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quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

A Cor do Dinheiro - 10/12/2020

A nostalgia da infância em Fernando Pessoa

 A nostalgia da infância

. A nostalgia constitui um conceito diferente da saudade (por exemplo, a saudade de alguém ausente). O sentimento da nostalgia é a lembrança de uma felicidade longínqua e aparentemente perdida, como se o passado fosse, por natureza, melhor do que o presente.

. Por outro lado, a infância é um motivo literário muito antigo e diretamente associado a valores como a pureza do ser humano e a inocência que o estado adulto já não permite. Encarada como uma espécie de paraíso perdido, a infância provoca muitas vezes atitudes nostálgicas.

. A decetividade que caracteriza o presente do eu lírico leva-o frequentemente a manifestar-se nostálgico em relação à infância.

. O tempo da infância, porém, é idealizado, sendo apresentado como um símbolo da inconsciência, ingenuidade, inocência e felicidade (ou seja, uma época dourada que se associa à ausência da dor de pensar) e do sonho (isto é, do refúgio num mundo de fantasia que permite ao eu libertar-se das amarras da realidade).

. Insatisfeito com o presente e incapaz de o viver em plenitude, o eu poético refugia-se numa infância idealizada, regra geral, desprovida de experiência biográfica e submetida a um processo de intelectualização. De facto, trata-se de uma nostalgia imaginada, intelectualmente trabalhada e literariamente sentida.

. O próprio eu tem consciência de que a infância é uma época idealizada, visto que, na realidade, nem enquanto era criança ele parece ter sido feliz: “E toda aquela infância / Que não tive me vem, / Numa onda de alegria / Que não foi de ninguém” (poema “Quando as crianças brincam”).

. Deste modo, a evocação da infância não passa de uma tentativa infrutífera de evasão da melancolia do presente através de um passado que, porque concebido apenas ilusoriamente como um paraíso perdido, acaba por não permitir ao eu libertar-se da tristeza, do tédio e da angústia que o atormentam.

. Para Pessoa, a infância é o passado irremediavelmente perdido, o tempo longínquo em que era feliz sem saber que o era, o tempo em que apenas sentia, inconsciente daquilo que sentia, sem pensar. Era o tempo em que ainda não procurava conhecer-se e, por isso, era um ser uno, não fragmentado em diversos «eus».

. A passagem da infância à idade adulta não é um processo evolutivo e tranquilamente natural; pelo contrário, é um processo de rutura, de corte, de morte: “A criança que fui vive ou morreu?”. Frequentemente, sente-se habitado por «outro», diferente da criança que foi: “Sou outro? Veio um outro em mim viver?”.

. Assim, o passado e o presente opõem-se, não se complementam. O passado – da infância – é alegria, felicidade inconsciente, enquanto o presente é nostalgia, ânsia, desconhecimento de si mesmo e do futuro.

 

Sonho e realidade em Fernando Pessoa

 Sonho e realidade

. Quando falamos de sonho, podemos referir-nos a duas dimensões. Por um lado, sonho, em sentido literal, refere-se à vivência, por alguém adormecido, “de recordações ou de traumas que nesse mundo (chamado onírico) se manifestam, às vezes de forma aparentemente incoerente ou até absurda.” Por outro lado, “o sonho pode referir-se também ao chamado «sonhar acordado»”, ou seja, aos projetos orientados para um futuro que há de vir. Nesse futuro, o que foi sonhado (isto é, desejado) vem a realizar-se ou não.

. Pessoa faz contrastar o sonho e a realidade. O eu lírico não encontra a felicidade na realidade do quotidiano, porque é dominado pela frustração, pelo vazio ou pelo tédio existencial. Então, idealiza o sonho, onde acredita conseguir realizar-se e atingir a plenitude, a felicidade ou o equilíbrio.

. Na sua poesia, o mundo do sonho (o espaço onírico) não funciona como forma de evasão ou escape, mas como um lugar onde o eu acredita que pode recuperar uma experiência perdida (a da infância) ou ser o que não se é no mundo “real”.

. O eu sonhado não é uma outra pessoa; é, sim, uma outra faceta do eu lírico: “Não sei se é sonho, se realidade”. O sujeito sente-se, pois, dividido entre o que é “realmente” e o que desejava ser. Está simultaneamente presente nestes dois mundos: nós somos, de facto, a realidade e sonho que sonhamos; ou, recorrendo às palavras de Shakespeare, “Nós sonhos a matéria de que são feitos os sonhos”.

. Se, na situação anterior, não há uma distinção clara entre o real e o onírico, noutros caso o eu lírico crê que ele próprio se encontra na fronteira entre estes dois mundos: “Entre mim e o que em mim / É o que eu me suponho / […] corre um rio sem fim”.

. No sonho, o eu lírico começa por se imaginar outro, um eu idealizado. Esse eu sonhado pode viver num outro espaço (uma ilha, um país, um palácio) onde, num primeiro momento, tudo parece perfeito e ele acredita ter encontrado a felicidade e a harmonia: “Ali, ali [na ilha do sonho] / A vida é jovem e o amor sorri.”. No entanto, num segundo momento, após uma reflexão mais atenta, o sujeito lírico constata que esse estado de perfeição é ilusório e que o sonho não é solução para os problemas existenciais que o minam: “Ah, nessa terra também, também / O mal não cessa, não dura o bem”.

. Assim sendo, o sonho não resolve as insatisfações e as ansiedades do eu lírico. Isso sucede porque o sonho é uma ilusão ou porque não é resposta para os problemas que se geraram: o tédio, o vazio existencial, as saudades da infância perdida.

. Por outro lado, o sonho pode ser, muitas vezes, uma forma de evasão para um eu poético que se sente prisioneiro no interior de si mesmo: “Quem me amarrou a ser eu / Fez-me uma grande partida. // Debaixo deste amplo céu, / Nem tenho vinda nem ida”.

. O poeta “passou a sua vida” a pensar e a sonhar. De facto, autoanalisa-se, recorrendo permanentemente ao pensamento, tentou iludir a vida através dos sonhos, mas, porque se entregou intensamente ao pensamento e se virou para o sonho, acabou por se separar do mundo e não atingiu a felicidade.

. Em “Não sei se é sonho, se realidade”, o poeta manifesta a esperança de alcançar a felicidade através do sonho, no entanto acaba por duvidar da possibilidade de viver tal forma de felicidade. E conclui mesmo que é impossível vivenciar a felicidade no sonho, pelo caráter efémero do bem e permanente do mal, o que gera um grande desânimo e desilusão.

. No final, o eu poético conclui que não é no sonho, de facto, que podemos encontrar a felicidade, mas no íntimo, no interior de cada ser humano.

. No poema “Entre o sono e o sonho”, o eu poético apresenta-se dividido entre aquilo que é, na realidade, e o que desejava ser no sonho. O real é pautado pela inatividade e pela inércia, enquanto o mundo onírico se caracteriza pela idealização, pelo que o eu desejaria ser. O «rio» constitui, no poema, a fronteira que separa a realidade do sonho; enquanto aquele flui, o eu está parado. Sempre que o eu se tenta aproximar da realidade, o rio já passou, pelo que nunca é possível aproximar o eu real do eu sonhado.

 

A dor de pensar em Fernando Pessoa

 A dor de pensar

. O pensamento permite ao homem ter consciência da sua existência (logo, na perspetiva de Fernando Pessoa ortónimo, aqueles que pensam são superiores aos inconscientes).

. Contudo, o pensamento sistemático, a razão omnipresente provoca a dor de pensar no eu, dor essa que decorre de uma tendência permanente para refletir sobre a realidade e para intelectualizar as suas emoções (terá sido mero acaso o facto de Pessoa, em “Autopsicografia”, ter selecionado a dor como exemplo da sua teoria poética?).

. O poeta tem consciência de que existe um enorme fosso entre aquilo que sente e o que pensa que sente, ou seja, está consciente de que não consegue exprimir o que realmente sente, o que gera nele angústia. Esta constatação leva-o a desejar não pensar.

. A dor de pensar – de ser lúcido – é a consequência da constante racionalização das emoções, da análise, da abstração. A intelectualização excessiva causa sofrimento, dor, angústia e frustração. De facto, o poeta sofre, porque é incapaz de se libertar da razão / do pensamento permanente e omnipresente, que o leva sistematicamente a refletir sobre a realidade e a intelectualizar as suas emoções. Assim sendo, torna-se impossível desfrutar da sua vida e vivências.

. O poeta apresenta-se angustiado e abúlico, centrado sobre si mesmo, sofrendo a dor de pensar, a distância entre o sonho e a realidade e, sobretudo, dividido entre a inconsciência e a consciência, entre o sentir e o pensar, numa tentativa de ultrapassar a infelicidade e a angústia geradas pelo pensamento.

. Para ultrapassar a dor de pensar, o poeta deseja ser inconsciente e apenas sentir. É o que sucede nos poemas “Ela canta, pobre ceifeira” e “Gato que brincas na rua”, bem como em “A lavadeira no tanque”, nos quais ele exprime o desejo de ser inconsciente como a ceifeira ou irracional como o gato, para, assim, fugir à dor de pensar e ser feliz.

. No entanto, o eu acredita que aquele que não pensa, que é inconsciente, não pode ser verdadeiramente feliz, visto que não tem consciência da sua suposta felicidade. Assim sendo, a tentativa do poeta de ser libertar da dor de pensar acaba por redundar em fracasso.

. Em “Ela canta, pobre ceifeira”, manifesta, de facto, o desejo de ser inconsciente (como o gatou ou a ceifeira), mas tendo consciência disso. Porém, este desejo é um paradoxo, é impossível de concretizar, o que mostra que é impossível libertar-se da dor de pensar e, consequentemente, que a tentativa de alcançar a felicidade é igualmente impossível de se concretizar. Com efeito, o poeta aspira à vida instintiva e dirige-se à ceifeira, encantado pelo seu cantar, exprimindo a aspiração impossível de ser conscientemente inconsciente.

. A ceifeira e o gato são felizes, porque não pensam, enquanto o poeta não alcança a felicidade porque é racional.

 
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