quinta-feira, 9 de setembro de 2021
Análise de "O Recreio"
Este poema é
constituído por seis estrofes, três quadras e três tercetos intercalados entre
si (o que exprime o ritmo monótono e regular do baloiço), nu cair no poço e m
total de 18 versos, todos em redondilha maior, com rima cruzada e versos
brancos (o 5, 11 e 17).
Aparentemente,
a composição descreve uma situação “simples”: uma criança brinca num baloiço
situado à beira de um poço, correndo perigo de vida desde logo, aumentado pelo
facto de a corda estar a esgarçar-se. A criança em questão é de tenra idade,
dado que está de bibe, está sempre a brincar e revela total inconsciência do perigo
a que está sujeita, como é evidenciado pela sua atitude negligentemente
perigosa: baloiça perto de um poço, num baloiço em mau estado, cuja corda está
esgarçada e, portanto, se encontra prestes a partir. Não obstante a
probabilidade de cair no poço e morrer afogada, continua a baloiçar
tranquilamente.
O sujeito
poético observa a situação e reage de forma indiferente e displicente, já que
tem noção de que a corda está esgarçada, mas isso não parece incomodá-lo. Além
disso, nada faz para retirar a criança da situação de perigo e até acaba por
ironizar, ao afirmar que, se ela morrer afogada, se acabará a «folia», a
brincadeira. Mais: acrescenta que poderia, se quisesse, mudar a corda, mas não
o fará, pois essa mudança exigiria um grande esforço (“Seria grande estopada…” –
v. 12) da sua parte. Perante a possibilidade de o menino morrer afogado, o
sujeito poético não encara o facto como grave nem a possibilidade de o salvar.
Pelo contrário, defende que deve continuar a baloiçar, isto é, a divertir-se
enquanto está vivo. E conclui o poema (re)afirmando que seria fácil mudar a
corda, mas admite que tal ideia nunca lhe ocorreu.
O título
é outro elemento bastante importante para a perceção do poema. De facto, se
atentarmos na palavra de forma isolada, o nome «recreio» remete para um espaço
que está associado a crianças, no qual estas brincam alegremente. Assim sendo,
trata-se de um local conotado com a alegria e a diversão. As referências, no
início do poema, ao «balouço» e ao «menino de bibe» parece, comprovar essas
características do espaço do recreio. Contudo, à medida que a composição
poética se desenvolve, a noção de recreio passa a estar associada à noção de
perigo e eventual morte, inclusive da aceitação natural da mesma.
Note-se,
porém, relendo o primeiro verso, que o «balouço» está a baloiçar na alma do
sujeito poético. Ora, isto significa que a leitura do texto não será tão
simples como à partida pareceria. A imagem da Alma como sede de um baloiço
(metáfora de instabilidade), à beira de um poço (símbolo de uma situação de
risco), com a corda «esgarçada» (reveladora de perigo iminente) e utilizado por
uma criança (totalmente inconsciente do perigo), configura uma forma insensata
e insegura de viver. Esta noção é acentuada pelo movimento do baloiço, que pode
traduzir o vazio repetitivo da sua vida.
Neste
contexto, o título terá uma dupla dimensão: descritiva (o baloiço, o
menino a brincar) e irónica (a recusa da vida adulta e a aceitação da morte
prematura).
As duas
primeiras estrofes descrevem a situação presente, no entanto, a partir da
terceira, somos projetados para o futuro e para a incerteza que o caracteriza.
Esse contraponto entre passado/presente e futuro é sugerido por várias
antíteses e contrastes: presente/futuro, criança/adulto, sonho/realidade,
ilusão/desilusão, vida/morte. Estes contrastes, por outro lado, são traduzidos
pela ideia do movimento do baloiço, no seu constante vaivém.
A corda que
prende o sujeito aos polos positivos (a infância, o sonho, a ilusão) está a
romper-se. Note-se que o verso entre parênteses remete para o interior do
sujeito poético: o «eu» reconhece a situação perigosa em que se encontra, mas
nada fará (mudar a corda) que a altere. Tratar-se-á de orgulho ou de uma saída,
drástica, mas definitiva, para o seu problema existencial. Que tudo isto remete
para a infância (enquanto tempo da ingenuidade, da inconsciência, da ausência
de pensamento e de razão, e da alegria e felicidade) é confirmado pela
expressão «Era uma vez» (v. 9), uma fórmula usada nos contos tradicionais
populares e nas históricas infantis, traduzindo um tempo indefinido e
indeterminado.
O sujeito
poético prefere a morte a uma mudança de vida e prefere morrer enquanto
criança, em vez de no estado de adulto: “Mais vale morrer de bibe/Que de casaca…”
– vv. 14-15). É preferível continuar a ser feliz enquanto se vive. Tratar-se-á
de uma situação em que o «eu» recusa a vida adulta («de casaca») e prefere
morrer prematuramente («de bibe»). Se quisesse, poderia mudar a corda, mas
recusa tal ideia; ora, isto metaforicamente significa que o «eu» não quer mudar
o seu «interior», não quer deixar de ser criança e tornar-se adulto, dado que
as crianças não têm preocupações como os adultos, são ingénuas e felizes.
Estas ideias
são desenvolvidas em estrofes que alternam entre a quadra e o dístico (cada um
iniciado por travessão): nas quadras descreve-se a situação, enquanto os
dísticos constituem uma espécie de apartes, onde o sujeito poético revela a sua
indiferença, o seu cinismo e até sadismo relativamente ao perigo e à morte.
Esta alternância regular de três quadras e três dísticos gera um ritmo (binário)
que traduz o movimento balanceado da imagem poética e, ao mesmo tempo, do
desdobramento temático em duas instâncias: o narrador e a personagem (o
«menino»). Por outro lado, tendo em conta as leituras do poema, o tom do texto,
à primeira vista, ser ligeiro e inocente, na realidade, é de profunda tristeza
e amargura.
Note-se,
ainda, que a composição poética contém uma estrutura narrativa, dado que
o texto é desenvolvido com quem conta uma história, com as categorias próprias
da narratividade:
• espaço: a «Alma»
com o seu «balouço» e o seu «poço»;
• tempo: «sempre»,
«um dia» (presente – futuro);
• ação: os atos de
baloiçar e brincar por parte da criança;
• personagens: o
sujeito poético (o narrador) e o «menino de bibe».
Esta caráter narrativo do poema cria um efeito de
distanciação, sugerindo o desdobramento do «eu».
Estilisticamente,
há a assinalar, além dos recursos já identificados, o apelo às frases
reticentes, que deixam por concluir os comentários do sujeito poético, podendo
também sugerir a sua indiferença. Por outro lado, são visíveis marcas de
oralidade de registo familiar e expressões típicas da linguagem popular («Era
uma vez»; «Cá por mim»; «Grande estopada»).
Análise de "A janela e as feras", de José Régio
O poema, constituído por duas quadras e dois tercetos (soneto), abre com a referência a um hospício (localização espacial) onde há muitos residentes (“centos”), algo que, visto do exterior, não seria percetível. A entrada para o hospício é feita através de um portão que dança na dobradiça velha. A repetição da forma verbal «dança» sugere a entrada de mais doidos, ideia confirmada pela segunda parte do verso 4: “… e faz entrar mais a toda a hora”.
Lendo a
segunda quadra, apercebemo-nos de que os doidos que habitam no hospício têm uma
experiência de vida marcada pelo sonho, pelo crime e pelo vício, e viveram o
seu apogeu (“foram reis”) no passado remoto (“lá muito longe, outrora…”). Tendo
em conta a última estrofe do texto, onde é explicitado o significado do
hospício e dos doidos, podemos olhar para os versos 5 e 6 e concluir que os alienados
são impulsos e desejos de sonho, crime e vício, isto é, são impulsos que, se se
manifestassem, se se concretizassem, levariam a esses comportamentos nocivos e
destrutivos. Neste contexto, o verso 6 significa que esses impulsos reinaram já
no passado do sujeito poético. Olhá-los nos olhos causa medo e angústia.
Porquê? Porque têm uma natureza hedionda e ameaçadora, além de uma
potencialidade destrutiva. Presentemente, os doidos encarcerados sentem-se
ansiosos, envergonhados, perturbados e inquietos por estarem aprisionados
naquele hospício.
O segundo
terceto reproduz uma fala do sujeito poético (marcado pelo travessão) dirigida
ao seu corpo (apóstrofe), que é, afinal, o hospício de alienados. Assim sendo,
compreendemos agora que o hospício simboliza o «eu» poético, representando os
doidos, os alienados os impulsos, as tentações e os desejos que nele vivem. Os
doidos (isto é, os impulsos e desejos) estão «enjaulados», presos, no «eu»
lírico porque este se vê forçado a mantê-los aprisionados, a não deixar que se
manifestem.
Nesse mesmo
terceto, o sujeito poético exorta os seus desejos e os seus impulsos a
libertarem-se da «jaula», isto é, da contenção que ele lhe impõe? Como se
justifica este desejo? O «eu» quer que os seus impulsos e desejos o controlem
(ao contrário do que tem sucedido até aqui) e destruam a sua vida, que se
norteia pelas regras racionais e sociais. Nesta estrofe derradeira, além da
apóstrofe e da exclamação, predomina a personificação, visto que os desejos são
representados como loucos exaltados e agressivos, dando conta da sua ferocidade
e da ansiedade que têm em sair da sua prisão.
Note-se, por
último, que a composição poética constitui uma alegoria, visto que o «eu» e os
seus desejos são retratados através de uma sucessão de símbolos e metáforas
interligados que se materializam na imagem de um hospício (o «eu», o seu corpo)
com os seus loucos (os seus impulsos e os seus desejos).
Análise de "Pastelaria", de Mário Cesariny Vasconcelos
Este poema de Cesariny de Vasconcelos é constituído por oito dísticos e um terceto. Nele, o «eu» poético, socorrendo-se da anáfora e da ironia, tece uma crítica a vários comportamentos do indivíduo em sociedade. Estes recursos insinuam, de forma subtil, que as opiniões apresentadas pertencem a outros que não o sujeito poético, e através deles este exprime o seu desencanto e a crítica a um quotidiano limitado e superficial.
Que aspetos
da vida humana não têm importância? Não importam a literatura, a crítica de
arte e o cinema (?) / a fotografia (?) [“a câmara escura”], isto é, a expressão
através das artes; o negócio, uma vida profissional bem-sucedida, a riqueza e o
ócio / a falta de uma ocupação; a juventude e ser galante, dado que se
«fabricam»; gente com fome, isto é, problemas sociais.
E o que importa?
O que tem importância é não ter medo / ser corajoso, cair no vício
verticalmente (ou seja, atual impulsivamente e ter comportamentos autodestrutivos?;
existirá na referência ao vício uma alusão à homossexualidade do poeta, que lhe
valeu perseguição policial?); ser-se destemido e arrogante (“não ter medo de
chamar o gerente”); ser-se cínico, superior e desprezar os outros (“rir de tudo”
– v. 17). Para os outros, representados pelo «rapaz» do verso 9, a vida
prossegue: “E amanhã há bola [futebol], madame blanche [bordel] e parola”
[conversa e má-língua]. Porém, o que realmente importaria seria “não ter medo /
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente: / Gerente! Este
leite está azedo!” (vv. 13 a 15), ou seja, questionar o regime, contestá-lo,
denunciá-lo publicamente.
São visíveis
no poema várias preocupações sociais (por exemplo, com a pobreza) e críticas
(por exemplo, à mediocridade e ao egoísmo, à superficialidade e à valorização
das aparências – v. 19 – em detrimento da essência das coisas, à indiferença
com os problemas sociais – como a fome –, à arrogância e à soberba, à vaidade e
ao desprezo pelos outros – vv. 16-17).
Relativamente
ao título, uma pastelaria é um lugar onde se patenteiam comportamentos
fúteis e superficiais por parte de determinados grupos sociais.