Português: 05/05/20

terça-feira, 5 de maio de 2020

Análise do poema "Sísifo", de Miguel Torga

Mito de Sísifo

Sísifo era filho de Éolo e rei da Tessália. Além disso, era o fundador da cidade de Éfira, mais tarde chamada Corinto, bem como dos jogos de Ístmia, os designados jogos Ístmicos. Era considerado uma pessoa muito habilidosa e o mais esperto dos homens, razão por que se dizia que era pai de Ulisses.
Certo dia, Sísifo avistou Zeus a raptar Egina, filha de Asopo, deus dos rios. Quando este o interrogou sobre o paradeiro da jovem, Sísifo não hesitou e denunciou Zeus, em troca de uma fonte de água para a sua cidade.
Como castigo, o pai dos deuses ordenou a Tanatos, o deus da morte, que o levasse para o reino dos mortos. No entanto, Sísifo, graças à sua astúcia, enganou e prendeu Tanatos. A prisão da divindade impedia que os mortos pudessem alcançar o Reino das Trevas, por isso foi necessário que Ares o libertasse. Então Sísifo, para escapar de novo à morte, engendrou novo ardil: instruiu a mulher que não lhe prestasse exéquias fúnebres, que não o sepultasse.
Quando chegou ao mundo dos mortos, queixou-se a Hades, soberano do reino das sombras, da negligência da esposa e pediu-lhe que o deixasse regressar ao mundo dos vivos, apenas por um curto período de tempo, para a castigar.
Porém, assim que se viu novamente à superfície, Sísifo recusou regressar ao mundo dos mortos. Pela sua falta de respeito em relação aos deuses, Hermes, o deus mensageiro e condutor das almas para o Além, decidiu castigá-lo pessoalmente: Sísifo foi condenado, no reino dos mortos, a empurrar eternamente uma rocha até ao cimo de uma montanha. Uma vez atingido o cume do monte, a pedra caía invariavelmente e regressava ao ponto inicial. Este processo seria sempre repetido até à eternidade.


Tema

O tema do poema é a luta permanente e persistente do homem para alcançar os seus objetivos, não se contentando com menos que o todo, o absoluto: “De nenhum fruto queiras só metade” – v. 10).


Estrutura interna

1.ª parte (1.ª estrofe) – O sujeito poético aconselha ou incentiva o ser humano a não desistir e a ser ambicioso, dando como exemplo uma caminhada.

2.ª parte (2.ª estrofe) – O sujeito poético defende que o ser humano deve ser persistente na realização dos seus sonhos.

* * * * * * * * * *

1.ª parte

O sujeito poético aconselha o «tu» a recomeçar o percurso de vida a cada momento, de forma tranquila e persistente, ainda que o caminho seja difícil: “Nesse caminho duro”.

O «eu» usa o verbo «recomeçar» no modo imperativo (e não o verbo «começar»), visto que não se está a referir ao início de um percurso, mas a relembrar ao «tu» a necessidade de recomeçar em cada momento.

O modo imperativo tem um valor de exortação e incitamento do «eu», dirigido ao «tu».

As reticências traduzem uma ideia de continuidade, reforçando o valor do prefixo «re» da forma verbal «recomeçar»: a tarefa já foi executada anteriormente, ou seja, é necessário fazer um caminho que já se percorreu, tendo consciência de que tudo tem de se reconstruir e refazer. É necessário recomeçar repetidamente.

O «eu» lírico aconselha que a tarefa seja encarada com tranquilidade e vagar: “Se puderes, / Sem angústia e sem pressa.” – vv. 2-3.

Ele alerta o «tu» para a dificuldade do caminho (“Nesse caminho duro”), mas procura suavizar a ideia através de uma atitude mais otimista, que valoriza o esforço empreendido: a pessoa a quem o «eu» se dirige é incentivada a assumir-se como senhor(a) do seu destino e a usufruir das sucessivas oportunidades que a vida lhe oferece na busca de realização, trilhando o seu caminho de forma autónoma: “os passos que deres / […] Dá-os em liberdade”. O recomeço deve ser feito sempre em liberdade, isto é, de forma autónoma, por livre escolha.

O «tu» deve ser também perseverante (“Enquanto não alcances / Não descanses” – vv. 8-9), inconformado e exigente (“De nenhum fruto queiras só metade” – v. 10). A metáfora presente neste último verso realça a importância de lutar até ao fim pela concretização dos seus sonhos, não os deixando pela metade.

As formas verbais no presente do conjuntivo («alcances», «descanses», «queiras») traduzem os conselhos do sujeito poético relativos ao valor da persistência e do esforço na construção do projeto futuro.

As consoantes sibilantes e os veros curtos do início do poema conferem-lhe um ritmo lento, o qual se adequa à serenidade que o sujeito poético defende (v. 3).

2.ª parte

O pomar está cheio de frutos que, mesmo depois de alcançados e degustados na totalidade, deixarão na boca do Homem um sabor a falsidade.

O sonho é aquilo que fez a humanidade avançar, pois obriga o ser humano a lutar pela sua concretização: “Sempre a sonhar.” (v. 14),

É possível associar estes versos a outra figura da mitologia: Tântalo. O seu castigo consistia na perpétua tentativa frustrada de alcançar os frutos que saciariam a sua fome. Assim se justifica que o sujeito poético aconselhe a ir “colhendo / Ilusões sucessivas no pomar”. São os frutos que, se não são proibidos, pelo menos são apetecíveis. Porém, não são totalmente satisfatórios: por mais que desfrutemos deles, nenhum «fruto» se exime da sua falsidade. Daí que o sujeito poético / ser humano “nunca [fique] saciado”.

A realidade (“Acordado” – v. 16) é conotada tanto com a concretização, como com o malogro dos sonhos, ideia sustentada na presença do nome «logro», que tanto pode significar «concretização de algo» como «engano».

No verso 18, o sujeito lírico dirige novo apelo ao «tu»: que se recorde de que a sua condição de ser humano lhe confere a responsabilidade de ter uma existência digna, isto é, uma vida na qual não se resigne à mediocridade e em que lute pelos seus ideais.

Os versos 19 e 20 concretizam a oposição entre o sonho e a realidade. A loucura associa-se ao sonho, na medida em que este se relaciona com a capacidade de perseguir algo que parece irreal. No entanto, é a aptidão de assumir esta loucura com «lucidez», isto é, com noção concreta da realidade, que permite ao Homem realizar um percurso em direção à concretização dos sonhos, em virtude do qual lhe será possível construir-se a si próprio e, portanto, “reconhe[cer-se]. (adaptado de Entre Nós e as Palavras 12, Alexandre Pinto e Patrícia Nunes, Santillana).

O Homem é um ser lúcido («Acordado», «lucidez») e a sua condição enquanto tal obriga-o a cair e a levantar-se, a ser derrotado e a lutar de novo, sempre consciente dos seus atos.

Em suma, nos três versos finais, ressalta a ideia de que o ser humano não pode esquecer a sua condição humana e que a loucura – isto é, o sonho – só é verdadeiramente seu quando é ele próprio a controlá-lo.


Título

▪ No mito grego, Sísifo é condenado a realizar eternamente uma tarefa absurda, pois os seus esforços são inglórios e a tarefa tem de ser continuamente reiniciada.

▪ No poema, o mito de Sísifo associa-se à condição humana, pois, tal como ele, o Homem é obrigado a reiniciar constantemente as suas lutas, que redundam frequentemente em fracasso. Contudo, o Homem mostra-se digno pela sua capacidade de recomeçar continuamente o percurso e continuar a sonhar a concretização desses sonhos.

▪ Sísifo é, afinal, uma metáfora do caminho do Homem em direção à concretização do sonho. É o símbolo do esforço incessante e persistente, presente no gesto sacrificial de rolar continuamente a pedra até ao cimo da montanha, bem como do inconformismo e do incentivo à procura de liberdade e de luta pela concretização dos sonhos. E é isto que dá sentido à vida do ser humano.

▪ Por outro lado, o mito assemelha-se ao trabalho do poeta: a criação poética. De facto, Sísifo, perante a tarefa que repete quotidianamente (rolar a pedra até ao cimo da montanha, sabendo que cairá quando chegar ao cume e que terá de a fazer subir novamente), recupera e recomeça o seu trabalho sem fim.

▪ De modo semelhante, o trabalho de criação poética, para o poeta, nunca estará completo, daí que o seu trabalho não tenha também fim com as suas palavras, os seus poemas. É uma tarefa infindável, tal como a de Sísifo.


O poema enquanto hino à condição humana

Óscar Lopes afirma que este poema é um hino à condição humana, como parece sugerir o verso 18: “És homem, não te esqueças!”.
De facto, a composição valoriza o sonho e a liberdade como valores que devem estar na base da ação humana.
Por outro lado, defende o espírito de resistência e de insubmissão do ser humano, espírito esse que é simbolizado pelo esforço de superação sugerido pela retoma sucessiva da tarefa, por Sísifo.
Além disso, o poema apresenta o Homem como um ser condenado a carregar a sua cruz até ao fim da sua vida, «sem angústia e sem pressa», «em liberdade» (isto é, por livre escolha), até alcançar o «fruto desejado».

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