segunda-feira, 26 de junho de 2023
Amor de Perdição - Capítulo XIX e Conclusão
segunda-feira, 5 de junho de 2023
segunda-feira, 29 de maio de 2023
domingo, 21 de maio de 2023
domingo, 16 de abril de 2023
Árvore genealógica de Camilo Castelo Branco
quinta-feira, 13 de abril de 2023
Análise da Conclusão de Amor de Perdição
A 17 de março de 1807, ao
deixar o Porto a caminho do desterro, Simão vê, pela última vez, Teresa, que
lhe acena do mirante do convento de Monchique. Desesperado, Simão corresponde
ao gesto de Teresa, ficando a saber mais tarde da sua morte pelo comandante da
nau. Pouco antes, tinha recebido o embrulho das cartas que escrevera a Teresa,
que ela, à beira da morte, lhe fizera chegar através de uma mendiga.
1.ª) Explicitar os grandes sentidos
morais, ideológicos ou sociais que a ação e o destino das personagens envolvem.
2.ª) Clarificar a situação em que se
encontram as personagens, após o final da ação, completando o relato feito ao
longo da novela. É por isso que as personagens que constituem o triângulo
amoroso (Simão, Teresa e Mariana) estão presentes na Conclusão (Simão e Mariana
em carne e osso e Teresa presentificada através da sua carta).
• Tal como sucedeu em vários capítulos da novela, o género
epistolar está presente na Conclusão, constituindo um elemento fundamental para
o conhecimento da história e doestado de alma das personagens.
• O género epistolar está presente na Conclusão de duas
formas:
1.º) Como discurso: a última carta de
Teresa para Simão, que este lê em estado de agonia e a caminho da morte.
2.º) Como objeto material com valor
simbólico: o maço de cartas trocadas entre Simão e Teresa, que Mariana
conserva.
• Esta carta de Teresa, a última, é a mais expressiva de todas
as do Amor de Perdição, constituindo um documento impressionante.
• Teresa coloca-se numa posição especial, como se estivesse
situada em vários tempos:
- No presente em que escreve a carta:
“É já o meu espírito que te fala, Simão”.
- No passado que ela já será (morta),
quando Simão ler a carta: “A tua amiga morreu”.
- No futuro da leitura de Simão e da
própria personagem, após a morte de Teresa: “Tu nunca hás de amar, não, meu
esposo?”.
• Esta questão do tempo permite que passado, presente e futuro
convirjam naquela carta, como se Teresa possuísse um poder que se situa além da
sua condição humana.
• As funções da carta são óbvias: 1.ª) uma despedida de
Teresa, visto que nela antecipa a sua morte e estamos perante as últimas palavras
que dirige a Simão; 2.ª) a rememoração do amor entre ambos e os seus planos;
3.ª) a formulação de uma mensagem de esperança relativamente à realização do
amor de ambos num plano espiritual.
• A carta constitui, pois, uma despedida de Teresa relativamente
a Simão, um texto profundo, intenso e emotivo. Recorde-se que a fidalga já
tinha morrido no mirante do convento de Monchique.
• Teresa inicia a carta referindo-se à sua própria morte: “É
já o meu espírito que te fala, Simão.” Deste modo, ela parece situar-se numa
dimensão não terrena, transcendente. A missiva constitui, portanto, uma
confirmação da sua morte e da inevitabilidade da mesma: “… era inevitável
fechar os olhos quando se rompesse o último fio, este último que se está
partindo, e eu mesma o ouço partir.”
• Essa ideia acentua-se quando, no parágrafo seguinte, Teresa
se apelida de “esposa do céu”, o que significa que acredita no amor eterno,
antevê a possibilidade de realização do amor numa outra dimensão, numa outra
vida. Outras passagens da carta confirmam-no: “A infeliz espera-te noutro
mundo, e pede ao Senhor que te resgate.”; “À luz da eternidade parece-me que já
te vejo, Simão!”. Ou seja, como é impossível a concretização do amor de ambos
na terra, Teresa espera o reencontro com o amado e a união espiritual dos dois
numa existência supraterrena.
• Na epístola, Teresa recorda os projetos de vida que ambos
tinham delineado, evocando um passado feliz, porque era cheio de sonhos e esperança
numa vida futura em comum: “A vida era bela, era, Simão, se a tivéssemos como tu
ma pintavas nas tuas cartas que li há pouco!” Essa felicidade idílica, numa
vivência plena do amor, é acentuada por referências a elementos da Natureza: “Estou
vendo a casinha [atente-se no diminutivo carregado de afetividade] que
tu descrevias defronte de Coimbra, cercada de árvores, flores e aves.” Esta
recordação do passado, da felicidade futura entrevista, confere maior
dramatismo à missiva e à situação atual dos dois jovens amantes, visto que essa
felicidade idílica e idealizada contrasta profundamente com o presente de
ambos: “Oh! Simão, de que céu tão lindo caímos!”
• No final da carta, Teresa pede a Simão que não ame mais
ninguém: “Tu não hás de amar, não, meu esposo?” Deste modo, se Simão acatasse o
pedido da fidalga, o amor entre ambos seria eterno e concretizar-se-ia no Céu,
onde se encontrariam e poderiam viver o seu amor e ser felizes.
• Por outro lado, o tom com que a epístola termina é
profundamente de desgraça e perdição, apresentando Teresa a morte como a única
saída para os dois apaixonados: “Que importa morrer, se não podemos jamais ter
nesta vida a nossa esperança de há três anos? […] a morte é mais do que
uma necessidade, é uma misericórdia divina, uma bem-aventurança para mim.” Para
Teresa, a morte é a única solução para um amor impossível, e os dois
apaixonados encontrar-se-ão na eternidade: “a infeliz espera-te noutro mundo”.
• O
discurso de Teresa na missiva é marcado por diversos recursos expressivos, como
a metáfora e vocabulário associado à dor, ao sofrimento e à morte
(“martírio”, “desgraça”, “malfadada”).
• Após a leitura da carta de Teresa, Simão sobe ao convés,
cambaleando, e contempla o mirante de Monchique, “que avultava negro no sopé da
serra penhascosa em que atualmente vai a Rua da Restauração.” O mirante vazio e
negro enfatiza a sua perda, isto é, a morte de Teresa.
• A partir deste momento, Simão é acometido de uma febre maligna,
de ânsias e delírios, e entra numa lenta agonia que o conduz à morte: “saiu
cambaleando”, “segurou entre as mãos a testa, que se lhe abria abrasada pela
febre. […] cair o meio corpo.”, “Seguiu-se a febre, o estorcimento, e as
ânsias, com intervalo de delírio.”, “era febre maligna a doença, e bem podia
ser que ele achasse a sepultura no caminho da Índia.”, “A febre aumentava. Os
sintomas da morte eram visíveis aos olhos do capitão.” Sentindo a aproximação
da morte, pede a Mariana que, quando fechar os olhos, lance ao mar as cartas
que trocou com Teresa.
• À medida que a febre vai aumentando, “… os sintomas da morte
eram visíveis aos olhos do capitão.” De seguida, é referida uma tempestade que
se abate sobre o navio, que traduz ao gosto romântico, a dor física e emocional
de Simão (“O navio fez-se ao largo muitas milhas e, perdido o rumo de Lisboa,
navegou desnorteado.”), constituindo a morte o apaziguamento, a paz.
• Já moribundo, Simão delira e recorda passagens da última
carta de Teresa, tendo sempre a seu lado Mariana, a quem se refere como “puro
anjo” e a quem diz: “Tu virás ter connosco; ser-te-emos irmãos no Céu… O mais
puto anjo serás tu… se és deste mundo, irmã…”. A presença de Mariana torna-se,
à semelhança de Teresa, espiritual, não terrena. No seu delírio, Simão sente a
presença das duas figuras femininas que o amavam.
• A morte de Simão ocorre ao romper da manhã (sugerindo a
manhã uma morte redentora), nove dias após a carta de Teresa, apertando a mão
de Mariana. Essa morte, ocorrida por um ideal – o amor, contribui para
confirmar o estatuto de Simão como herói romântico: Simão morre por amor,
porque não pode viver sem Teresa. Por outro lado, o passamento dos dois
protagonistas torna-se, assim, consequência da liberdade que desejavam e que a
sociedade não lhes concedem. De facto, a morte de ambos pode ser lida como um
grito de revolta contra a sociedade da época e um sinal de mudança social a que
muitos aspiravam. O seu corpo é atirado ao mar.
• No momento em que o corpo morto de Simão é lançado ao mar,
Mariana atira-se à água e abraça o seu cadáver, que uma onda traz até si. Em
vida e na morte, a filha do ferrador sempre esteve ao seu lado e nunca o
abandonou.
• Por que razão Mariana morre? A filha de João da Cruz jamais
poderia sobreviver à morte de Simão, dado que o seu destino estava
irremediavelmente ligado ao do fidalgo. A decisão de se suicidar no momento da
morte de Simão representa uma concretização do seu amor, ou seja, é uma forma
de estar (como sempre esteve) ao lado de quem ama. O amor prevalece sobre todos
os sentimentos e não é vencido pela morte, à semelhança do que sucede com
Teresa e Simão.
• Mariana salta para a água com as cartas
trocadas entre Teresa e Simão, cumprindo o pedido que este lhe fizera (“[…]
atire ao mar todos os meus papéis, todos; e estas cartas que estão debaixo do meu
travesseiro também.”), que os marinheiros acabam por recuperar. Note-se que a
apresentação da correspondência trocada entre ambos os protagonistas cria um
efeito de verosimilhança no que diz respeito à novela. De facto, para que a
ação da novela fosse verosímil, as cartas são poderiam desaparecer na água,
antes tiveram de ser recolhidas. Se elas se tivessem perdido, a sua transcrição
na obra não seria credível, pois o autor não teria sido acesso a elas. Por outro
lado, nessa correspondência está representado um amor que levou à perdição.
• De acordo com o professor Carlos Reis, na
Conclusão, o triângulo amoroso dá lugar ao triângulo da perdição, ideia
comprovada por vários elementos:
1.º) A
carta de Teresa e as expressões de perdição e morte que contém, como, por
exemplo, “A tua amiga morreu”, “tua esposa do céu”, “a infeliz espera-te noutro
mundo”, “e eu na sepultura”, entre muitas outras.
2.º) A
situação de agonia e delírio em que cai Simão, seguida da sua morte.
3.º)
O suicídio de Mariana, antecipado pela própria quando, respondendo a uma
pergunta de Simão, lhe diz: “Morrerei, senhor Simão”.
• Por outro lado, Teresa e Simão vivem um amor correspondido, mas os dois foram-se afastando fisicamente ao longo da obra. Já Mariana ama Simão, porém não é correspondida, mas as duas personagens estão cada vez mais próximos fisicamente. Essa aproximação física culmina com o beijo de Mariana a Simão e o desaparecimento de ambos nas águas do mar, com a filha de João da Cruz abraçada ao corpo do fidalgo.
• Na Conclusão, o tempo surge concentrado. A
categoria está bem demarcada e o narrador vai anunciando a sua passagem: “Às
onze horas da noite…”, “à meia-noite”, “às três da manhã”. A morte de Simão
ocorre a 28 de março, pelo que os 11 dias da partida e da viagem são narrados
em cerca de cinco páginas.
• No final da obra, o destino e o livre arbítrio cruzam-se. Por
um lado, o comandante da nau refere que foi a má «estrela» de Simão que o
conduziu à morte. Por outro e por oposição, Mariana suicida-se, concretizando
uma opção individual premeditada e refletida.
Da família do protagonista, no
momento da escrita da novela, a única figura ainda vida era Rita, a irmã
predileta do fidalgo e tia de Camilo, que faleceu em 1872.
Mariana ama Simão e, assim sendo,
é-lhe de uma dedicação extrema, cuidando dele doente (“Mariana, que levantava a
cabeça ao menor movimento dele.”) e sacrifica-se para o acompanhar (“– Se não o
incomodo, deixe-me aqui estar, senhor Simão.”). Mas, para tal, tem de enfrentar
várias provações que se refletem no seu aspeto físico: “Mariana tinha
envelhecido”. Não obstante, abnegada como sempre, está ao seu lado sempre,
incluindo no momento da morte, com a resiliência que o amor lhe proporciona: “Mariana
ouviu o prognóstico e não chorou.”
Além disso, Mariana mostra-se sempre
solidária, humilde e submissa (“– Se não o incomodo, deixe-me aqui estar,
senhor Simão”), abnegada e determinada na luta pelo seu amor e, à semelhança de
Teresa, crença no amor eterno (“Viram-na, um momento, a bracejar, não para
resistir à morte, mas para abraçar-se ao cadáver de Simão, que uma onda lhe
atirou aos braços.”).
Quando o filho de Domingos Botelho
mergulha num estado de agonia e delírio, inicialmente, a filha do ferrador
declara-se pronta para morrer (por amor) se o mesmo acontecer a Simão (“– Morrerei,
senhor Simão.”). Depois, à medida que este fica mais debilitado, Mariana
manifesta os efeitos físicos que essa debilidade lhe causa (“Mariana tinha
envelhecido.”). Posteriormente, o facto de apertar o embrulho com as cartas de
Teresa e Simão à sua cintura, indicia a decisão que tomou e que conheceremos
pouco depois. O primeiro beijo que lhe dá acontece com ele já morto, assim de
associando amor e morte. Por último, durante o funeral do fidalgo, a sua
postura apática e quase indiferente compreende-se tendo presente a dita decisão
de se lançar ao mar atrás do corpo do jovem (“[…] e parecia estupidamente
encarar aqueles empuxões que o marujo dava ao cadáver…”).
Em suma, o suicídio de Mariana
decorre do amor-paixão que sente por Simão, caracterizado por uma dedicação, um
espírito de abnegação e intensidade sentimental tais que abdica da própria vida
para se unir ao seu amor para sempre. Deste modo, a morte proporciona-lhe a
concretização do amor pelo jovem fidalgo, abraçando o seu corpo para a
eternidade, bem como a paz que o amor por ele nunca lhe trouxera. A imagem é
bastante sugestiva: o destino atira-lhe para os braços o corpo do seu amado: “[…]
que uma onda lhe atirou aos braços.”
O final da novela é tipicamente
romântico, ao apresentar a solução característica para cada um dos amantes
infelizes: a morte.
Por seu turno, o académico tem
consciência da pureza e consistência dos sentimentos da filha de João da Cruz,
bem como do seu espírito de sacrifício, procurando nela o amparo de que necessita
nos seus últimos dias.
▪ Simão e Mariana, através dos diálogos, comunicam decisões
(por exemplo, a jovem declara que morrerá se o fidalgo falecer).
▪ As duas personagens exprimem emoções, sentimentos e
preocupações.
▪ Os diálogos servem ainda para apresentar informações e
esclarecer factos (por exemplo, o destino da correspondência de Teresa e
Simão).
• O espaço referido logo no início da
Conclusão é o camarote/o beliche que serve de aposento de Simão. Trata-se de um
espaço muito pequeno, que oprime a personagem, levando-a a confessar ao
comandante que aí sofre mais do que no convés.
• Como sucede noutros passos da obra, o
narrador é muito económico no que toca à descrição do espaço físico. Desta
forma, o leitor concentra a sua atenção nas personagens, nos seus dramas,
sentimentos e emoções.
• A redução/concentração do espaço, à medida
que a ação avança, contribui para adensar a atmosfera dramática/trágica.
quarta-feira, 12 de abril de 2023
Análise do capítulo XIX de Amor de Perdição
Após a prisão de Simão, Teresa é
conduzida ao convento de Monchique e dá sinais de fraqueza e doença. As cartas
trocadas entre os amantes evidenciam o desgosto de ambos pela separação e pela
morte próxima de Teresa.
• Capítulo XIV
Tadeu de Albuquerque chega ao
convento para levar Teresa para Viseu, mas a filha recusa. A madre apoia-a e
Tadeu, não obstante as diligências que faz, não consegue o que deseja.
• Capítulo XV
Simão continua preso na Cadeia de
Relação, no Porto, e passa ao papel os seus pensamentos e reflexões sobre o seu
destino. João da Cruz visita-o e dá-lhe conta das melhoras de Mariana; depois
leva uma carta do fidalgo para Teresa. Entretanto, Mariana ficará a cuidar de
Simão.
• Capítulo XVI
Neste capítulo, narra-se a fuga de
Manuel Botelho, irmão mais velho de Simão, com uma mulher casada. Trata-se de
um incidente que não tem grande ligação com os amores de Teresa e Simão, mas
que mostra o modo de ser de Domingos Botelho.
• Capítulo XVII
João da Cruz está em casa e
dedica-se ao trabalho de ferrador. Entretanto, é visitado por um estranho que,
após um breve diálogo, dispara sobre ele, matando-o, num ato de vingança.
Mariana recebe a notícia na prisão, onde acompanha Simão, e ambos reagem com
grande emoção.
• Capítulo XVIII
Mariana, agora sem pai, decide
acompanhar Simão no degredo. As suas manifestações de dedicação ao fidalgo
intensificam-se, ao ponto de anunciar que se suicidará, quando a sua companhia
já não for necessária. Não há mais como esconder o seu amor por Simão.
● Análise do capítulo
1. Reflexão sobre a
verdade e a ficção
Nesta parte final da novela, o
sofrimento das personagens intensifica-se, e o narrador faz ouvir a sua voz com
grande nitidez e aproxima-se do leitor.
De acordo com o professor Carlos
Reis (Educação Literária – Leituras Orientadas, Amor de Perdição, Camilo
Castelo Branco, Porto. Porto Editora,2016, p. 108), a “presença do narrador
manifesta-se de três formas:
• Pelos comentários
que tratam de temas como a verdade e a sua presença na ficção narrativa.
• Pela organização do tempo, orientada para o momento em que, no
capítulo seguinte, Simão parte para o degredo.
• Pelas interpelações,
quando, usando a segunda pessoa, o narrador se dirige à personagem (Simão) e ao
leitor. Trata-se de um procedimento que cria uma certa intimidade com quem é interpelado e mostra um
conhecimento amplo da condição humana, das suas motivações e das suas reações.
Por exemplo: «Assim te sentias tu, infeliz, quando dezoito meses de cárcere […]
te haviam matado o melhor da alma”; “De além, daquele convento onde outra
existência agonizava, gementes queixas te vinham espremer fel na chaga».”
O
narrador inicia o capítulo com uma reflexão sobre a presença da verdade e da
ficção num romance. Assim, de acordo com a sua dissertação:
• A verdade é difícil de enquadrar na ação:
ela é “o escolho de um romance”.
• Um romance que assenta na verdade “é frio, é
impertinente, é uma coisa que não sacode os nervos”.
• A verdade que faz sofrer não deve ser
apresentada aos leitores do romance e da novela (os “painéis do público”).
• O narrador declara ter perdido o juízo a
estudar a verdade. Por isso, decide “pintá-la como ela é, feia e repugnante”.
• Assim, o narrador vai apresentar a verdade
como ela é: “a verdade do coração humano”, ou seja, a história narrada é de
sofrimento.
De
seguida, o narrador dirige-se ao leitor, concretamente ao “leitor inteligente”,
questionando-o se “a desgraça arvora ou aquebranta o amor”, isto é, se os
obstáculos ao amor o tornam mais intenso ou se, pelo contrário, acalmam o ânimo
de quem ama. Esta interrogação retórica (“A desgraça afervora ou quebranta o
amor?”) permite criar cumplicidade com o leitor, despertando-o para o que vai
acontecer em seguida. Além da interrogação, outros recursos expressivos
contribuem também para esta finalidade, como a exclamação (“A verdade do
coração humano!”) e a enumeração (“A Índia, a humilhação, a miséria, a
indigência.”).
No
entanto, o narrador não apresenta uma resposta para essa pergunta, antes afirma
que “Factos e não teses é o que eu trago para aqui”. Que factos são esses? Após
dezanove meses na prisão, Simão deseja ardentemente a liberdade: “[…] almejava
um raio de sol, uma lufada de ar não coada pelos ferros, o pavimento do céu…”.
Por isso, em vez de aceitar a comutação da pena – dez anos de cárcere em Vila
Real – prefere o degredo na Índia, porque “Ânsia de viver era a sua; não já era
ânsia de amar” e porque “O que é o coração, o coração dos dezoito anos, o
coração sem remorsos, o espírito anelante de glórias, ao cabo de dezoito meses
de estagnação da vida?”
De
seguida, interpela diretamente Simão, usando a segunda pessoa, e mostra a sua
cumplicidade, um conhecimento profundo dos seus sentimentos e motivações:
“Assim te sentias tu, infeliz, quando dezoito meses de cárcere, com o patíbulo
ou o degredo na linha do teu porvir, te haviam matado o melhor da tua alma.”
Além disso, na sua omnisciência, emociona-se e compadece-se com o sofrimento do
fidalgo, tal como tinha sucedido na Introdução, e intensifica-o através de
vários recursos expressivos, como as exclamações, as interrogações retóricas e
o vocabulário associado à desgraça e ao sofrimento (“abismo”, “fel”,
“escuridão”, “chaga”, etc.).
2. As cartas trocadas
entre Simão e Teresa
O discurso epistolar reveste-se,
mais uma vez, de grande importância no contexto da novela.
Na primeira carta, Teresa, muito
doente e caminhando para a morte (“As ânsias, a lividez, o deperecimento tinham
voltado. O sangue, que criara novo, já lhe saía em golfadas com a tosse.”),
pede a Simão que aceite os dez anos de prisão, mas o fidalgo perdeu toda a
esperança.
De facto, na missiva de resposta,
Simão mostra que, tal como a amada, desistiu dos seus sonhos e perdeu a vontade
de viver, optando pelo degredo. Neste momento das suas vidas, face à clausura
que ambos vivem (ele na prisão, ela no convento), perderam toda a esperança de
poder vir a ter um projeto amoroso: “Não esperes nada, mártir […] A luta com a
desgraça é inútil, e eu não posso já lutar. Foi um atroz engano o nosso
encontro. Não temos nada neste mundo. Caminhemos ao encontro da morte…”. O
fidalgo renuncia ao amor e opta pela liberdade, mesmo que no exílio: “Ânsia de
viver era a sua; não era já ânsia de amar”. Não foge, no entanto, ao seu
destino trágico de “mártir de amor”.
De seguida, como herói romântico que
é, Simão demonstra o seu repúdio pela sua família e pela pátria, que
representam uma sociedade estagnada, preconceituosa e corrompida pela honra e
pelo dinheiro: “Abomino a pátria, abomino a minha família; todo este solo está
aos meus olhos cobertos de forcas […] Em Portugal, nem a liberdade com a
opulência; nem já agora a realização das esperanças que me dava o teu amor,
Teresa!” Enquanto heróis românticos, o par amoroso opõe-se à sociedade, pelo
que o amor de ambos simboliza, de alguma forma, o desejo de mudança da
sociedade.
Simão, em suma, desistiu de tudo –
do amor e da própria vida: “Eu quero morrer, mas não aqui.” Graças à
intervenção do seu pai, é-lhe dada a possibilidade de cumprir os dez anos de
degredo a que fora condenado na prisão de Vila Real, todavia, mesmo após o
pedido de Teresa para que aceitasse essa comutação da pena, o filho de Domingos
Botelho recusa: “Não me peças que aceite dez anos de prisão.” O narrador já
clarificara antes esta postura de Simão: “Os dez anos de ferros, em que lhe
quiseram minorar a pena, eram-lhe mais horrorosos que o patíbulo.”
Simão espera, pois, a morte e, num
primeiro momento, aconselha Teresa a fazer o mesmo: “Caminhemos ao encontro da
morte.” Depois pede-lhe que faça a vontade de seu pai (“Salva-te, se podes,
Teresa. Renuncia ao prestígio dum grande desgraçado. Se teu pai te chama, vai.”)
ou que morra (“E, senão, morre…”), pois “a felicidade é a morte”.
Teresa responde-lhe com uma breve
carta, na qual se pronuncia no mesmo tom do seu amado: “Morrerei, Simão, morrerei.”;
“[…] e morro, porque não posso, nem poderei jamais resgatar-te.” De seguida,
pede-lhe que viva para a chorar (“Se podes, vive; não te peço que morras,
Simão; quero que vivas para me chorares.”) e declara estar tranquila (“Estou
tranquila…”) perante a aproximação da morte e a paz que esta lhe trará (“Vejo a
aurora da paz…”). E despede-se de forma que confirma a sua crença na realização
do amor num outro plano, o espiritual: “Adeus até ao Céu, Simão.”
Estas missivas trocadas entre ambos
confirmam que, para ambos, ao gosto romântico, perante a impossibilidade de
realização do seu amor, a única opção é a morte.
3. Final do capítulo
Depois de receber a última carta de
Teresa, Simão cai num estado de profunda melancolia e angústia, aniquilado, em
silêncio absoluto: “Seguiram-se a esta carta muitos dias de terrível
taciturnidade. Simão Botelho não respondia às perguntas de Mariana.”
O ritmo narrativo é extremamente
rápido, como o demonstra a elipse (“Decorreram seis meses ainda.”), até que chegamos
ao dia 10 de março de 1807, data em que Simão recebe a intimação para a
viagem rumo ao degredo na Índia, o que o deixa ora num estado de letargia, ora
de loucura. Esse estado de alma é traduzido através de um estilo e de uma
linguagem que procuram traduzir as emoções das personagens. Ao longo de todo o
capítulo, nomeadamente nas cartas, podemos encontrar lirismo nas palavras dos dois
apaixonados, mas, à medida que se caminha para o desenlace, nomeadamente nesta
última parte, o discurso das personagens é contaminado pela sensibilidade
romântica, daí um certo exagero, dramatismo e emotividade extremos: “– Que
trevas, meu Deus! – exclamava ele, e arrancava a mãos-cheias os cabelos . –
Dai-me lágrimas, Senhor! Deixai-me chorar ou matai-me, que este sofrimento é
insuportável!”
terça-feira, 11 de abril de 2023
Análise do capítulo X de Amor de Perdição
a) O
comportamento devasso e libidinoso do padre e o não cumprimento do voto de
castidade / do celibato. |
• Quando Mariana chega ao
mosteiro, o padre capelão tece comentários libidinosos para a madre prioresa
sobre a figura da jovem: “Que boa moça! – tornou ele, com um olho nela e
outro no raro…”; “… mas repare bem nos olhos, no feitio, naquele todo da
rapariga.” |
b) A
mundaneidade das freiras. |
i) as aspirações amorosas e o ciúme pela atenção que o padre dá a
Mariana (que não se coadunam com a sua condição de religiosa): “… a ciumosa
prioresa se estava remordendo.”; “E retirou-se com o coração mal ferido, e o
queixo superior escorrendo lágrimas… de simonte.”;
ii) a vaidade;
iii) os vícios da bebida e do tabaco: “… disse o padre capelão […]
praticando com a prioresa sobre a salvação das almas e de umas ancoretas de
vinho do Pinhão, que ele recebera naquele dia e do qual tinha engarrafado um
almude para tonizar o estômago da prelada.”; “… o queixo superior escorrendo
lágrimas de simonte”.
|
c) Os
roubos dentro do convento (diálogo entre Mariana e Teresa). |
• “Eu não posso escrever-lhe, que me roubaram o meu tinteiro…”. |
• A carta é uma espécie de diálogo
escrito à distância, em que a mensagem chega diferida, ou seja, muito depois de
ter sido escrita. Repare-se no que escreve Simão no final da carta: “À hora em
que leres esta carta…”.
• As cartas entre Simão e Teresa são
cartas de amor, existindo nelas uma subjetividade intensa e um confessionalismo
muito forte; as personagens expressam os seus sentimentos e o estilo mostra o
seu estado de espírito.
• A carta é um objeto material.
Escrever uma exigia papel, tinta e uma certa privacidade (por vezes, no
convento, Teresa é impedida de escrever a Simão; chegam até a roubar-lhe o
tinteiro).
• A carta é um documento que atesta a
relação entre duas pessoas. O narrador apoia-se nas cartas para contar a
história, sublinhando assim a sua suposta veracidade.
• As cartas trocadas entre o par
amoroso revelam o seu mundo interior e a forma como vivem o amor que os une.
Por outro lado, tornam mais presente o drama vivido por eles e, assim, desperta
o leitor para a injustiça contra eles cometida.
▪ O herói romântico possui um caráter
excecional – apresenta-se como um ser excecional, fora do comum, marcado pela
individualidade.
▪ Rejeita as normas e convenções sociais,
sobretudo quando elas contrariam os seus valores e as suas crenças,
colocando-se à margem e assumindo uma atitude de rebeldia.
▪ Por isso, o herói romântico é
rebelde e enérgico, lutando por ideais em que acredita, sejam eles de amor,
pátria ou religião.
▪ Defende os direitos do indivíduo
associados ao Liberalismo e ao Romantismo: liberdade, igualdade, fraternidade,
justiça, etc.
▪ Frequentemente, o herói romântico
possui uma personalidade instável, dividida entre forças opostas, como, por
exemplo, as normas da sociedade e os impulsos que levam à sua revolta contra
essas normas.
▪ Assim sendo, o herói romântico é uma
figura que tende para o conflito e a rebeldia, o que o conduz à perdição e à
morte diversas vezes.
▪ Vive numa crise interior e torna-se
melancólico e introspetivo.
▪ É atormentado por uma grande insatisfação,
que resulta do facto de não concretizar as suas aspirações, e morre, física ou
espiritualmente.
▪ O herói romântico é vítima do
destino e age motivado por um amor intenso: “o académico ponderou supersticiosamente
os ditamos do coração da moça…”; “O destino há de cumprir-se… Seja o que o céu
quiser.”
Que características possui Simão
que fazem dele um herói romântico?
Os traços do herói romântico, no Amor
de Perdição, estão, sobretudo, concentrados na figura de Simão Botelho.
Convém ter presente, no entanto, que esses traços só fazem sentido quando
observados no contexto da relação com Teresa e, em segundo plano, Mariana:
▪ Nos capítulos I e II, Simão é
caracterizado pela rebeldia e pelo caráter conflituoso e violento, como é
exemplificado pelo episódio de pancadaria na fonte.
▪ Por outro lado, nesse passo da obra revela
também o seu conflito com a família, nomeadamente quando “zomba das genealogias”.
Além disso, coloca-se à margem da sociedade, cujas regras não aceita, e revolta-se
contra as injustiças sociais, as convenções de honra e as “falsas virtudes” dos
pais.
▪ O amor por Teresa fá-lo mudar o seu
comportamento (“maravilhosa mudança nos costumes…”).
▪ É um idealista apaixonado, com veia
poética (cf. carta escrita a Teresa).
▪ A busca de um amor ideal, mas
contrariado pelas famílias de ambos, acentua o caráter conflituoso do herói
romântico. É esse amor exacerbado e o caráter conflituoso que, em última
análise, o levam à perdição.
▪ Simão é movido por valores como a
honra, o amor, a coragem e a retidão: “Eu hei de fazer o que a honra e o
coração me aconselharem.”.
▪ Simão é um ser de exceção, visto que
é dotado de nobreza de caráter e dignidade e de qualidades morais incomuns (por
exemplo, o sentido de justiça e honra). Estes traços são exemplificados pelo
facto de se recusar a fugir após assassinar Baltasar. Em alternativa, assume o
seu crime e é preso.
▪ Rege a sua vida por princípios e
ideais elevados, como a liberdade e a justiça (não aceita que outros determinem
o curso da sua vida nem que contrariem o seu amor) e a igualdade (trata João da
Cruz e Mariana como seus iguais).
▪ Simão é marcado pela fatalidade e
compreende que os seus objetivos de vida foram frustrados, caindo numa profunda
melancolia e acabando por morrer.
▪ Por outro lado, é um homem
determinado que se move por amor, o qual se torna um sentimento absoluto, visto
que se enamora por Teresa e a ama incondicionalmente, e impelido pela força do
destino: “O destino há de cumprir-se… Seja o que o Céu quiser.”. O diálogo
breve com João da Cruz (“– Está perdido! – tornou João da Cruz. / – Já o
estava.”) mostra que Simão compreendeu que não foi o homicídio de Baltasar que
determinou a sua perdição, mas que esta já estava traçada desde que se enamorou
de Teresa, por causa dos ódios familiares. Este desenlace fatal havia sido
antecipado pelo narrador logo no início da novela quando apresentou ao leitor a
frase que sintetiza o percurso do nosso herói: “Amou, perdeu-se, e morreu
amando”.
• Mosteiro: simboliza a
clausura, o aprisionamento (a janela com grades), causador(es) de sofrimento;
de dentro pode ver-se o espaço exterior, simbolizando a liberdade de que não se
pode usufruir.
• Janela com grades: representa
a separação de Teresa e Simão, causada pelo aprisionamento da fidalga num
convento (cuja “libertação” só será conseguida com a morte).