de Ájax. Todavia, alguns achados arqueológicos dos finais do século XX põem em dúvida esta noção. Por exemplo, foi encontrado na Heron de Lefkandi, situado na costa ocidental da Eubeia, um túmulo que continha as cinzas de um guerreiro, envoltas num manto, e, perto delas, o esqueleto da sua consorte, adornada com joias de ouro, e os cavalos – o que evidencia a coexistência do ritual da inumação com o da cremação e a riqueza do possuidor. Relativamente à arquitetura, as escavações de Zagora, há autores que defendem que os traços gerais dos palácios da Odisseia são, ao contrário do esperado, da Idade do Ferro, embora certos pormenores, como a existência de corredores e de canalizações, sejam micénicas.

            Nenhuma destas interpretações, porém, é decisiva ou inquestionável. O aparecimento lado a lado de práticas e objetos que se supunham pertencer a períodos distintos, como testemunham os achados de Lefkandi; a presença de escudos em 8 a par com os redondos, em pinturas de vasos; o modo como Hefestos trabalhou o escudo de Aquiles, forjando-o como se fosse de ferro, numa época do proto-geométrico ou geométrico, mas fazendo-lhe incrustações de ouro, prata e bronze, à maneira micénica, devem pôr-nos de sobreaviso sobre a interpretação histórica de uma obra que é essencialmente literária. No entanto, as teses que procuram explicar a presença de figuras ou objetos que são muitos séculos anteriores aos Poemas Homéricos não são muito convincentes. Micenas deixou de ser muito rica, e só a tradição oral contínua podia preservar essa memória, bem como os nomes de muitas cidades menores incluídas no Catálogo das Naus do Canto II da Ilíada.

 
PEREIRA, Maria Helena da Rocha, Estudos da História da Cultura Clássica, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.
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