Português: Mário de Carvalho
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quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Características da obra de Mário de Carvalho no conto «Corpos incompletos»

  • O gosto pelo fantástico: a atribuição de vida a estátuas e bustos de Lisboa.

  • As situações de quase absurdo: estátuas e bustos assumem capacidades, comportamentos, sentimentos e estados próprios dos seres humanos.

  • Fina ironia: «Mas lembrou-se, ao fim dumas horas, de que era um rei enérgico.».

  • O domínio da língua portuguesa: adjetivação expressiva («subtil rugido», «a pronúncia sábia e feroz», «esbaforido», «olhares rancorosos», «muito domésticos»); diminutivos («saltinhos», «alegretes», «ceguinha»); recursos estilísticos diversos (ironia, etc.).
  • A inventiva vocabular: «maçadoria», «sopesou», «fitando», «revoada de clipocloques», «desacompanhados», «convergência objetiva», «parangonas».

Correção do questionário do conto "Corpos incompletos"


 1. O recurso estilístico é a personificação.

1.1. As expressões são as seguintes: «a estátua lia perfeitamente», «estado de deslumbramento», «ler e indignar-se», «deliberou manifestar-se».

2. Após o processo de restauro e limpeza, a estátua do marechal Saldanha verificou que a sua existência tinha melhorado, conseguir até ver, a grande distância, pormenores impossíveis a qualquer ser humano. Foi ao ler um conto de Pere Calders, que estava a ser lido dentro de um autocarro por um jovem, que decidiu manifestar-se por não concordar com o conteúdo da obra: afinal, as estátuas tinham vontade própria e alma, não eram apenas habitadas por personagens que saíam delas à noite.

3.1. O pressuposto apresentado é o conhecimento de que as estátuas de Lisboa comunicam com facilidade entre si.

3.2. O recurso estilístico é a ironia, a qual procura transportar os leitores para a ficção que está a desenhar-se. O universo fantástico deixa de estar apenas no domínio da narrativa e do narrador para ser partilhado pelos leitores.

4.1. O conector «Mas» veicula uma ideia de contraste, de oposição.

4.2. Apesar de todas as estátuas estarem desejosas de assumir movimento, aguardavam a reação do rei fundador, daquele a quem mais autoridade reconheciam.

4.3. Embora constitua um símbolo de força e coragem, a estátua de D. Afonso Henriques ponderou durante longo tempo («umas horas») a atitude a assumir, simplesmente por estar a considerar o peso do escudo, da espada e da malha de ferro. O narrador parece estar a querer caracterizá-lo, comicamente, como preguiçoso e comodista.

5.1. Quem deu o alarme foi o guarda Malaquias de Sousa, que rapidamente informou o sargento. Todos eles correram à janela para verem o que se passava, ficando, naturalmente, cheios de medo, considerando o sargento que a situação exigia decisões dos seus superiores. No largo, a multidão de estátuas mostrava-se ameaçadora, com espadas, pistolas, canhões... Até os leões estavam irrequietos. No fundo da manifestação, porém, encontravam-se as estátuas de Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco a conversar na presença da Nudez Forte da Verdade.

5.2.1. O recurso expressivo é a hipálage, que faz transitar o sentimento da personagem (nervosismo) para um objeto que ela carrega - a espada. Parece intensificar-se, desta forma, a possibilidade de violência se vivia.

6.1. O que provocou este «frémito» foi a concentração de bustos que quiseram também manifestar-se e avançavam pela Alameda de D. Afonso Henriques. A consequência imediata que o narrador identifica é a reação de um homem que comia um bife no restaurante Portugália, que liberta um «Ena pá!», apercebendo-se da agitação. No entanto, o ruído era tão intenso que houve quem ligasse para a polícia a protestar.

7. O diminutivo «saltinhos» destaca a pequenez dos pulos possíveis aos bustos, enquanto no adjetivo «alegretes» o sufixo com valor diminutivo transporta uma ideia de ironia face à atitude dos bustos.

8. As frases conferem ao texto mais um elemento de comicidade. O uso do presente na primeira frase («Alguns agentes ainda estão hoje...») remete exatamente para o insólito da situação e para a falta de respostas legislativas e regulamentares.

9. Apesar da gravidade da situação e dos acontecimentos, o ministro responsável acabou por assumir uma atitude de indiferença («deixem lá, isso passa»), como se não ouvisse aquilo que estavam a dizer-lhe. E respondeu apenas por estar farto de telefonemas, não pela gravidade da situação.

10. Cansadas de estarem no largo a olhar, sem sequer ter havido qualquer acontecimento, as estátuas, quando se aperceberam da chegada dos bustos, decidiram retirar-se, Os bustos, depois de umas assobiadelas, regressaram também aos seus pedestais.

11. A relação entre estátuas e bustos não era boa. Em primeiro lugar, as estátuas decidiram manifestar-se e não convocaram os bustos, acabando por ser estes a decidirem-se também  pela concentração, considerando que não seriam inferiores, apesar de não terem um corpo completo. Quando os bustos chegaram ao lugar da concentração, são as estátuas que decidem, numa atitude de superioridade, afastar-se com dignidade, não querendo misturas, como se a presença dos bustos fosse indigna. Repare-se que os bustos referidos são de poetas...

11.1. As estátuas e os bustos colocaram-se em posição contrária à que tinham anteriormente.

12. A imprensa, no dia seguinte, apesar de ter já títulos sobre a insegurança e o vandalismo, desconhecendo as verdadeiras razões dos acontecimentos, depressa os substituiu por algo que atrairia mais as atenções: «um jogador de bola agrediu a própria mão, ceguinha». Logo que possível, o poder político procurou legislar para que este tipo de manifestações não mais fosse possível, determinando que se prendessem com cabos de aço todas as estátuas e bustos, como se a solução para os problemas fosse «acorrentá-los». Os comentadores, formadores de opinião, criticaram a medida principalmente do ponto de vista financeiro: seria uma medida dispendiosa. Evitaria, porém, outros desassossegos, outras manifestações.

13. Não é possível precisar o momento exato do início das ações da estátua do marechal Saldanha, que ocorreu durante o dia, mas quando a manifestação começou efetivamente, após «umas horas» de ponderação da estátua de D. Afonso Henriques, «A noite já ia adiantada.». O decurso do cortejo e da concentração verificou-se durante a noite, sendo que «A manhã foi encontrar estátuas e bustos voltados para o lado oposto ao do costume». O dia seguinte trouxe novos acontecimentos; «nessa noite» outras notícias desviaram as atenções da manifestação das estátuas e dos bustos que, «um mês depois», tentaram repetir as suas ações.

14. No que diz respeito à ciência ou focalização, o narrador é predominantemente omnisciente («cá de longe, a estátua lia perfeitamente"; «D. Afonso Henriques sopesou os inconvenientes de acartar com o peso de escudo, espada e malha de ferro. Mas lembrou-se, ao fim dumas horas, de que era um rei enérgico.», apesar de, nalguns momentos, parecer apenas dedicar-se à focalização externa (como é o caso do momento em que assume o desconhecimento acerca do modo de comunicação das estátuas).

15. Os corpos dos protagonistas do conto são «corpos incompletos». O adjetivo «incompletos» pode remeter para o facto de as estátuas, como se refere no texto, serem apenas reproduções exteriores, «em corpo inteiro», do corpo humano, «(...) como se as estátuas fossem o invólucro ou repositório e não tivessem de próprio nem vontade nem alma», e os bustos serem, até no plano material/físico, corpos inacabados, «mutilados», embora compensassem essa deficiência com «mais concentração de espírito». Por outro lado, enquanto reprodução dos seres humanos e animais, no decorrer da ação do conto as estátuas procuram completar a inteireza daqueles, adotando capacidades e atitudes que lhes são próprias.


Ligações:
    👉 Texto do conto.
    👉 Questionário.

Questionário sobre o conto "Corpos incompletos"

 1. O conto está construído com base num recurso estilístico. Identifique-o.

    1.1. Transcreva dos dois primeiros parágrafos expressões que justifiquem a resposta anterior.

2. Apresente as circunstâncias que originaram os acontecimentos narrados e justifica a atitude da estátua do marechal Saldanha.

3. No terceiro parágrafo, o narrador apresenta um pressuposto partilhado pelos leitores.

    3.1. Identifique-o.

    3.2. Identifique o recurso estilístico presente e a sua importância no texto.

4. «Mas todas as estátuas de Lisboa aguardaram a pronúncia sábia e feroz do rei fundador, muito hirto, lá nas alturas do castelo.»

    4.1. Explique o valor do conector que inicia a frase.

    4.2. Justifique a atitude das estátuas.

    4.3. Caracterize a estátua de D. Afonso Henriques, tendo em conta os argumentos que pesaram na sua decisão.

5. Em cortejo, as estátuas dirigiram-se à Assembleia da República.

    5.1. Descreva a reação dos guardas e o ambiente que se verificava entre as estátuas.

    5.2. Atente na expressão «A espada de Saldanha muito nervosa».

        5.2.1. Identifique o recurso estilístico presente e refira a sua expressividade.

6. «... um frémito percorreu o arvoredo da Estefânia.»

    6.1. Indique o acontecimento que provocou este fenómeno e refira as suas consequências.

7. Refira o valor expressivo do uso dos diminutivos na frase «os bustos de Lisboa vieram todos avenida abaixo, aos saltinhos, muito alegretes.»

8. Explique a intencionalidade das duas últimas frases do quinto parágrafo.

9. Comente a atitude do poder político perante a situação.

10. Apresente por palavras suas a forma como terminou a manifestação.

11. Descreva, a partir de elementos textuais, a relação entre estátuas e bustos.

    11.1. Mencione a «convergência» que se verificou entre eles.

12. Comente as repercussões finais da manifestação de estátuas e bustos ao nível do papel da imprensa, da diretiva comunitária e da posição dos formadores de opinião.

13. Refira o tempo em que decorre a ação, transcrevendo as marcas que assinalam a sua progressão.

14. Classifique o narrador do texto quanto à ciência e justifique a sua resposta.

15. Explique o título do conto.


Ligações:
    👉 Texto do conto.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Conto "Corpos incompletos", de Mário de Carvalho


     Restaurada de fresco, a estátua do marechal Saldanha, na praça do mesmo nome, começou logo a sentir melhorias de vista. Distinguia pormenores muito afastados e considerou que tinha valido a pena aquela maçadoria de tapumes, andaimes, lixívias, abrasivos, químicos fedorentos. Um arrumador de automóveis recolhia uma moeda ao pé do centro comercial e, cá de longe, a estátua lia perfeitamente: "República Portuguesa, Cem Escudos".
    Nesse estado de deslumbramento, interessou-se por um jovem que dentro de um autocarro lia um livro. Eram contos do catalão Pere Calders, sobre personagens que habitavam as próprias estátuas e à noite saíam para arejar. O engarrafamento foi tão demorado que deu para a réplica do marechal ler o texto completo, ler e indignar-se. Era como se as estátuas fossem invólucro ou repositório e não tivessem de próprio nem vontade nem alma. E deliberou manifestar-se.
    Como toda a gente sabe, as estátuas de Lisboa comunicam facilmente umas com as outras. Um não sei que fluido, transportado em bicos de pássaros, em rumorejo de folhas, em volutas de metano, em brisas atlânticas, mantém entre elas uma conversação satisfatória. O Adamastor, ali a Santa Catarina, não tardou, e resmungava: "lá está o Saldanha com as dele" e o leão do Marquês emitiu um subtil rugido. O cavalo de D. José piscou mais uma víbora e o monarca, frívolo como era, sorriu-lhe a ideia do movimento. Mas todas as estátuas de Lisboa aguardaram a pronúncia sábia e feroz do rei fundador, muito hirto, lá nas alturas do castelo. D. Afonso Henriques sopesou os inconvenientes de acartar com o peso de escudo, espada e malha de ferro. Mas lembrou-se, ao fim dumas horas, de que era um rei enérgico. E proferiu: "Sus, sus!" Era o que todas as estátuas queriam ouvir, para abandonar os pedestais. A noite já ia adiantada.
    "Meu chefe, meu chefe!". O jovem soldado da GNR, Malaquias de Sousa, entrava esbaforido no gabinete do superior, na casa da guarda da Assembleia da República. O sargento, e outros, não correram, voaram para ver. Todo aquele largo era um mar de estátuas paradas fitando o edifício, algumas em pose ameaçadora. A espada de Saldanha muito nervosa parecia pronta a trucidar. A Maria da Fonte sorria, sinistra, de pistolas ao léu. E as figuras da guerra peninsular arrastavam um canhão basto suspeito. O pior é que os dois leões das escadarias andavam por ali à solta e deitavam olhares rancorosos para o leão do Marquês de Pombal. "Passe aí o telemóvel", ordenou o sargento em voz trémula. Era uma situação que exigia consulta aos superiores.
    Ainda Eça de Queirós, na cauda da manifestação, tagarelava com Camilo Castelo Branco, na presença da Nudez Forte da Verdade, quando um frémito percorreu o arvoredo da Estefânia. Não chegou a turbilhão, mas foi suficientemente sensível para que um sujeito que comia um bife na Portugália exclamasse: "Ena, pá!" O busto de Cesário Verde convocava o de Guerra Junqueiro e desafiava-o para um desfile. E de busto em busto se transmitiu que não era justo que as estátuas em corpo inteiro se manifestassem e que os bustos se ficassem. Afinal, se nos bustos havia um corpo incompleto, a verdade é que exibiam "mais concentração do espírito". A frase foi do busto de um poeta, mas não me parece que tenha sido Junqueiro ou Verde. E, alinhados na Alameda de D. Afonso Henriques, os bustos de Lisboa vieram todos avenida abaixo, aos saltinhos, muito alegretes. Aquilo ressoava alto, e houve moradores que telefonaram para a polícia a protestar. Alguns agentes ainda estão hoje a consultar legislação e regulamentos camarários. Mas é duvidoso que encontrem qualquer disposição legal que proíba um busto ou uma estátua de circular pela cidade por seu próprio pé, base ou coto.
    A notícia chegou a altas instâncias e ao governo. O ministro competente, farto de chamadas, ia dizendo: "deixem lá, isso passa!". E tinha razão. As estátuas cansaram-se de estar para ali, a olhar. Nem sequer chegou a haver bulha de leões porque o Marquês deitou-lhes cá um olhar que eles sentaram-se logo, muito domésticos.
    Quando os bustos, rua de S. Bento afora, chegaram à Assembleia da República, numa revoada de clipocloques, as estátuas decidiram retirar-se, com dignidade. Não queriam aquela companhia, nada de misturas. Os bustos, desacompanhados, deram umas voltas, provocaram os leões com assobiadelas e voltaram para os seus pedestais. A manhã foi encontrar estátuas e bustos voltados para o lado oposto ao do costume. Não se tratou de combinação prévia. Foi uma convergência objetiva.
    Houve em Lisboa quem se interessasse pelo assunto. A própria comunicação social chegou a ter informação e preparou-se para noticiar: "Insegurança: vandalismo generalizado desloca monumentos". No entanto, nessa noite, um jogador de bola agrediu a própria mãe, ceguinha, e mobilizou as parangonas.
    Quando, um mês depois, estátuas e bustos se preparavam nova manifestação foram surpreendidos por uma diretiva comunitária proposta por Portugal e aceite por unanimidade. Todos os bustos de estátuas da Europa passaram a ser obrigatoriamente amarrados com cabos de aço.
    A alguns formadores de opinião a medida pareceu pateta e, sobre isso, dispendiosa. Mas talvez tivesse valido a pena, pelos desassossegos que se pouparam.

In Mealibra

Ligações:

quinta-feira, 9 de abril de 2020

A História na Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho

     «N‟ “A Inaudita Guerra”, estabelece-se um diálogo conciliador entre a História e o Maravilhoso e ambos se conjugam para alertar sobre a necessidade de interrogar as raízes de um presente à deriva de valores e de certezas. Sendo o insólito o elemento estruturador dos seis contos que integram a obra, A Inaudita Guerra na Avenida Gago Coutinho, estes mantêm operativa uma combinatória de estratégias e de procedimentos técnico-discursivos, de forma a veicular uma moral que não se realiza dentro das expectativas do leitor. Subversivos e provocatórios, os contos têm em comum o facto de encenarem confrontos, onde o Bem é esmagado pelo Mal, funcionando, assim, como veículos de expressão e/ou contestação de ideologias.»

     Para aceder, clicar aqui [estudo].

Uma leitura de A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho

     Neste trabalho, podemos encontrar uma proposta de leitura orientada do bem conhecido conto de Mário de Carvalho. Para ter acesso ao mesmo, basta clicar na ligação entre parênteses [leitura-orientada].

sexta-feira, 20 de março de 2020

Valor simbólico dos marcos históricos referidos no conto "Famílias desavindas"

A história pessoal (de ódio e conflito) entre as duas famílias «confunde-se» com a história social de Portugal.
Na transição do século XIX para o XX, a sociedade sofreu transformações decorrentes do progresso científico, facto visível, neste conto, na introdução de um semáforo a pedais numa rua da cidade do Porto e na criação da profissão de «semaforeiro».

De facto, essa época constituiu um avanço notável em termos tecnológicos. A eletricidade, a lâmpada, o telefone, o automóvel foram algumas das invenções do final do século XIX, cujo aperfeiçoamento prosseguiu no século XX e que melhoraram substancialmente a qualidade de vida de muitas pessoas. Este salto evolucional fez-se sentir igualmente noutras áreas, como, por exemplo, o cinema, sem esquecer que o avião estava também ao virar da esquina. Ora, a invenção do semáforo referido no conto insere-se nessa onda e nesse período de progresso e inovação tecnológica.
Por outro lado, as duas Grandes Guerras simbolizam os conflitos (neste caso, de grandes dimensões, com milhões de mortos e feridos, atrocidades até então «desconhecidas» do ser humano), os ódios e as agressões entre os seres humanos. São um símbolo dos grandes massacres do século XX, a que se poderiam acrescentar outros não referenciados no conto (a guerra do Vietname, as lutas pela independência por parte de países colonizados pelos europeus, a expansão do terrorismo, etc.). Sucede que a história narrada no conto de Mário de Carvalho constitui uma narrativa de desavenças e ódios, numa escada ínfima comparativamente aos eventos mundiais referidos, mas ainda assim de conflito.
O outro acontecimento mencionado no texto, este de índole nacional – o 25 de Abril de 1974 –, simboliza a liberdade, o fim da ditadura, da opressão e da perseguição, bem como mudança nas relações entre as pessoas, a abertura de ideias, o entendimento, a comunhão. A reconciliação entre as famílias dos «semaforeiros» e dos médicos sucede precisamente numa época posterior à Revolução dos Cravos.
O quadro seguinte reproduz os marcos históricos presentes no conto e o simbolismo associado a essas datas históricas.

Sequências narrativas de "Famílias desavindas"

1.ª sequência – Narração da origem dos semáforos e localização do aparelho (1.º e 2.º parágrafos).

2.ª sequência – Descrição do equipamento dos semáforos e do seu funcionamento (3.º parágrafo).

3.ª sequência – Relato do processo de seleção do primeiro semaforeiro (4.º parágrafo).

4.ª sequência – Sumário relativo às pessoas que desempenharam o cargo de semaforeiro até ao presente da enunciação (5.º parágrafo).

5.ª sequência – Descrição da relação atual entre semaforeiro, motoristas e transeuntes (6.º parágrafo).

6.ª sequência – Apresentação do primeiro médico e da origem do conflito com os semaforeiros.

7.ª sequência – Exposição das relações conflituosas entre médicos e semaforeiros (8.º ao 12.º parágrafos).

8.ª sequência – Narração do acidente e da reconciliação entre semaforeiros e médicos (13.º ao 16.º parágrafos).


Personagens de "Famílias desavindas"

I. Caracterização

As personagens centrais do conto distribuem-se, essencialmente, por duas famílias: a dos médicos e a dos «semaforeiros».

A família dos semaforeiros é constituída por quatro elementos, cujo traços de união são (1) a inimizade pelos vizinhos médicos e (2) o amor e a dedicação ao instrumento de trabalho.
Por seu turno, a família dos médicos é constituída por três, representando cada um deles um traço diferente:
» João Pedro: o impositivo;
» João: o inseguro;
» Paulo: o teórico.
O que os une é a inimizade pelos «semaforeiros».


No que diz respeito à caracterização das personagens, os traços principais são os seguintes.

Família dos semaforeiros

1. Ramon:
» é o primeiro «semaforeiro»;
» é galego, isto é, originário da Galiza;
» não sabe pedalar, no entanto é o escolhido para o lugar através do compadrio (é familiar do proprietário de um bom restaurante);
» é esforçado, empenhado e cheio de boa vontade no exercício da sua profissão, que exerce com prazer e orgulho, tal como os seus descendentes;
» pertence à geração da I Guerra Mundial;
» sente-se magoado, triste e ofendido com o Dr. Bekett, por isso dificulta-lhe a tarefa;
» inicia o conflito com a família dos médicos.

2. Ximenez:
» é filho de Ramon;
» é o segundo «semaforeiro»;
» pertence à geração da II Guerra Mundial.

3. Asdrúbal:
» é filho de Ximenez;
» é o terceiro «semaforeiro»;
» pertence à geração do 25 de Abril;
» insulta o Dr. Paulo, com o qual quase chega a vias de facto.

4. Paco:
» é bisneto de Ramon;
» pertence à geração do início do século XXI;
» é simpático e prestável com os condutores, com quem tem uma relação personalizada;
» mantém o conflito com o médico;
» sofre um acidente e é socorrido pelo médico, que também o substitui no semáforo enquanto recupera no hospital.

Não obstante nos serem dados a conhecer os nomes de todos os quatro semaforeiros, estes constituem uma personagem coletiva, que se caracteriza pelo amor quase obsessivo e irracional pelos «seus» semáforos, o que justifica que, ao contrário dos médicos, apenas o primeiro «semaforeiro» tenha direito a uma caracterização individualizada, e apenas para justificar a sua escolha para o cargo.

Família dos médicos

5. João Pedro Bekett:
» é oriundo de Coimbra;
» é um médico singular: queria tratar toda a gente de doenças que eventualmente teriam, mesmo que os próprios não quisessem ser tratados;
» percorre as ruas à procura de pessoas que queria convencer a consultar por, na sua opinião, terem aspeto de doentes;
» é um «pai de filhos»;
» tem boa fama enquanto médico;
» possui elevado espírito de missão;
» não gostou que o semaforeiro lhe impusesse limites à sua circulação, o que, segundo ele, ia contra a sua liberdade (não poder atravessar a rua quando quisesse).

6. Dr. João:
» é filho de Pedro Bekett;
» é um médico muito inseguro e modesto: considera que os seus diagnósticos estão provavelmente errados e aconselha os doentes a procurarem uma segunda opinião;
» é um mau profissional: em vez de se aperfeiçoar, dada a sua insegurança, passava o tempo livre à janela, a encadear Ximenez com um espelho colorido;
» herda do pai o ódio pelos «semaforeiros»;
» intensifica o conflito com eles;
» raramente acerta no diagnóstico.

7. Dr. Paulo:
» é filho do Dr. João;
» adormece os seus pacientes com explicações muito pormenorizadas sobre as suas doenças, mostrando-se pouco ou nada interessado em ouvir as suas queixas;
» insulta o semaforeiro Asdrúbal;
» quase chega a vias de facto com o semaforeiro;
» mantém uma relação conflituosa com Paco;
» socorre-o quando assiste a um acidente sofrido por Paco, deixando de lado os ódios antigos;
» é solidário: assume o posto de Paco como «semaforeiro» para se redimir e à sua consciência pesada enquanto aquele se encontra hospitalizado.

Outras personagens

8. Gerard Letelessier:
» é um engenheiro francês;
» fracassou no seu país e em Lisboa;
» tem sucesso no Porto com uma invenção inútil.

9. Autarca do Porto:
» é o símbolo de todos os autarcas da província;
» fica mais entusiasmado com as garrafas de vinho do que com o invento;
» fica deslumbrado por um projeto porque é estrangeiro;
» é entusiasta de situações experimentais que se tornam definitivas.

10. Transeuntes e motorista do Porto:
» representam o gosto da população portuguesa pelo facilitismo, pelos «brandos costumes», pelo tráfico de influências.


II. Representatividade

• Os semaforeiros são um grupo de trabalhadores ciosos da sua profissão, que exercem com grande zelo e entusiasmo, mesmo que não tenha qualquer importância ou relevância social.

• Os médicos pertencem a uma classe social superior. Desempenham uma atividade imprescindível, mas revelam ou prepotência (Dr. João Pedro Bekett), ou insegurança (Dr. João) ou conhecimentos apenas teóricos (Dr. Paulo).


História pessoal e história social: as duas famílias

Dimensão irónica e paródica de "Famílias desavindas"

Neste conto, o narrador recorre frequentemente à paródia, apostando na inversão irónica de códigos e de convenções, com distanciamento crítico.
A paródia está presente, desde logo, no facto de o início inusitado se transfigurar na conclusão do conto: o acidente propicia a reconciliação das duas famílias, depois de cerca de um século de conflito.

A dimensão irónica e paródica do conto assume os seguintes contornos:

O insólito com aparência de real (fantástico que se introduz no quotidiano recriado)

▪ Conto em que se articulam dois universos logicamente incompatíveis:
→ o da realidade e da normalidade (verosimilhante): é reforçado e legitimado pelo narrador através de marcadores históricos, de topónimos e de nomes de pessoas;
→ o do insólito / fantástico (inverosimilhante): é marcado pelo caráter incomum e pitoresco das ações narradas (semáforo a pedais; escolha do primeiro semaforeiro; origem do conflito entre médicos e semaforeiros; acidente, que culmina com o médico a assumir a função de semaforeiro).


O cómico extraído do quotidiano: o narrador denuncia/critica, recorrendo ao humor/cómico e à ironia, de aspetos negativos extraídos do quotidiano:

1. Censura dos ódios entre famílias sem motivo (a pequenez do conflito entre as famílias dos semaforeiros e dos médicos), em contraste com a magnitude dos acontecimentos nacionais e mundiais referenciados no texto, a deixar transparecer uma censura ao egoísmo e mesquinhez do ser humano. Atente-se no facto de, após duas guerras mundiais devastadoras e uma revolução que transformou profundamente Portugal, a inimizade entre as duas famílias se manter incólume e inalterada.

2. Denúncia de vícios sociais como o provincianismo, o suborno/a corrupção (nos serviços públicos – a atribuição duvidosa/por «cunha» de cargos públicos), o facilitismo, a burocracia excessiva, a incompetência profissional (cf. a descrição caricatural dos médicos e da própria função de semaforeiro), o comportamento dos médicos, que contrasta com o seu estatuto social e profissional.

3. Paródia em torno das invenções inúteis, do deslumbramento pelo estrangeiro, das relações humanas, dos estereótipos sociais. Observe-se, por exemplo, no insulto «Arrenego de ti galego», dirigido aos semaforeiros, uma fórmula semelhante a muitas outras que traduzem o repúdio pelos imigrantes.

4. Exemplos concretos do recurso à ironia:
▪ a necessidade de um sistema de semáforos no fim do século XIX para «ordenar o trânsito de carroças de vinho, carros de bois e landós da sociedade»;
▪ o semáforo acionado por um ciclista que pedala continuadamente;
▪ o suborno de um autarca do Porto com vinho («garrafas de Bordéus») para que fosse instalado um sistema de semáforos que já tinha sido recusado em Paris e em Lisboa;
▪ o concurso para o cargo de semaforeiro: o escolhido, Ramon, que nunca pedalara na vida, é um candidato que não preenchia os requisitos (andar de bicicleta), porém era «familiar de um proprietário de um bom restaurante» (sugestão de nepotismo);
▪ o médico João Pedro Bekett, que andava pelas ruas a perguntar aos transeuntes se estavam doentes;
▪ o seu filho João, que era tão modesto que informava os doentes de que o seu diagnóstico possivelmente estava errado e que deveriam consultar uma segunda opinião;
▪ Paulo Bekett era tão explicativo que os seus doentes adormeciam enquanto ele lhes explicava minuciosamente as doenças;
▪ a figura final do Dr. Paulo a dar ao pedal para se penitenciar pelo conflito com o «semaforeiro».
▪ a narração da forma como as sucessivas gerações de médicos desempenhavam as suas funções salienta a dimensão ridícula da sua pretensa superioridade social;
▪ o conflito entre as famílias do «semaforeiros» e dos médicos é descrito de modo profundamente irónico, tendo como finalidade mostrar o seu caráter absurdo.


A importância dos episódios e da peripécia final em "Famílias desavindas"

A maior parte dos episódios do conto são de agressividade entre as duas famílias. Com efeito, eles retratam a desavença entre «semaforeiros» e médicos ao longo de cerca de um século, desavença esse que é gerada por um dispositivo insólito: os semáforos a pedal.

▪ O Dr. João Pedro Bekett ofendeu Ramon por não querer que o semáforo o impedisse de atravessar a rua quando quisesse. Em consequência, o «semaforeiro» passou a dificultar-lhe a passagem – início do conflito.

▪ O Dr. João, filho do Dr. João Pedro, «passava grande parte do tempo à janela, a encadear Ximenez com um espelho colorido».

▪ O Dr. Paulo, neto do primeiro médico, passava por Asdrúbal, neto de Ramon, e insultava-o e pedia aos clientes que o insultassem também. Asdrúbal ripostava, insultando o médico de volta e, certa ocasião, chegou mesmo a levantar a mão para ele.


Peripécia final

▪ O final do conto constitui uma inversão inesperada dos acontecimentos: Paco, bisneto de Ramon, sucedeu a Asdrúbal e sofreu um acidente: um jovem que passava de moto, ao tentar concretizar um roubo por esticão, bateu no «semaforeiro» e deixou-o estendido no chão. O Dr. Paulo, seguindo a sua condição de médico, em vez de o insultar, como pensara fazer, esqueceu o ódio e foi socorrer Paco. Além disso, para mitigar o remorso e o sentimento de culta decorrentes do conflito que mantivera com Paco, substituiu-o no ofício de «semaforeiro» enquanto Paco se restabelecia do acidente no hospital.

▪ A peripécia final contrasta com os episódios de conflito entre as duas famílias, pois configura uma situação de resolução desse conflito. De facto, o acidente de Paco proporcionou a paz e a concórdia, acabando com a desavença, ao trazer à tona a faceta real do Dr. Paulo, o terceiro médico da família, que esqueceu o ódio secular entre as duas famílias para socorrer o «semaforeiro».

▪ A peripécia não deixa de configurar um momento de ironia em relação a um longo passado de ódio, mas, por outro lado, encerra uma moralidade, mostrando que o rancor e o ódio não têm de ser eternos, que as pessoas podem ser más e boas e que a solidariedade pode ser mais forte do que o ódio.

▪ A peripécia final representa o fim do conflito, do ódio, entre as duas famílias e vem demonstrar que as classes sociais superiores e as inferiores podem criar uma relação harmoniosa, graças á solidariedade entre os seus elementos.


segunda-feira, 16 de março de 2020

Resumo do conto "Famílias desavindas"

Ramon era um galego, proprietário de um bom restaurante, que se candidatou ao cargo de «semaforeiro», função para que foi selecionado de forma caricata, e que pertencia a uma família honesta e trabalhadora, que se dedicava à profissão pelo amor à mesma e não ao salário, que era modesto («equivalente ao de um jardineiro»).
Ramon, o seu filho Ximenez e o seu neto Asdrúbal trabalhavam até altas horas da madrugada, pedalando na bicicleta que gerava a energia que mudava as luzes do semáforo ou afinando-a quando era necessário.
O Dr. João Pedro Bekett tinha-se instalado no Porto, oriundo de Coimbra, com a sua família, num primeiro andar de um prédio situado próximo do semáforo, onde tinha o seu consultório. Tratava-se de um médico afamado, mas que exagerava nitidamente no seu espírito de missão. Obcecado por encontrar doentes que pudesse curar, considerava que o semáforo dificultava a sua ação. Por isso, ofendeu, de forma arrogante, Ramon, que não gostou e passou a dificultar-lhe ainda mais a vida. Aqui teve início a inimizade, o conflito e o ódio entre as duas famílias.
O filho (João) e o neto (Paulo), igualmente médicos, herdaram o ódio à família dos semaforeiros e deram seguimento ao conflito com os descendentes de Ramon. A troca de insultos entre os dois lados da barricada prosseguiu, roçando por vezes o extremismo ou raiando o conflito físico: por exemplo, o Dr. Paulo pedia aos seus clientes que insultassem o «semaforeiro»; certa vez, Asdrúbal levantou a mão para o médico.
Quando Paco, bisneto de Ramon, sucedeu ao seu pai, Asdrúbal, deu-se um acidente: um jovem que passava de moto, ao tentar um roubo por esticão, bateu no «semaforeiro» e deixou-o estendido, no chão. Então, o Dr. Paulo, na sua qualidade de médico, esqueceu o ódio secular e socorreu Paco, cujas mazelas, no entanto, eram graves, pelo que teve de ser transportado de ambulância para o hospital.
Após o acidente, o Dr. Paulo, com a sua bata branca, por remorso, passou a pedalar todos os dias, do nascer ao pôr-do-sol, para manter o semáforo a funcionar, enquanto Paco se restabelecia.

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