domingo, 10 de janeiro de 2021
Contradições da poesia de Alberto Caeiro
Alberto Caeiro: reflexão existencial – o primado das sensações / o sensacionismo
▪ Sensacionismo: a sensação sobrepõe-se ao
pensamento
Alberto
Caeiro recusa o pensamento, o conhecimento intelectual e vive de impressões,
privilegiando as sensações, sobretudo as visuais. O pensamento perturba-o,
fá-lo sofrer, é fonte de enganos, não lhe permitindo conhecer o real (“Pensar é
estar doente dos olhos”), por isso procura libertar-se dele, privilegiando o
conhecimento sensorial da realidade.
Para o poeta, o conhecimento do mundo e
do real circundante faz-se através das sensações. De uma forma que se quer
espontânea e natural, elas revelam uma existência que, em contacto com a
natureza, dispensa a ciência e a técnica.
Assim, vive em harmonia consigo e com
os outros, aceitando o mundo e a vida e sendo feliz, precisamente porque recusa
o pensamento e dá primazia às sensações. Perceciona a realidade através do
olhar, sem intelectualizar essa perceção, daí afirmar-se que a sua poesia é
sensacionista, na medida em que substitui o pensamento (que associa a uma
doença) e o sentimento (subjetivo e convencional) pela sensação. A
subjetividade não existe para ele.
Caeiro apreende o real através dos
sentidos / das sensações, nomeadamente as visuais, recusando o pensamento. Este
corresponde a uma atitude reflexiva que impede a compreensão e a uma doença da
visão [“pensar é estar doente dos olhos” (Poema II)], que constitui um
obstáculo à fruição do que os sentidos percecionam (nomeadamente a Natureza).
Caeiro valoriza a realidade exterior
concreta e observável: “Creio no Mundo como num malmequer, / Porque o vejo”
(poema II).
Ao recusar o pensamento e ao optar pelo
concreto, encontra a felicidade: “Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
/ Sei a verdade e sou feliz”. O real é o único meio de atingir a verdade e a
felicidade, desde logo porque a realidade existe sem necessidade do pensamento.
Para o poeta, nada existe para além
daquilo que é percetível, para além daquilo que o ser humano capta os sentidos.
Caeiro recusa o conhecimento
intelectual e defende o primado das sensações.
O poeta nega que a Natureza tenha
significados ocultos. As coisas são o que são, resumem-se à sua aparência e
àquele cabe-lhe aceitá-las como elas são, sem pensar, porque "pensar é não
compreender”.
O mundo é claro, evidente, simplesmente
é – ser é o único valor possível. O conhecimento chega apenas através dos
sentidos, nomeadamente do olhar, pois o pensamento incomoda-o, perturba-o, é
fonte de infelicidade: “Pensar incomoda como andar à chuva”.
Caeiro rejeita a filosofia (bem como o conhecimento
intelectual, a metafísica, a ciência) e, consequentemente, constrói uma nova
filosofia: “Eu não tenho filosofia: tenho sentidos” (Poema II). Ou seja, ao
percecionar a realidade como se fosse um simples pastor que acompanha o seu
rebanho, encontra na Natureza e nas sensações uma nova filosofia de vida.
Caeiro é, talvez, o heterónimo mais
complexo, visto que recusar o pensamento ou qualquer tipo de filosofia é pensar
e filosofar, e tentar atingir o grau zero do pensamento implica já uma complexa
operação mental. De facto, a recusa da filosofia e a apologia da sensação pura
constituem uma outra filosofia, pois recusar a filosofia é filosofar, tal como
afirmar que não se pensa é já pensar.
Caeiro aceita o mundo e as coisas como
são, relacionando-se com eles de forma harmoniosa, visto que recusa o
pensamento e a abstração, privilegiando as sensações, nomeadamente as visuais.
Segundo ele, devemos fazer a
“aprendizagem do desaprender”, devemos aceitar a vida e a morte sem mistérios,
despojados de todo o pensamento, de toda a reflexão, de toda a subjetividade.
Para este heterónimo, o real é a única
fonte de felicidade e de conhecimento. Também isto explica que viva em comunhão
com a Natureza, aprendendo com ela, através das sensações, a ser feliz.
Em suma, Caeiro, aceita o real e a
vida, não problematiza a existência, contentando-se em sentir, ver e ser feliz.
Alberto Caeiro: o fingimento artístico – o poeta «bucólico»
Logo
no começo do poema “O guardador de rebanhos”, Caeiro declara-se pastor por
metáfora, o que constitui, no fundo, o despontar daquilo que Pessoa ele mesmo
considerou um «poeta bucólico de espécie complicada».
De
facto, na carta que dirigiu ao seu amigo Adolfo Casais Monteiro, na qual
explica a génese dos heterónimos, o ortónimo afirma que, certo dia, desejou
criar um poeta bucólico para pregar uma partida a Sá-Carneiro, mas que essa
ideia se concretizou apenas em 8 de março de 1914, quando se acercou de uma
cómoda alta e escreveu «trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase»,
cuja autoria atribuiu a Alberto Caeiro, heterónimo que lhe suscitou a sensação
de que tinha nascido o seu Mestre, tratando também de lhe inventar mais uns
discípulos. Caeiro é, por isso, o Mestre de Pessoa ortónimo e dos outros
heterónimos.
Caeiro
resulta do fingimento poético de Fernando Pessoa: foi inventado e modelado pelo
ortónimo como «poeta bucólico». Ou seja, imaginariamente, Caeiro é uma figura
que vive no campo, com simplicidade, sem estudos e de modo rústico, em contacto
com a Natureza e longe da agitação da cidade. O que nele há de bucolismo
aparece como imitação da vida dos pastores que, na chamada poesia bucólica,
eram as figuras que o poeta celebrava, pela sua pureza e inocência.
Caeiro
é um poeta deambulatório (como Cesário Verde). De facto, ele deambula livremente
pela Natureza, pelo campo, observando e apreendendo instintivamente o que o
rodeia e captando o real através dos sentidos, extasiado pela eterna novidade
do mundo.
A
poesia de Caeiro visa o primado do exterior / da variedade maravilhosa do real.
Caeiro
procura viver em plena integração e comunhão com a Natureza, aprendendo com ela
a aceitar o bom e o mau, a felicidade e a infelicidade, a vida e a morte. A sua
alma «conhece o vento e o sol», segue o ritmo das estações e frui «a paz da
Natureza sem gente», sendo que a ausência de outros seres humanos lhe traz paz
e tranquilidade. Ele procura viver em harmonia e simbiose com a Natureza,
alegre e tranquilamente no seio da mãe Terra.
Deste
modo, atinge o verdadeiro conhecimento e a felicidade plena: «Sinto todo o meu
corpo deitado na realidade, / Sei a verdade e sou feliz”.
Poeta
do real objetivo, observa as coisas com um olhar ingénuo e puro: “pensar é não
compreender. / (…) E a única inocência é não pensar…”. No entanto, na verdade,
Caeiro, o poeta da visão instintiva e natural das coisas, é um falso ingénuo e
a sua aparente simplicidade resulta de uma elaborada operação mental.
De
facto, a simplicidade de Caeiro é posta em causa, pois, além de se apresentar
como metáfora, aparenta contradizer-se: “Sou um guardador de rebanhos” ≠ “O
rebanho é os meus pensamentos”. Ou seja, ele só é pastor bucólico enquanto
metáfora; quando muito, deseja a existência simples que está associada à vida
pastoril.
Para
Caeiro, não há passado (ele considera que recordar é atraiçoar), nem futuro
(pois este tempo é um campo de miragens). Assim, vive o presente, gozando cada
impressão como se fosse única e original.
Caeiro
mascara-se de pastor-mestre inculto e iletrado, de forma a passar a imagem de
um homem simples na forma original e primitiva de (vi)ver o mundo, imagem essa
que esconde todo um conhecimento filosófico e cultural.
Caeiro
finge ser um pastor (o tal pastor-metáfora, pois, na realidade, não o
é), um homem simples, que deambula pela Natureza, apreendendo instintivamente o
que o exterior lhe oferece. Deste modo, a sua arte poética/criação artística é
algo espontâneo e não artificial (artificialidade reacional da elaboração do
texto), daí que critique os “poetas que são artistas / E trabalham seus versos
/ como um carpinteiro nas tábuas”, como se se tratasse de uma construção.
Este
fingimento tem como meta a (tentativa de) abolição do pensamento, fingindo que
é um homem instintivo que vive só para fora, para o exterior.