Português: 27/09/12

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Poetas-paranoicos

     Alguns rapazes, com muita mocidade e muito bom humor, publicaram, há dias, uma revista literária em Lisboa. Essa revista tinha apenas de notável a extravagância e a incoerência de algumas, senão de todas as suas composições. Como a recebeu a imprensa diária? Com o silêncio que merecia? Com as duas linhas indulgentes e discretas que é de uso consagrar às singularidades literárias de todos os moços? Não. A imprensa recebeu essa revista com artigos de duas colunas, - na primeira página. A imprensa fez a essa revista um tão extraordinário reclame, que a primeira edição esgotou-se e já se está a imprimir a segunda. Ora semelhante atitude está longe de ser inofensiva ou indiferente. Em primeiro lugar, consagra uma injustiça fundamental; em segundo lugar, favorece e prepara uma seleção invertida. Eu bem sei que o reclame a certas obras é às vezes feito à custa da veemente suspeita de alienação mental que pesa sobre os seus autores. Mas n'este caso, como em outros muitos, é justo confessar que os loucos não são precisamente os poetas, mais ou menos extravagantes, que querem ser lidos, discutidos e comprados; quem não tem juízo, é quem os lê, quem os discute e e quem os compra.


Dantas, Júlio, "Poetas-paranoicos", in Ilustração Portuguesa

"Orpheu" e o Primeiro Modernismo

     O primeiro número de Orpheu, publicado em fins de março de 1915, foi largamente noticiado na imprensa, servindo de saboroso tema aos humoristas e sendo alvo das troças do senso comum. "Maluqueira literária", "Os poetas do Orpheu e os alienistas" e "Orpheu dos Infernos" eram títulos que encabeçavam os artigos - dezenas delas - publicados na capital e na província. "Somos o assunto do dia em Lisboa", escreveu Pessoa ao amigo e colaborador Cortes-Rodrigues, então nos Açores, donde era originário. "O escândalo é enorme. Somos apontados na rua, e toda a gente - mesmo extraliterária - fala no Orpheu." Deste modo, a revista, comprada para ler ou para escarnecer, esgotou a sua tiragem de 450 exemplares.
     O segundo número saiu três meses depois, de acordo com o plano editorial anunciado, agora com Pessoa e Sá-Carneiro como codiretores. Não houve uma cisão entre ele e Montalvão, que colaborou no novo número com um poema, Narciso, dedicado a Pessoa, mas queriam garantir a orientação "intersecionista" da revista tão longamente planeada. A tiragem subiu para 600 e esgotou de novo, pois a imprensa voltou a destacar, chistosamente, os doidos "paúlicos", que facilitaram o trabalho aos jornalistas fornecendo-lhes provas da sua maluquice literária e até extraliterária. Com efeito, o número dois abria com poemas inéditos de Ângelo de Lima (1872 - 1921), então internado em Rilhafoles, onde viria a morrer seis anos mais tarde. (...)
     O Orpheu 2, à semelhança do número de estreia, contou com uma colaboração brasileira, de outro amigo de Montalvor. Em vez de uma ilustração na capa (a do primeiro número tinha um desenho de José Pacheco), optaram por inserir quatro hors-textes com "trabalhos futuristas" de Santa-Rita. Entre os restantes colaboradores do Orpheu incluíam-se, no primeiro número, Alfredo Guimarães e Almada Negreiros e, nos dois números, Cortes-Rodrigues e Sá-Carneiro. Mais de um terço de cada número era preenchido por obras - obras-primas, aliás - de Pessoa: O marinheiro, os seis poemas "intersecionistas" da Chuva Oblíqua, Opiário, Ode Triunfal e Ode Marítima. As três últimas foram assinadas por Álvaro de Campos, o heterónimo mais exuberante de Pessoa e o primeiro a ser revelado publicamente.
     (...)
     Pessoa, entretanto, procurava levar o projeto de Orpheu por diante. Em setembro de 1916, anuncia numa carta a Cortes-Rodrigues que Orpheu 3 "deve sair por fins do mês presente", com colaborações que incluem "dois poemas ingleses meus, muito indecentes", versos de Pessanha, poemas inéditos de Sá-Carneiro, A cena do Ódio de Almada Negreiros e quatro hors-textes "do mais célebre pintor avançado português - Amadeu de Souza-Cardoso". A revista não sai nem naquele mês nem nos meses seguintes, mas em julho de 1917, e com um conteúdo algo diferente, Orpheu 3 fica quase totalmente composto numa tipografia, faltando-lhe apenas a colaboração de Álvaro de Campos. O projeto entrará então, misteriosamente, numa dormência prolongada.

Richard Zenith, Fotobiografias Século XX, Fernando Pessoa

«Moon River», Andy Williams


1927 - 2012

Novas tendências artísticas modernistas

     Um grupo de poetas  e literatos com afinidades muito especiais começou a definir-se em 1912: Pessoa, Mário de Sá-Carneiro (1890 - 1916), Luís da Silva Ramos (1891 - 1947) (condiscípulo de Sá-Carneiro no liceu e posteriormente conhecido como Luís de Montalvor), Armando Cortes-Rodrigues (1891 - 1971) e António Cobeira (1892 - 1959) (colegas do curso de Letras depois de Pessoa o ter abandonado), Alfredo Pedro Guisado (1891 - 1975) (filho do proprietário do restaurante Irmãos Unidos, um dos sítios onde os jovens se juntavam), Mário Beirão (1890 - 1965) e o ainda muito jovem António Ferro (1895 - 1956). Não é que formassem uma tertúlia propriamente dita, mas sentiam - no meio dos muitos outros habitués dos cafés - uma afinidade de gostos e um comum desejo de renovar e internacionalizar as letras portuguesas, a começar pelas suas próprias produções literárias.
     A Águia, revista saudosista ligada ao grupo Renascença Portuguesa, representava, para os jovens o que de mais novo e interessante havia em Portugal. Pessoa, porém, depressa superou a estética da "nova poesia portuguesa", tão longamente analisada e elogiada nos artigos por si publicados em A Águia, nos quais citava versos de Teixeira de Pascoaes e Beirão como modelos de "subtileza e complexidade ideativas" graças à sua maneira analítica de "desdobrar uma sensação em outras" e à sua feição espiritual de "encontrar em tudo um além".
     (...)
     [Pessoa] Chegou a definir o paulismo como "o culto da artificialidade", e preteriu-o em favor do "intersecionismo", que pretendia ser mais construtivista, uma espécie de cubismo aplicado à literatura - se bem que Pessoa, nas suas teorizações, imaginasse o novo "ismo" aplicado a todas as artes. À semelhança do movimento seu precursor, o intersecionismo (escreveu ele numa carta assinada por Álvaro de Campos em 4 de junho de 1915 e dirigida ao Diário de Notícias, embora provavelmente não enviada) caracterizava-se por uma "subjetividade excessiva" e um "exagero da atitude estática", mas procurava ser mais incisivo, justapondo, de forma bem nítida, diversos planos ou dimensões em simultâneo.
     Empenhados nestes esforços de inovação, Pessoa e os seus discípulos - pois ele, embora reservado por natureza, era o mestre incontestável que guiava os outros - estavam sozinhos, sem terem onde se inserir no meio literário português. Tornava-se urgente criar uma revista que lhe desse voz. A ideia nasceu, inevitavelmente, de um projeto de Pessoa. No início de 1913, ou talvez ainda em 1912, Pessoa elaborou planos para uma revista mensal intitulada Lusitânia, que se debruçaria principalmente sobre os problemas políticos que a jovem república enfrentava e o lugar por ela ocupado na cena internacional.
     (...)
     Se Pessoa, sem sair de Lisboa, se conseguia manter a par das últimas tendências nas artes e letras, e em particular das correntes vanguardistas, era em parte graças às viagens de alguns camaradas desse grupo. Em outubro de 1912, Sá-Carneiro fora para Paris, dando início a uma animada correspondência literária com Pessoa, e no final do mesmo ano Montalvor partiu para o Rio de Janeiro, a fim de trabalhar como secretário de Bernardino Machado, nomeado embaixador de Portugal.
     Em Paris, Sá-Carneiro convivia com Santa-Rita Pintor (1889 - 1918), um jovem artista português cheio de ideias e audácia mas de valor artístico controverso (a seu pedido, a família destruiu toda a sua obra quando morreu, em 1918). Em todo o caso, Santa-Rita conseguira impor-se ao ponto de Marinetti, que então vivia na capital francesa, o ter autorizado a traduzir e publicar manifestos futuristas em Portugal. Sá-Carneiro regressa a Lisboa em junho de 1913, volta para Paris um ano depois e regressa novamente no outono de 1914, altura em que a guerra também trouxe de volta Santa-Rita e o seu amigo Raul Leal, que, como ele, conhecera os futuristas. Os três estavam muito ao corrente das novidades artísticas (Picasso, o cubismo) e literárias (Max Jacob, Apollinaire) que se refletiam no modernismo português.

Richard Zenith, Fotobiografias Século XX, Fernando Pessoa

"Orpheu"

     Por diferentes que sejam entre si, as vozes poéticas do grupo Orpheu identificam-se por uma série de fatores comuns: a fragmentação ou multiplicação do Eu; a transgressão dos tabus éticos; a nova consciência do mundo provocada pela velocidade / poder da Máquina; o poder criador da Palavra, como concretizadora da Vida vivida; a recusa do código linguístico convencional e a descoberta da criação literária, como a grande aventura da Vida; a busca de uma obra poética que, a par de seu valor estético, apresentasse uma conceção filosófica do Ser, e fosse ela mesma um ato, um elemento criador da vida autêntica; a consciência heraclitiana de que a realidade não é um ser, mas um devir; não é um estado durativo e persistente, mas um ocorrer; e ligada a isso está a busca da «portucalidade», da essência da raça portuguesa; o repúdio pelas ideias feitas, pelo convencional, daí, nessa produção órfica, a presença constante da Locura, do clima onírico, da incoerência, etc....; a atração pelo Mistério, pelo Exótico, pelo Esteticismo (também como modo de ser, de existir), ou ainda pelos excessos de qualquer natureza; a análise, como processo criativo, e não mais a síntese que fora procurada pela literatura anterior; a predominância da perceção sensorial da realidade (nervos excitados pelas impressões recebidas do mundo exterior) (...).

Nelly Novaes Coelho, Escritores Portugueses do século XX
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