Português: 17/08/19

sábado, 17 de agosto de 2019

Tempo do discurso de A Sibila

            Toda a história é uma analepse, pois, em 1953, quando Germa evoca a sua tia, já toda a família desapareceu, a Vessada está abandonada e tudo o que a rodeia sugere degenerescência e ruína. A evocação de Quina – seu nascimento e infância, sua adolescência, maturidade, velhice e morte – é constantemente cortada por digressões analépticas, antecipações, comentários e juízos de valor do narrador ou da personagem narradora (Germa), de tal modo que acaba por constituir uma história de três gerações que se complexifica e aprofunda à medida que se desenvolve, sugerindo, no final, a sua pretensão de "esclarecer o homem e trazer-lhe a solução de si próprio".
            Da existência de dois narradores e do facto de o narrador de 1.º nível retomar a voz de Germa, narradora de 2.º nível, para intervir, comentar, aprofundar e conduzir a narrativa à sua maneira, estilhaçando a ordem cronológica com o recurso à analepse e à prolepse, etc., resulta um discurso fragmentado, descontínuo, digressivo.
            Eis alguns exemplos de analepses, prolepses, elipses e sumários:
- grande analepse: nascimento de Quina (p. 9, 3 períodos);
- analepse dentro dessa analepse: primeiro encontro entre os pais de Quina (pp. 9-11);
- prolepse dentro da segunda analepse: 11 anos depois, dá-se o casamento quase inexplicavelmente secreto dos pais de Quina, que continuam a viver separados (pp. 11-12);
- episódio seguinte, dentro da segunda analepse: Maria foge para casa do marido (pp. 12-13);
- outro episódio dentro da mesma analepse: o pai de Quina liga-se a uma amante, Isidra (p. 13);
- analepse do episódio anterior: história da mãe e da infância de Isidra (pp. 13-14);
- analepse do mesmo episódio, mas posterior à anterior analepse: descrição das circunstâncias em que Isidra conheceu o pai de Quina (pp. 15-17);
- regresso à vida conjugal entre os pais de Quina (pp. );
- nova analepse: o incêndio na casa dos pais de Quina (pp. 18-19);
- grande prolepse: a mãe de Quina enviuvou há 40 anos, está velha, tonta e confunde um seu filho com o falecido marido;
- elipses: "Onze anos depois, casavam." (p. 11);
- sumários: "(...) As mulheres perseguiam-no, vigiavam-no, confiando no ciúme umas das outras para o privar duma preferência fatal que lhes arrebatasse as esperanças para sempre. Os seus amores com Maria passaram despercebidos, tanto ele temia o escândalo das rivais, mais pelas suas lágrimas que pelas suas ameaças." (p. 11).

            Também encontramos vários exemplos de silepses, entre as páginas 103 e 108: fala-se da vaidade que Quina tem nos seus dons miraculosos; passa-se à agonia de um velhote; passa-se depois a falar de Domingas, uma amortalhadeira que anda sempre a falar das qualidades que o marido tem, e dos maridos que teve, e que aliás mais tarde se sabe ser ela quem os envenenou; e a seguir, a pretexto do velório, fala-se do pároco da terra e das complicadas relações sociais que ele mantém com Quina e com a mãe de Quina. Em suma: são quatro sequências narrativas simplesmente justapostas num espaço de seis páginas apenas.

Tempo de A Sibila

            Esta obra obedece a determinados condicionalismos: evocação na memória de Germa, inspiração na tradição oral dos contadores de histórias e quase ausência de intriga. Por isso, o tratamento do tempo tem de ser estudado à luz desses condicionalismos. Assim, os narradores não tratam de forma linear os cem anos do tempo da história.
            A história de Quina é uma grande analepse na memória de Germa; dentro desta analepse, há muitas analepses e prolepses. O discurso segue um movimento de vai-e-vem, é frequentemente elíptico, fragmentando o tempo. As sucessivas digressões do narrador desprezam a cronologia normal, os acontecimentos são apresentados de forma acumulativa e caótica, o que favorece o discurso iterativo, necessário para recuperar antecedentes de Quina e para ilustrar a vida das personagens e preencher longas pausas; o discurso repetitivo é também frequente, há necessidade de retomar muitos acontecimentos deixados em suspensão.
            Da fragmentação do tempo, das sucessivas repetições, cria-se a imagem de uma realidade sempre em fuga: quando um acontecimento é retomado, quando um objeto é novamente analisado, há algo de novo, de sempre novo. O leitor é convidado a ir à descoberta das semelhanças e das diferenças. Procura-se o que está oculto, procura incessante e nunca acabada.

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