Português: 16/12/22

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Análise do poema "Mangueira", de Gonçalves Dias


     Adivinha-se um sujeito de enunciação e alguém que escuta. Isto deduz-se pelo tempo e pessoa dos verbos.
    As duas primeiras estrofes descrevem a natureza, uma natureza alegre, rica e específica do Brasil (ex.: mangueira). A referência ao "passarinho" parece um pouco deslocada, porque geralmente as aves referidas são o sabiá, a arara, a jandaia, etc. Apesar de poder ser um elemento do Brasil, está descrito em moldes europeus.
    Temos depois a descrição das personagens:
        - viandante, símbolo romântico do ser errante;
        - mancebo, símbolo do amor.
    Quanto à estrutura, esta é repetitiva, com ritmo muito marcado.
    Quanto à linguagem, temos poucos adjetivos e um vocabulário muito simples com elementos clássicos: mancebo, mil suspiros, anosa, etc.
    Elementos românticos:
        - natureza no sentido de abrigo e confidente;
        .- imagem do viandante com tudo o que significa de errância, exotismo, viagem;
        - imagem do mancebo como símbolo da saudade e do amor.

Análise do poema "Marabá", de Gonçalves Dias


             Gonçalves Dias (1823-1864) foi um poeta e dramaturgo brasileiro, considerado o grande poeta indianista da geração romântica brasileira. De facto, o Romantismo deu ao tema do índio grande relevância e à literatura uma feição nacional. O autor nasceu nos arredores de Caxias, no Maranhão, no dia 10 de agosto de 1823, sendo filho de um comerciante português e de uma mestiça. Em 1862, deslocou-se à Europa para fazer tratamentos de saúde, porém, não obtendo resultados, regressou ao Brasil em 1864, tendo falecido a 3 de novembro, a bordo do navio francês Ville de Boulogne.

            Este poema, que relata a luta de uma jovem mestiça para ser aceite e amada pela tribo, foi publicado no livro Últimos Cantos, em 1851. A composição é constituída por onze estrofes – seis quadras e cinco sextilhas, num total de cinquenta e quatro versos, de esquema rimático AABCCB / DEFE, contendo, portanto, rima emparelhada, cruzada e interpolada. No que diz respeito à métrica, os versos oscilam entre os cinco e as onze sílabas métricas.

            A única palavra que constitui o título – Marabá – é de origem indígena, da tripo tupi-guarani, e era usada pelos índios daquela tribo para designar as pessoas indesejáveis no seu seio. Para eles, quando uma criança nascia com uma qualquer deficiência física ou nasciam gémeos – no caso, o que nascia por último poderia trazer tanto benefícios como malefícios –, mas, como receavam desgraças para a tribo, preferiam sacrificar a criança. A palavra era usada também para indicar as pessoas nascidas do encontro de indígenas com brancos, mestiços portanto. Deste modo, podemos concluir que essas pessoas eram discriminadas pela tribo, pois consideravam-nas imperfeitas e indignas da sua cultura.

            No que diz respeito à estrutura do poema, temos uma estrutura dialógica entre Marabá e um interlocutor masculino indeterminado. Somos colocados perante quatro situações:

1.ª) Referência aos olhos.

2.ª) Referência ao rosto.

3.ª) Referência ao colo.

4.ª) Referência aos cabelos.

            Em todos os casos, o sistema é o mesmo: é proposta uma situação por Marabá, mas logo a seguir recusada por alguém, que acrescenta algo mais.

            Desde os primeiros versos, encontramos um «eu» poético feminino solitário (“Eu vivo sozinha”), que não é aceite pelo outro e que, por isso, começa a questionar essa rejeição: não seria ela filha do mesmo deus, para ser rejeitada daquela forma. “Acaso feitura / Não sou de Tupá?” (Tupá ou Tupã era uma divindade de origem indígena que designava o trovão). A resposta é-lhe dada por uma figura anónima: ela é «Marabá», ou seja, produto da mistura do índio e do branco. Quer isto dizer que a jovem é rejeitada por ser fruto da miscigenação; assim sendo, o seu interlocutor será uma pessoa branca ou indígena, ou ambas. Por outro lado, fica desde já claro que a fala do «eu» lírico é reiterada por quem fala com ela. A rapariga apropria-se do discurso dos outros, porque está tomada por eles, porque se constitui neles, de forma que, mesmo com o uso de aspas e travessões, não é tão óbvio como poderia parecer à partida distinguir quando/quem está a falar.

            Seja como for, fica desde já estabelecido que Marabá está cercada por uma barreira étnico-racial intransponível e que a prende em si mesma: não é puramente indígena nem é puramente europeia. No fundo, estamos perante uma denúncia e crítica do eurocentrismo, que não aceitava a miscigenação, mesmo que esta constituísse uma realidade comum a todos os povos, incluindo os europeus. Porém, há que notar que, no poema, o indígena também a nega, pelo que a atitude de rejeição é unânime, o que faz com que ninguém aceite Marabá como ela é e mostre que a grande fronteira que é exposta no texto resida na origem étnica da jovem, que a isola daqueles com quem ela se deveria relacionar.

            Porém, Marabá não se conforma e prossegue a sua busca inquietante, argumentando: os seus olhos são garços, são da cor das safiras, têm luz das estrelas, um brilhar meigo, etc., ou seja, são esverdeados, precioso, brilhantes e meigos, em suma, muito belos. Este conjunto de metáforas presente na segunda estrofe associa a figura da mulher à natureza, através de um conjunto de nomes que nomeiam elementos naturais e que estão presentes no ambiente brasileiro: safira, estrelas, nuvens, mar. Dito de outra forma, ao ver-se desprezada pelo seu interlocutor, a jovem enumera as suas qualidades, as quais deveriam ser suficientes para a sua tribo a aceitar. Sucede, porém, que essa é a forma como Marabá se vê, não como é vista pelos outros, mesmo que tenha olhos belos.

            De facto, a segunda e a terceira estrofes veiculam dois olhares diferentes acerca da mulher: o primeiro é o dela própria (“Meus olhos são garços, são cor das safiras”); o segundo é o do outro (“Teus olhos são garços, / Responde anojado; mas és Marabá”). A jovem autocontempla-se: traços das sua beleza de origem europeia são comparados com elementos da fauna e da flora tropical, como os olhos cor de anajá (tipo de palmeira do Maranhão); ela autoelogia-se, na tentativa de convencer e seduzir um elemento do género masculino, ao comparar a cor dos seus olhos à safira, ao mar e ao «céu anilado»; a cor da sua pele à brancura dos lírios e às “areias batidas do mar”; enfatiza que a sua te é mais clara que as “aves mais brancas, as conchas mais puras”; o seu cabelo é anelado em «ondas» e com tano fulgor como o “oiro mais puro” e com a beleza de um beija-flor.

            Em suma:

1. Os olhos de Marabá são garços (esta característica remete para a sua origem europeia), mas logo a seguir são recusados e sugeridos os olhos “bem pretos”.

2. O seu rosto é branco, mas é ultrapassado pela preferência por um rosto moreno.

3. O colo é flexível e elegante, mas também é recusado, sendo que o que se propõe não difere muito.

4. Ela tem cabelos louros e anelados, mas o homem prefere-os lisos.

            Por outro lado, o retrato de Marabá pode ser sintetizado da seguinte forma:

• é uma índia mestiça, por oposição à índia genuinamente brasileira;

• é bela, mas a sua beleza é desprezada pela sua própria comunidade;

• tem olhos garços (verdes);

• a sua pele é alva (da cor dos lírios);

• os cabelos são louros, longos e anelados;

• vive solitária, desprezada pela sua tribo;

• vive desiludida, por sofrer de discriminação.

            Este quadro permite concluir que temos aqui presente também a oposição patente em Iracema: a oposição entre a índia e a virgem loura. Além disso, observando as características desta mulher, podemos concluir que o seu retrato é idealizado e não corresponde aos ideais indianistas, que valorizavam antes a figura do índio, que não está obviamente representada nesta mulher branca. Marabá é descrita através de comparações que a associam a elementos naturais como os lírios, o sol, o mar, as safiras, as conchas e a flor de cajá, ou contrastivas com os traços preferidos pelos indianistas, os quais não deixam lugar a dúvidas acerca do facto de se entender que os indígenas, tal como a natureza exuberante, constituíam símbolos pátrios, isto é, modelos a serem seguidos e difundidos, visando a consolidação da identidade. O desprezo a que Marabá é votada pelos seus relaciona-se com a noção segundo a qual as suas características físicas não correspondiam ao que os indianistas sustentavam, daí que ninguém a procure, que os homens fujam da sua figura e que não pertença à criação pagã, por ter sido excluída do povo de Tupã.

            O verso seguinte confirma a rejeição: “Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes”. A partir daqui, a mulher inicia uma jornada de busca desenfreada pela sua identidade, colocando-se em face de si mesma para mostrar ao outro um sujeito que este não reconhece nela. Marabá enumera um conjunto de traços, na sua ótica positivas, que deveria levar à sua aceitação por parte dos outros: o rosto alvo, o colo mimoso, os cabelos louros. No entanto, as respostas do seu interlocutor têm sempre como fundamento a desconstrução dos seus argumentos. Cada um deles é contestado e rebatido: ela é branca, mas o outro prefere um rosto «corado» e crestado pelo sol do deserto; o colo é mimoso, mas o outro prefere o da “ema orgulhosa” e vaidosa; os cabelos são louros, mas anelados, e o outro prefere cabelos lisos, compridos e de outra cor. O discurso do interlocutor de Marabá assenta no paralelismo adversativo, no sentido de reforçar os seus argumentos, que passam por enfatizar as características do jovem tidas por ele como negativas e que fundamentam a sua rejeição, afundando-a num caos interior.

            Mediante isto, podemos concluir, desde já, que Marabá, no processo de procura de uma identidade, se revela uma figura mutável e multifacetada, pois ela é o que se vê em si, mas também aquilo que o outro vê nela. A necessidade de ser aceite por este fá-la entrar numa jornada em busca de si mesma, durante a qual ela procura salientar os seus traços positivos, para agradar a esse outro. Isto significa que a aceitação de si própria está condicionada à sua aceitação por parte do outro, algo que não acontece e que potencializa a rejeição, o não ser aceite por ser o que é: uma mulher que apresenta traços físicos tanto dos indígenas quanto do europeu branco. Deste modo, Marabá não se encaixa em nenhum dos quadros: não pertence a uma etnia nem à outra. Assim, é destituída do seu lugar de sujeito, o que proporciona uma reflexão sobre a sua condição de cidadã, como o demonstram as duas estrofes derradeiras, que constituem uma espécie de lamento: a jovem sente a impossibilidade, mais por razões que estão fora dela do que dentro. O advérbio «jamais» marca bem a sua solidão.

            De facto, depois de todo o poema nos colocar perante uma cidadã em busca do seu lugar na sociedade, as estrofes finais mostram-nos uma pessoa derrotada: “Jamais um guerreiro da minha arazoia / Me desprenderá: / Eu vivo sozinha, chorando mesquinha, / Que sou Marabá!”. Depois de interiorizar a rejeição de que é vítima, a mulher conclui: “Sou Marabá”. Deste modo, ela parece ter aceitado a condição de que lhe foi imposta pelo outro e, mesmo sofrendo, como se observa em “E as doces palavras que eu tinha cá dentro / A quem nas direi?”, adota o mesmo discurso do outro, contra o qual lutava anteriormente, o que indicia que Marabá abdicou da sua condição de cidadã. Assim sendo, é lícito concluir que a mulher estava mais próxima de se tornar cidadã quando o outro a rejeitava, rebatendo os seus argumentos, do que agora, quando se vê como Marabá, isto é, como mestiça. O discurso do interlocutor venceu.

            O poema põe em discussão a importância da questão da alteridade na construção da identidade. Marabá, a índia mestiça, miscigenada, envidou todos os esforços para se afirmar enquanto pessoa autêntica, com as suas características particulares e, naquele momento, inovadores porque diferentes entre a sua tribo. No entanto, a sua identidade é determinada pelo confronto de visões ideológicas opostas que são traduzidas nos discursos conflituantes dela própria e do outro com quem dialoga. Marabá não se consegue afirmar como o ser que vê em si, mas como é vista pelo interlocutor. Assim sendo, o processo de construção da identidade consolida-se na coletividade: negada e rejeitada por toda a sua comunidade, torna-se impossível para ela a autoafirmação, o que faz com que a identidade mão seja um fenómeno solitário, antes necessite de ser visto pelo outro. Por outro lado, por detrás do discurso do interlocutor de Marabá, um discurso antimiscigenação, está a ilusão de uma raça pura, como se fosse possível a existência de um qualquer povo que não sofresse algum tipo de miscigenação. Esta ideologia, no texto, sobrepõe-se à realidade, face à derrota da jovem. Deste modo, a identidade do indivíduo constrói-se em sociedade. Por outro lado, convém ter presente que esta questão da miscigenação não é bem vista na poesia da época, dado que o contacto entre os nativos do Brasil e quem vinha de fora era sempre sinónimo de violência, degradação e morte. Assim sendo, Marabá constitui uma espécie de metonímia do resultado da corrupção do povo nativo por parte do homem europeu; um lamento de toda uma etnia que se vê ameaçada pelo invasor branco e que, por isso, defende, com um instinto de preservação, a superioridade da sua beleza étnica.

            No que diz respeito a influências, no poema podemos encontrar diversos traços românticos: a jovem indígena mestiça, com olhos claros e cabelos loiros e anelados, que deseja usar a arazoia, o saiote utilizado no ritual de casamento; o lamento pela sua solidão na tribo; a rejeição no coração dos guerreiros; Marabá enquanto símbolo da incompreensão amorosa: recusada por todos, fica só; a miscigenação; o exotismo que percorre o poema. No entanto, é possível detetar também características da cantiga de amigo: o sujeito poético feminino expõe a sua queixa amorosa a um interlocutor, lamentando o desprezo a que é votada.

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