Tenho sonhos cruéis, n’alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente…
Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!...
Porque a dor, esta falta d’harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu d’agora,
Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.
Nas duas quadras, o sujeito poético
descreve o seu drama existencial, o seu percurso de vida (passado, presente e
futuro), enquanto nos dois tercetos amplia esse sentimento ao descrever a dor
como uma falta de harmonia, embora necessária aos corações humanos,
demonstrando que o seu sofrimento é recorrente no percurso de outras vidas.
O sujeito poético é um ser sofrido,
consumido por uma dor existencial, que não é motivada por nenhuma razão
palpável, como o amor não correspondido, a perda ou a morte.
Na primeira quadra, o «eu» descreve
a sua angústia em relação ao caminho que deve percorrer e declara-se um
sonhador, embora viva um momento de dor e medo, do qual, apesar de tudo, sente
saudades. A rima entre o adjetivo «doente» e o nome «presente» contribui para a
construção da ideia de que o presente do «eu», embora seja passível de saudade,
é um momento de sofrimento, no qual a sua alma se encontra doente, assolada por
essa dor. No que diz respeito à sua trajetória, o sujeito poético afirma que
tem sonhos cruéis que mantém na sua alma. Por outro lado, sente um receio que o
faz caminhar com medo pelo estreito caminho que o levará ao futuro. Ao mesmo
tempo em que há o medo, sente saudades do presente, no sentido de que o caminho
que o levará ao futuro o faz sentir saudades do presente, que logo se
transformará em passado, assim que o caminho for percorrido. Por outro lado, a
rima entre o adjetivo «prematuro» e o nome «futuro» mostram que a angústia do
sujeito lírico existe em todos os momentos, que o medo é antecipado, incluindo
o que se relaciona com o futuro, o incerto.
Na segunda quadra, a rima entre a
forma verbal «procuro» e o adjetivo «escuro» sugere que, embora o «eu» procure
libertar-se da dor que sente, a escuridão e o sofrimento constituem a sua
resposta. Mais uma vez afirma que sente saudades do presente e da dor que o
caracteriza, da qual se procura afastar, porém em vão. Essa dor agrava-se com o
anoitecer (“ao desmaiar sobre o poente” – v. 7). O mesmo véu que cobre a noite
cobre o seu coração e torna-o sombrio, tomado pela dor, pelos medos e pelas
incertezas. A metáfora “desmaiar sobre poente” representa o sono, o momento de
adormecer. Além do caminho que é a vida, há outros caminhos: o que transforma
dia em noite, sol em escuridão.
No primeiro terceto, o sujeito
poético compara a dor à falta de harmonia, a qual se pode entender como um
desconcerto, uma inadaptação ao mundo, à sociedade e a si mesmo. Por outro
lado, a dor é a luz desregrada que ilumina as almas, a luz que ora é forte, ora
é fraca, mas sem a qual não é possível sobreviver, como se comprova no segundo
terceto: “Sem ela o coração é quase nada: / Um sol onde expirasse a madrugada,
/ Porque é só madrugada quando chora.” (vv. 12-14). Estes versos significam
que, sem essa luz e consequentemente a dor, que gera a luz, o coração é quase
nada. A rima entre «agora» e «chora» evidenciam o sofrimento que caracteriza o
«eu» no presente. A escuridão e a madrugada constituem símbolos de solidão e
dor.