À semelhança de qualquer peça de teatro, Felizmente há Luar! apresenta dois textos paralelos: um constituído pelas falas das personagens e outro, mais extenso e minucioso do que é habitual, de carácter descritivo, analítico e, por vezes, judicativo. São as chamadas didascálias ou indicações cénicas.
Por vezes, elas são consideradas um texto menor no conjunto do texto dramático. No entanto, na realidade, constituem um complemento essencial ao texto principal.
Na peça, há dois tipos de didascálias. Um acompanha as falas das personagens, aparece em itálico e, por vezes, entre parênteses, preenchendo o papel tradicional deste tipo de texto: indicação do nome das personagens, das suas movimentações em cena, do seu tom de voz, gestos, guarda-roupa, etc. O outro surge ao lado do texto principal, é mais extenso e constitui uma forma de «análise interpretativa do texto principal».
Sttau Monteiro, consciente da situação política que se vivia em Portugal nos anos sessenta do século XX, sabia que muito dificilmente esta sua peça teria possibilidades de ser representada no seu país, por isso decidiu transformar as didascálias numa espécie de linhas de leitura, um texto extremamente rico e constituído por um conjunto de preciosas indicações de trabalho para actores, encenadores, directores de actores e para o próprio leitor / espectador. Veja-se, a título exemplificativo, a didascália inicial: "A pergunta é acompanhada dum gesto que revela a impotência da personagem perante o problema em causa. Este gesto é francamente «representado». O público tem de entender, logo de entrada, que tudo o que se vai passar no palco tem um significado preciso. Mais: que os gestos, as palavras e o cenário são apenas elementos duma linguagem a que tem de adaptar-se".
Observe-se o seguinte quadro, que ilustra as diferenças entre os dois tipos de didascálias:
Observe-se o seguinte quadro, que ilustra as diferenças entre os dois tipos de didascálias:
Fonte: Colecção Resumos (pág. 40) |
Em síntese, as didascálias funcionam na peça como:
- indicação do nome da personagem antes de cada fala;
- indicação da entrada ou saída de personagens;
- explicações do autor ("O público tem de entender, logo de entrada..." - pág. 15):
- referências aos adereços que compõem o espaço cénico;
- referência à posição das personagens em cena ("Ao dizer isto, a personagem está quase de costas para os espectadores." - pág. 16);
- indicação das pausas: "pausa" (pág. 16);
- caracterização do tom de voz das personagens e suas flexões ("Muda de tom de voz." - pág. 16; "Volta ao seu tom de voz habitual." - pág. 16; "O tom é irónico." - pág. 17);
- apresentação da dimensão interior das personagens ("O gesto é lento, deliberadamente sarcástico." - pág. 17);
- ilações que funcionam como informações e como forma de caracterização das personagens ("Fala com entusiasmo. Vê-se que Gomes Freire é o seu herói." - pág. 20);
- indicações sonoras ou ausência de som ("Começa a ouvir-se, ao longe, o ruído de tambores." - pág. 17; "Este silêncio é pesado." (pág. 21);
- expressão fisionómica dos actores ("As personagens olham para as mãos e para os lados..." - pág. 21; "O antigo soldado encolhe os ombros." - pág. 22);
- movimentação cénica das personagens ("Ao falar da cara, levanta-se, assumindo a posição dum senador romano." - pág. 27);
- sugestão do aspecto exterior das personagens ("Beresford vem fardado. A farda, ainda que regulamentar, não é espaventosa e está um pouco usada." - pág. 41);
- indicações aos actores ("... Quando passa dum para o outro, os seus gestos devem ser rápidos e enérgicos para que o público compreenda o que se está passando." - pág. 78);
- expressão do estado de espírito das personagens e a sua evolução ao longo da cena: tristeza, esperança, medo, desânimo, etc., dos oprimidos; sarcasmo, ironia, escárnio, indiferença, galhofa, adulação, desprezo, irritação, etc., dos opressores.