Português: 06/09/23

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Linguagem de "O Tesouro"


 
1. Nível fónico
 
® Aliterações:
- em v: "... o vento da serra levara vidraça e telha..." ® sugere a força do vento;
- em l e r: "... estalaram a rir, num riso de tão larga rajada...";
- em t, b, d, p: "... com os olhos a flamejar, numa desconfiança tão desabrida que Guanes e Rostabal apalpavam nos cintos os cabos das grandes facas...";
- em r: "... o outro rosnou surdamente e com furor dando um puxão às barbas negras.".
 
 
2. Nível morfossintático
 
® Adjetivos: têm como função caracterizar as personagens ou o cenário e, por vezes, anunciam a ação trágica, antecipando os atos violentos dos três irmãos: "E de novo recuaram vivamente (...) numa desconfiança tão desabrida que Guanes e Rostabal..."; "Ali vieram sentar-se Rui e Rostabal, com os seus tremendos espadões entre os joelhos."
 
® Advérbios de modo:
- "Depois, mergulhando furiosamente as mãos no ouro..." ® caracteriza a brutalidade do movimento, logo da personagem;
- "E de novo recuaram, bruscamente se encararam..." ® aponta para a súbita desconfiança que se estabelece entre os três, motivada pela sua ambição;
- "Vivamente, Rui agarrara o braço ao irmão..." ® está relacionado com Rui e a sua astúcia;
- "Rui, atrás, puxava desesperadamente, os freios da égua, que, de patas fincadas no chão pedregoso..." ® remete para o contraste comportamental entre os três irmãos e a égua;
- "Então Rui tirou, lentamente,  do cinto, a sua larga navalha."; "E serenamente, como se pregasse uma estaca num canteiro, enterrou a folha toda no largo dorso dobrado, certeira sobre o coração." ® remete para a frieza e para a crueldade da personagem;
- "E Rui, alargando os braços, respirou deliciosamente." ® traduz a satisfação de Rui por o tesouro ser só seu;
- "Os seus braços torcidos batiam o ar desesperadamente." ® remete para o desespero que a personagem sente;
- "... esbugalhando pavorosamente os olhos..." ® traduz o terror de Rui, ao perceber que tinha sido envenenado e que ia morrer.
 
® Verbos: algumas formas verbais evidenciam o carácter das personagens através das referências às suas atitudes, funcionando, assim, como uma forma de caracterização das mesmas.
                Atentemos nos seguintes exemplos:
1.º) "Ao escurecer, devoravam uma côdea de pão negro." ® remete para a ideia de que o homem é um produto do meio, ou seja, a sociedade em que se insere determina a formação da sua personalidade e, consequentemente, o seu comportamento (característica realista);
2.º) relativamente a Rostabal, as formas verbais traduzem o seu instinto, o seu carácter animalesco:
- "Também eu quero a minha, mil raios! - rugiu logo Rostabal.";
- "Pois que morra, e morra hoje - bradou Rostabal.";
3.º) noutras ocasiões, traduzem a brutalidade do movimento:
- "Rostabal rompeu de entre a sarça...";
- "Então Rui (...) deslizou até Rostabal, que resfolgava.".
 
 
                3. Nível semântico
 
® Comparações:
- "... esfaimados como eles...": a miséria em que viviam os três irmãos;
- "... mais bravios que lobos.": o seu carácter animalesco;
- "... os três senhores ficaram mais lívidos que círios.": a emoção dos três irmãos ao depararem com o tesouro;
- "Então Rui, (...) ergueu os braços, como um árbitro...": a astúcia, a liderança que assume;
- "... Rostabal, homem mais alto que um pinheiro" (hipérbole): a grande envergadura / altura da personagem;
- "... onde fazia como um tanque...";
- "... dominava o atalho, estreito e pedregoso como um leito de torrente.": a estreiteza e rudeza do caminho;
- "... a espada, agarrada pela folha como um punhal...";
- "... como se perseguisse um mouro...";
- "E serenamente, como se pregasse uma estaca num canteiro, enterrou a folha toda no largo dorso dobrado, certeira sobre o coração.": o crime, a crueldade do assassínio de Rostabal pelo próprio irmão;
- "... um suor horrendo que o regelava como neve."     E
- "... sentia os ossos a estalarem como as traves de uma casa em fogo."     E
- "... como se fosse um metal derretido.": conferem os efeitos do veneno.
 
® Personificações:
- "... silenciosa manhã de domingo...";
- "Pela ramaria andava um melro a assobiar.";
- "... a cantiga dolente e rouca...";
- "A tarde descia, pensativa...": o fim do dia (= o fim da vida de Rui);
- "E a fonte cantava...": o ruído da água;
- "... as folhas tenras dos olmos, em roda, tremiam...";
- "A fonte, cantando...": como se, com a morte do último dos irmãos, a justiça tivesse sido reposta e tudo regressasse à normalidade.
 
® Hipérboles:
- "... estalaram a rir...";
- "... num riso de tão larga rajada que as folhas dos olmos, em roda, tremiam...": esta e a anterior revelam a reação, misto de nervosismo e alegre loucura, à descoberta do tesouro;
- "... Rostabal, homem mais alto que um pinheiro..." (ver comparações).
 
® Gradação: "Já rasgara o gibão, atirava os passos incertos e, a arquejar, com a língua pendente, limpava as grossas bagas de um suor horrendo..." ® os efeitos do veneno, gradualmente mais fortes e horríveis.
 
® Metáforas:
- "... rugiu logo Rostabal.";
- "O outro rosnou surdamente e com furor...": ambas revelam o instinto, o carácter animalesco das personagens;
- "... um fio de água...";
- "... tinha já a espada nua.";
- "Um vento leve arrepiou na encosta as folhas dos álamos...": uma ligeira brisa fez ondular as folhas das árvores;
- "Mal a noite descesse...";
- "Era um lume, um lume vivo, que se lhe acendera, lhe subia até às goelas.";
- "Outra vez o lume, mais forte, que alastrava, roía.";
- "E a chama dentro galgava...";
- "... para apagar aquela labareda...": estas últimas quatro metáforas traduzem os efeitos do veneno em Rui.
 
® Hipálage: "... e levou as duas mãos aflitas ao peito.": a aflição face ao envenenamento.
 
® Antítese: "No terror e esplendor da emoção...".
 
® Sinédoque: "... a pelejar contra o Turco!" (= turcos).
 
® Sinestesias:
- "Um cheiro errante de violetas adoçava o ar luminoso.";
- "A tarde descia, pensativa e doce..." (ver personificações);
- "Com aquela cor velha e quente...".
 
® Ironia:
- "Grande pena!": o menosprezo para com Guanes;
- "Oh! D. Rui, o avisado, era veneno!": afinal, o mais avisado dos três irmãos deixou-se enganar e vai morrer em consequência disso.
 
® Exclamações:
- no início, traduzem a emoção dos irmãos quando encontram o tesouro;
- na parte final, traduzem a angústia e o desespero de Rui face ao envenenamento.
 
® Perífrase e eufemismo: "Não dura até às outras neves." (= Inverno).

Indícios trágicos de "O Tesouro"


    Frequentemente, nos textos de cariz narrativo e nos textos dramáticos, encontramos pistas (indícios, presságios) que antecipam o desenlace trágico da ação. É o que acontece, para citar as obras mais conhecidas da literatura portuguesa, em Os Maias, Amor de Perdição, Viagens na Minha Terra e Frei Luís de Sousa, por exemplo.
    Esses indícios passam despercebidos às personagens, mas não ao leitor mais atento. Ora, neste conto, encontramos também vários indícios de tragédia:
1.º) o ato de fechar o cofre: indício de que os três irmãos nunca conseguirão mudar de vida, alcançar a riqueza e a felicidade;
2.º) a cantiga entoada por Guanes ao dirigir-se à vila de Retorquilho, que repete durante o regresso, remete para a morte:
"Sale la cruz de la iglesia,
Vestida de negro luto...";
3.º) a cruz e o negro luto da cantiga indiciam a morte que Guanes planeia para os irmãos, mas, ironicamente, também prenunciam a sua própria morte (nenhum dos três reconhece ou interpreta esses sinais);
4.º) o bando de corvos: simbolizam a morte devido à sua cor preta e hábitos necrófagos;
5.º) o repicar dos sinos: indício de morte;
6.º) a existência de apenas duas garrafas, quando os irmãos eram três: Guanes traz de Retorquilho apenas duas garrafas. Rui estranha o facto, mas não suspeita da traição. Se as personagens conseguissem decifrar os sinais, poderiam fugir ao destino.

Modos de apresentação e expressão em "O Tesouro"


 
1. Narração

    O tempo predominante na narração é o pretérito perfeito.
    O predomínio da narração justifica-se pelo facto de tornar o ritmo narrativo muito rápido, sem grandes paragens da ação.
 
2. Descrição
 
    Neste conto, as descrições são bastante pormenorizadas.
    As classes gramaticais que constituem a descrição são:
® o adjetivo;
® verbos no pretérito imperfeito;
® os advérbios;
® vocabulário relativo às sensações;
® enumeração de elementos.
 
3. Modos de expressão
 
    O modo de expressão dominante é o diálogo, mas, ainda assim, é pouco utilizado, porque permite um ritmo mais rápido da narração:
• Discurso direto: “– Manos! O cofre tem três chaves… Eu quero fechar a minha fechadura e levar a minha chave.
• Discurso indireto: “… começou a considerar, na sua fala avisada e mansa, que Guanes, nessa manhã, não quisera descer com eles à mata de Roquelanes.”
• Discurso direto e indireto: “Rui sorriu. Decerto, decerto! A cada dono do ouro cabia uma das chaves que o guardavam.”

Narrador de "O Tesouro"


 
1. Presença: não participante ® heterodiegético (narração na terceira pessoa).
 
 
2. Relações com a história:
- narrador observador;
- narrador interveniente (comentador): "Oh! D. Rui, o avisado, era veneno!".
Enquanto narrador interveniente, o seu papel é moralizador e punitivo.
 
 
3. Focalização / Ponto de Vista
 
    Num primeiro momento, a focalização é interna, ou seja, o narrador sabe tanto quanto as personagens. O leitor só sabe das suas intenções pelas revelações dessas mesmas personagens, o que é, aliás, uma das suas formas de caracterização.
 
    Num segundo momento (penúltimo parágrafo), encontramos uma focalização omnisciente, quer dizer, o narrador sabe tudo sobre as personagens e os acontecimentos: "Porque Guanes, apenas chegara a Retortilho, mesmo antes de comprar os alforges, correra cantando a uma viela, por detrás da catedral, a comprar ao velho droguista judeu o veneno que, misturado ao vinho, o tornaria a ele, a ele somente, dono de todo o tesouro.”

Tempo psicológico de "O Tesouro"

  
Inverno: tempo de dificuldades, de miséria e de fome.
 
Primavera: tempo de esperança duma vida nova, de regeneração, todavia frustrado pela ambição desmedida dos três irmãos.
 
Domingo: como dia santo, remete também para a possibilidade dum renascimento espiritual dos três irmãos.
 
Manhã ® tarde ® noite: a noite remete para a escuridão; por outro lado, este percurso remete para a vontade de cada um dos irmãos ficar com o tesouro, evidenciada pelo desejo de subida à serra com o cofre. A punição surge como obra da providência. A miséria física conduz à miséria espiritual.
 

Tempo do discurso de "O Tesouro"


    A ação estende-se do inverno à primavera e o seu núcleo central concentra-se num dia, desde a manhã até à noite. A condensação de um tempo da história tão longa (presumivelmente três ou quatro meses) numa narrativa curta (conto) implica a utilização sistemática de sumários ou resumos (processo através do qual o tempo do discurso é menor do que o tempo da história). Nos momentos mais significativos da ação (decisão de repartir o tesouro e partilhar as chaves, bem como a argumentação de Rui para excluir Guanes da partilha) o tempo do discurso tende para a isocronia (a duração do tempo da história é igual à do tempo do discurso), sem, no entanto, a atingir).
    No texto, existe outro processo de redução do tempo da história, que é a elipse, isto é, a eliminação, do discurso, de períodos mais ou menos longos da narrativa. A parte inicial da ação é localizada no inverno (“… passavam eles as tardes desse inverno…”) e logo a seguir o narrador remete-nos para a primavera (“Ora, na primavera, por uma silenciosa manhã de domingo…”).
    No que diz respeito à ordenação dos acontecimentos, predomina a cronologia. Só na parte final do texto surge uma analepse (recuo no tempo), quando o narrador abandona a postura de observador e adota a focalização omnisciente, para revelar o modo como Guanes tinha planeado o envenenamento dos irmãos, manifestando dessa forma o seu caráter traiçoeiro.
    Frequentemente, a analepse permite esconder do narratário pormenores importantes para a compreensão dos acontecimentos, mantendo assim um suspense favorável à tensão dramática.
 
                Em suma:
 
a) Anisocronias:
- resumo de acontecimentos:
. o 2.º parágrafo, em que é resumida a vida dos três irmãos durante todo o Inverno.
 
b) Isocronias: o diálogo entre Rui e Rostabal.
 
c) Anacronias:
- analepses:
. a recusa do empréstimo dos três ducados.
. o relato do que Guanes fizera em Retortilho (antepenúltimo parágrafo).
 

Tempo da história de "O Tesouro"


    A ação decorre entre o inverno e a primavera, mas concentra-se num domingo de primavera, estendendo-se de manhã até à noite.
    O inverno está conotado com a escuridão, a noite, o sono e a morte. É nessa estação do ano que nos são apresentadas as personagens, envoltas na decadência económica, no isolamento social e na degradação moral (“E a miséria tornara estes senhores mais bravios que lobos.”)
    Por sua vez, a primavera tem uma conotação positiva: associa-se à luz, à claridade, à cor, ao aparecimento do Sol. Esta estação significa o renascimento da natureza, sugere uma vida nova (a descoberta do cofre é uma oportunidade dada às personagens de abandonarem a sua miséria), que se poderia ter estendido ao renascimento espiritual dos três irmãos, representado simbolicamente pelo domingo, um dia santo.

    Assim, o período compreendido entre o Inverno e a Primavera é vivido pelos três irmãos de uma forma miserável: fome, frio, decadência, solidão. O início da primavera proporciona-lhes a oportunidade de uma nova vida, a que corresponde a descoberta do tesouro.
    A ação central inicia-se na manhã de um domingo e progride durante o dia. Nessa data, o seu percurso (de fome, privação…) inverte-se: "E assim refeitos (...) subiram para Medranhos, sob a segurança da noite sem Lua." – domingo manhã tarde noite.
    À medida que a noite se aproxima, a tragédia vai-se preparando. A essa aproximação corresponde a vontade de cada um dos irmãos de reter para si próprio uma maior quantidade do dinheiro, que se evidencia pelo desejo de subir à serra com o cofre. Quando tudo termina, com a morte sucessiva dos irmãos, a noite está a surgir (“Anoiteceu.”). A purificação surgirá como obra da providência: “Anoiteceu. Dois corvos, de entre o bando que grasnava além nos silvados, já tinham pousado sobre o corpo de Guanes.” A miséria física conduz à miséria espiritual.

Tempo histórico de "O Tesouro"

    A referência ao “reino das Astúrias” permite localizar a ação na Idade Média, por volta do século IX (“Eram então, em todo o reino das Astúrias, os fidalgos mais famintos e mais remedados.”), visto que os Árabes invadiram a Península Ibérica no século VIII (a ocupação teve início em 711 d.C. e prolongou-se por vários anos, sem nunca ter sido concluída). Por outro lado, no século X encontramos já constituído o reino de Leão, que sucedeu ao das Astúrias.

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