Português: Cecília Meireles
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terça-feira, 1 de agosto de 2023

Análise do poema "Se eu fosse apenas", de Cecília Meireles


 
Se eu fosse apenas uma rosa,

com que prazer me desfolhava

já que a vida é tão dolorosa

e não sei dizer mais nada!

 
Se eu fosse água ou vento,

com que prazer me desfaria,

como em teu próprio pensamento

vai desfazendo a minha vida!

 
Perdoa-me causar-te a mágoa

desta humana, amarga demora!

– de ser menos breve do que a água,

mais durável que o vento e a rosa…

 
    Como sucede com frequência, o título fornece pistas sobre a mensagem do poema, implicando o «eu», que são confirmadas nas duas estrofes iniciais. De facto, nelas encontramos as possíveis atitudes do sujeito poético caso ele fosse cada um dos elementos que desejaria ser, atitudes essas que seriam tomadas face à visão do mundo do sujeito poético e de que dispõe justamente por não ser rosa, nem vento nem água.
    O «eu» pode sentir “que a vida é tão dolorosa”, e não existem palavras que sejam necessárias para exprimir os seus sentimentos (“e não sei dizer mais nada”), bem como que não se pode permanecer por muito tempo nos pensamentos das outras pessoas (“como em teu próprio pensamento / vais desfazendo a minha vida!”). Note-se, porém, que, na segunda estrofe, entra em cena um interlocutor, o qual é afetado pela mágoa, por causa da ação do «eu» de “ser menos breve do que a água, / mais durável que o vento e a rosa…”.
    O título é constituído por uma forma verbal que se encontra no modo conjuntivo (“fosse”), a qual traduz o desejo do sujeito lírico de ser algo que não é, enquanto que o advérbio «apenas» sugere uma ideia de simplicidade, ao passo que as reticências marcam uma suspensão do raciocínio, que será retomado na primeira estrofe.
    A presença do indefinido «uma» em “uma rosa” significa que o desejo do sujeito poético se refere a qualquer rosa e não a uma específica. Assim sendo, pode concluir-se que o que o leva a desejar ser uma rosa terá a ver com algo inerente a todas essas flores e não a algo característico de uma flor desse tipo. E que «algo» é esse? Todas se desfolham. Note-se que o desfolhar-se constituiria um ato que lhe daria prazer, visto que a vida para ele é dolorosa. O uso do presente do indicativo do verbo «ser» (“é”) permite encarar a afirmação como uma verdade absoluta.
    O outro fator que leva o «eu» a considerar um prazer o ato de se desfolhar, isto é, em «morrer» (note-se que a queda das folhas se relaciona com a ideia de morte), é a incapacidade ou a impossibilidade de expressar por meio das outras uma ideia diferente da “que a vida é dolorosa”: “e não sei dizer mais nada!” (atente-se na força da exclamação com que encerra o verso 4).
    O primeiro verso da segunda estrofe volta a repetir, ainda que parcialmente, o título, mas desta vez com outros elementos da Natureza que não a rosa: a água e o vento. Neste caso, os elementos não são antecedidos de qualquer artigo, o que pode apontar para uma generalização desses elementos.
    O segundo versa dessa estrofe retoma a ideia do prazer em se extinguir, desta vez através do vocábulo «desfaria». A comparação presente no terceiro verso anuncia a presença de um interlocutor que vai esquecendo o sujeito poético pouco a pouco, até porque o pensamento é fugaz, rápido, além de nunca ser estático.
    A terceira estrofe abre com um pedido de perdão do «eu» ao interlocutor por o magoar por causa da sua “humana, amarga demora”. O terceiro verso inicia-se com um traço (–), como se introduzisse uma explicação da afirmação anterior.
    A “amarga demora” que gera mágoa no interlocutor do «eu» é “menos breve do que a água, / mais durável que o vento e a rosa”. Mas o que significa ser menos breve do que a água? Desde logo, este elemento é um dos mais duráveis do planeta, o que tornaria o verso e a comparação ilógicos. Para a sua interpretação, é necessário recorrer ao poeta grego Heraclito (séc. VI a.C.) e à sua máxima de que não nos podemos banhar duas vezes no mesmo rio, visto que, ao entrar nele pela segunda vez, não será a mesma água que estará lá nesse momento. Assim sendo, o sujeito poético refere-se à brevidade que caracteriza a passagem da água e não ao elemento em si. Ser menos breve do que essa mudança é permanecer por mais tempo do que a mudança dessa água que passa, que escoa rapidamente, dura apenas alguns instantes.
    O último verso recupera os elementos naturais vento e rosa, neste caso para enfatizar a demora do «eu» lírico em “se acabar”, dado que este é “mais durável” do que ambos. A partir das comparações estabelecidas – água, vento, rosa –, o sujeito poético procura comprovar que a sua condição humana dura algum tempo. Ou seja, os elementos naturais são convocados para contrastar a brevidade da sua existência com a maior duração da do «eu».
    Em suma, para o sujeito poético a sua condição de ser humano, mais longa do que a vida dos elementos da Natureza referidos, é pouco valiosa; pelo contrário, preferiria uma existência mais efémera, visto que a vida não lhe proporciona alegria e felicidade. Nem mesmo as pessoas mais próximas – atente-se no determinante possessivo «teu» (v. 7), que indicia proximidade entre o «eu» e o «tu» - o têm no pensamento mais do que um breve instante.
    O recurso ao verso «ser» é significativo, pois, ao desejar ser algo, o sujeito lírico aponta para o que é.

terça-feira, 25 de julho de 2023

Análise do poema "Viagem", de Cecília Meireles


 
No perfume dos meus dedos,
Há um gosto de sofrimento,
Como o sangue dos segredos
no gume do pensamento.

 
Por onde é que eu vou?

 
Fechei as portas sozinha.
Custaram tanto a rodar!
Se chamasse, ninguém vinha.
Para que se há de chamar?

 
Que caminho estranho!

 
Eras coisa tão sem forma,
tão sem tempo, tão sem nada…
– arco-íris do meu dilúvio! –
que nem podias ser vista
nem quase mesmo pensada.

 
Ninguém mais caminha?

 
A noite bebeu-te as cores
para pintar as estrelas.
Desde então, que é dos meus olhos?
Voaram de mim para as nuvens,
com redes para prendê-las.

 
Quem te alcançará?


Dentro da noite mais densa,
navegarei sem rumores,
seguindo por onde fores
como um sonho que se pensa.

 
Por onde é que vou?


    No poema, estão presentes duas figuras: um «eu» e um «tu». A lógica nele seguida é semelhante à de outras composições poéticas de Cecília Meireles: antes de o «tu» ser referido, a atenção concentra-se no «eu». A esse propósito, observe-se o uso do determinante possessivo logo no verso 1: “meus dedos”.
    O texto abre com uma sinestesia (“No perfume dos meus dedos, / Há um gosto de sofrimento” – há uma mistura do olfato e do tato, que, por sua vez, é associado ao paladar”), que, além de misturar vários sentidos, os associa ao campo das emoções e do intelecto, amalgamando “dedos”, “gosto”, “sofrimento” e “pensamento”. Note-se que o pensamento é associado a algo cortante, o gume. Desta forma, o sujeito poético apresenta-nos um «eu» complexo que, simultânea e confusamente, interage com o mundo através dos sentidos, das emoções e do intelecto.
    O nome «perfume», presente logo no verso inicial, pode constituir uma referência ao poder encantatório da poesia. Recordemos, a este propósito, as palavras de Otávio Paz (O arco e a lira), segundo o qual “A atitude do poeta é muito semelhante à do mago”.
    A segunda estrofe – um monóstico – associa-se ao título, dado que o sujeito poético, embora desconhecendo o caminho, parece iniciar uma trajetória: “Por onde é que eu vou?”
    A terceira estrofe foca-se num objeto concreto e inanimado: as portas. O «eu» anuncia que as fechou, mas de um modo não convencional, pois, em vez do movimento habitual para as manejar, as roda. Ora, o ato de rodar é mais demorado do que o gesto habitual, o que exige sacrifício e esforço por parte do «eu»: “Custaram tanto a rodar!”. Por sua vez, a presença do pronome indefinido «Ninguém» realça a sua solidão e o apelo em vão: “Se chamasse, ninguém vinha.” Por outro lado, o recurso ao pretérito perfeito do indicativo (“Fechei”) sugere uma tentativa difícil de se desenvencilhar do passado. A interrogação seguinte (“Para que se há de chamar?”) acentua a solidão e a inutilidade de qualquer esperança na obtenção de ajuda.
    Novo monóstico sugere que as experiências do passado deram lugar à tentativa de experimentar novas vivências: “Que caminho estranho!” Esta exclamação evidencia o espanto do sujeito poético face à estranheza do caminho que se lhe oferece. Convém notar que os monósticos do poema são caracterizados pelo tom questionador (interrogações) ou de perplexidade (exclamação). Sucede que esses questionamentos e esse espanto estão associados ao presente, como se este tempo fosse estranho ao «eu», que aparentemente tem mais familiaridade com o passado (bem como com o futuro). O passado está associado à memória e a factos que sucederam, ao passo que o futuro é incerto, hipotético, dado que ainda não aconteceu. Assim sendo, justifica-se plenamente a identificação do sujeito poético com o passado e o futuro em detrimento do presente, visto que é neles que reside a atemporalidade, isto é, a possibilidade de transgredir as imposições do cronológico.
    Após uma “viagem” pela natureza do «eu» poético, a quinta estrofe introduz o «tu» de forma repentina e inesperada. A sua descrição é feita de forma ambivalente. De facto, começa por ser referido como «coisa», algo que o afasta da ideia de humano. Isto significa que ele se aproxima do indefinido ou do domínio em que as palavras se tornam insuficientes para qualquer tipo de conceituação. Essa incapacidade de definição do «tu» abrange os dois versos iniciais da estrofe: “Eras coisa tão sem forma, / tão sem tempo, tão sem nada…”.
    No entanto, no verso 3, demarcado por travessões e finalizado por exclamação, o «tu» é caracterizado como “arco-íris do meu dilúvio!”, um fenómeno natural, portanto. O facto de o «tu» ser associado a um fenómeno natural bastante raro, caracterizado pela multiplicidade de cores, sugere que o «tu» proporciona ao sujeito poético cor e claridade, num cenário onde predomina o caos e a escuridão. Por outro lado, o interlocutor ser representado por um arco-íris pode sugerir a sua capacidade de trazer serenidade e alegria, suavizando a existência conflituosa do «eu». Esse contacto entre o «eu» e o «tu» ocorreu no passado, como se pode depreender do uso do pretérito imperfeito do indicativo (“Eras”), o que significa que foi trazido para o presente através da memória, bem como a valorização daquele tempo sobre este último.
    Novo monóstico interrogativo (“Ninguém mais caminha?”) enfatiza a solidão do sujeito poético, bem como evoca a sua ausência de familiaridade relativamente ao caminhar, já indiciada em “Que caminho estranho!”.
    O início da sétima estrofe (“A noite bebeu-te as cores / para pintar as estrelas”) sugerem a «morte» do interlocutor, mas este evento faz parte também do passado, que é revivido no presente através da memória. Deste modo, podemos associar o título do poema a uma nova viagem existencial, a do sujeito poético pelas suas experiências passadas, presentes e até as possíveis futuras. Por outro lado, essa viagem pelo tempo parece ser impulsionada, essencialmente, pela necessidade de se unir ao «tu».
    No terceiro verso desta estrofe, é destacada a ação do olhar: “Desde então, que é dos meus olhos? / Voaram de mim para as nuvens.” Será através do olhar que o sujeito poético  poderá reentrar o «tu», como se depreende a partir da penúltima estrofe. Essa viagem far-se-á pela “noite mais densa”, para o céu, o lugar onde o interlocutor se encontra e o lugar que indicia uma referência à morte. Dado que se associa à incerteza, ao mistério, compreende-se que o céu, simbolizando a morte, apresente as mesmas características do mar. Procurando recuperar a ligação perdida ao «tu», essa espécie de “paraíso perdido”, o futuro consiste em prosseguir a viagem, isto é, em navegar pelos mistérios da morte através da sua própria contemplação. De tudo isto resulta a noção de que esse reencontro é incerto e a razão da viagem constitui a própria busca.

domingo, 23 de julho de 2023

Análise do poema "Mulher ao Espelho", de Cecília Meireles


   
Hoje, que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.

 
Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz,
já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.

 
Que mal faz, essa cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?

 
Por fora, serei como queira
a moda, que me vai matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.

 
Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus,
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.

 
Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.

 
    O poema “Mulher ao espelho” faz parte da obra Mar Absoluto, publicado em 1945.
    Começando a análise pelo título, um espelho é um objeto que, simbolicamente, reflete a verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência. Assim sendo, no caso desta composição poética, sugere a ideia de autorreflexão numa busca existencial, nas circunstâncias de uma mulher.
    O poema abre com o advérbio de tempo «hoje», que presentifica o momento da reflexão e o identifica com o momento da leitura. Os pronomes «esta» e «aquela» indicam a proximidade e a distância, que podem ser espacial ou temporal: «esta» de hoje e/ou «aquela» de ontem ou de amanhã. O estar entre estas dimensões estende-se à reflexão existencial, pois o sujeito poético coloca-se no lugar do não ser, a morte: “pois, seja qual for, estou morta.”
    Deste modo, podemos considerar que o vocábulo «morta» se refere à morte existencial. É preciso ter em conta que, filosoficamente, a morte pode ser entendida como o início de um novo ciclo de vida, como o fim de um ciclo de vida ou como possibilidade existencial. No caso do poema, aplica-se este último sentido, dado que o sujeito poético olha para a morte como o deixar de existir ou o deixar de ser. Presentemente, o «eu» não é mais nada, o que é confirmado pelo facto de o verso terminar em ponto final: ela está morta, não tem mais o que viver.
    A partir da aceitação da morte, o «eu» dá início a uma reflexão sobre as diversas facetas que teve ao longo da vida: «loura», «morena». Para isso, refere o nome de quatro mulheres (Margarida, Beatriz, Maria, Madalena), referências a personagens literárias. De facto, Margarida refere-se a Marguerite Gautier, personagem de A Dama das Camélias, romance de Alexandre Dumas, e da Traviata, ópera de Verdi, ambas contando a história de uma mulher mundana; Beatriz relaciona-se com Beatrice Portinari, amada do poeta Dante, imortalizada por este na Divina Comédia e na Vita Nuova, como um ser puro e ideal; Maria é, obviamente, a Virgem, mãe de Jesus Cristo, símbolo religioso da pureza e perfeição; por último, Madalena é a prostituta bíblica, exemplo da mulher pecadora e arrependida. Estilisticamente, a anáfora dos versos 5ª 7, as formas verbais no pretérito perfeito do indicativo e os adjetivos antitéticos (loura / morena) sugerem as mudanças vividas pelo sujeito poético em busca da própria imagem. Além disso, a antítese «loura»/«morena» representa, antes de mais, a busca feminina pela beleza e perfeição físicas: “Quero apenas parecer bela”.
    Mas não é apenas o físico que está em questão. De facto, o «eu» reflete também sobre a personalidade, como se pode constatar pela enumeração dos quatro nomes femininos, alternando as imagens da mulher santa, pura, e da mulher sensual e vaidosa. Esta referência a figuras femininas de personalidades divergentes aponta para as mudanças de caráter e sugere a existência de alguma conflitualidade no que diz respeito à autoimagem do «eu», mostrando a sua perturbação por ter sido tantas, procurando agora encontrar-se ou ser alguém. De certo modo, este passo do poema recorda a questão da despersonalização e da multiplicidade de «eus» de Fernando Pessoa. Basta pensar, por exemplo, no poema “Não sei quantas almas tenho”.
    O último verso da estrofe mostra, através das formas verbais no pretérito perfeito («pude», «quis»), evidencia a frustração do sujeito poético por nunca ter sido o que queria ser: “Só não pude ser como quis.” Sucede que, com a definição do desejo pela negativa, levanta-se a dúvida: o que queria o «eu» ser?
    A terceira estrofe é toda ela uma interrogação. O sujeito poético, ao referir-se à cor fingida do seu cabelo e do seu rosto, critica o facto de o mundo ser feito de aparências. De facto, tudo parece ser «tinta», maquilhagem, aparentemente muito bela, mas só existe para esconder ou disfarçar quem ou o que realmente é. Deste modo, as características da cor do cabelo e do rosto estão associadas à ideia de falsidade e superficialidade; tudo – as pessoas, o mundo, a vida, o contentamento, o desgosto – é ilusório, é tinta.
    A transitoriedade de tudo e a efemeridade da vida são temas presentes também nesta estrofe, tendo em conta que a tinta representa a ilusão, o engodo que vai da aparência pessoal (cabelo e rosto) para o mundo e a vida, e atinge o íntimo do  «eu» (o contentamento, o desgosto), ou seja, todos os sentimentos se tornam momentâneos e passageiros.
    A quarta estrofe abre com a referência a transformações ocorridas no exterior do sujeito lírico. Assim, exteriormente manifesta o desejo de ser como a moda o determinar. Neste contexto, a moda pode representar a busca do próprio estilo, todavia o bom gosto que ela dita escraviza e aprisiona os indivíduos, promovendo a despersonalização do «eu», que acaba por incorporar-se no todo e perder a noção da própria imagem.
    Por outro lado, como a moda é um fenómeno transitório, a moda representa tudo o que é superficial e passageiro, associando-se à vaidade dos seres humanos; trata-se de um estereótipo da beleza que se liga à imagem exterior. Tudo isto tem consequências para o sujeito poético: a morte. E quem é o responsável por esse desfecho? Exteriormente, o «eu» segue a moda; por dentro, perde-se, morre: “Por fora, serei como queira / a moda, que me vai matando.”
    A gradação dos versos 15 e 16 (“Que me levem pele e caveira ao nada”) sugere que, para o «eu», a morte é natural e esperada. A presença da morte acentua-se nas duas últimas estrofes, aparecendo, neste caso, ligada ao domínio do religioso. Porquê e para quê? Se é verdade que a busca interior lhe trouxe dor e sofrimento, ele espera que mais tarde terá a recompensa de encontrar Deus, falar com ele. A forma verbal «viu», no pretérito perfeito do indicativo, aspeto perfetivo, indica uma ação concluída (a lembrança do sofrimento), enquanto «falará», no futuro do indicativo, remete para a certeza do encontro com a divindade.
    Filosoficamente, a morte representa a libertação do sofrimento e das preocupações, não constituindo um fim em si mesma. Pelo contrário, “mors ianua vitae” (a morte é a parte da vida), isto é, ela constitui a libertação da alma e uma forma de a pessoa se arrepender dos pecados. Por outro lado, a visão religiosa da morte aponta para a ideia de eternidade. Deste modo, o fim da existência deixa de constituir algo terrível e dramático e passa a ser encarado como uma forma de se tornar eterno e alcançar o paraíso, proporcionando descanso para a alma, o espírito. A presença do polissíndeto (“olhos, braços e sonhos seus / e morreu pelos seus pecados” – vv. 18-19) sugere as etapas necessárias para se obter a redenção.
    O primeiro verso da última estrofe indicia a libertação do sujeito poético dos seus pecados, o espírito purificado da cabeça aos pés, quando se concretizar o encontro com Deus: “Falará, coberta de luzes, / do alto penteado ao rubro artelho”. De seguida, no penúltimo verso é introduzido o símbolo da cruz e, no último, o do espelho. Assim, algumas pessoas “expiram sobre cruzes”, isto é, constroem um modo de vida assente nos princípios de uma religião, buscando um Deus, mesmo que tal implique dor e sofrimento (as cruzes). Por seu turno, o espelho representa a procura de si, seguindo as materialidades do mundo (a beleza, a moda, a vaidade, etc.), numa tentativa de a pessoa se encontrar. Seja como for, opte-se por qualquer uma das hipóteses, o desenlace será sempre o mesmo: a morte, porque todos morremos.

Análise do poema "Transição", de Cecília Meireles


    Este poema foi publicado em 1972, na obra Mar Absoluto, e trata o tema da fugacidade do momento, como o título, desde logo, indicia. De facto, a palavra “transição” remete para a passagem do tempo.
    O sujeito poético – feminino (“adjetivo “intacta”) – mostra “o amanhecer e o anoitecer”, que aponta para a rapidez com que as coisas transitam, pela sugestão da sucessão de muitos dias e noites. Contudo, essa celeridade que caracteriza a sucessão das coisas não afeta o «eu» poético: “parece deixarem-me intacta”. É como se estivesse frente ao espelho e não visse as mudanças por que vai passando. Apenas consegue ver o agora, o que é naquele momento: “mas os meus olhos estão vendo / o que há de mim, de mesma e exata”.
    A segunda estrofe inicia-se com uma antítese (“tristeza e alegria”) que mostra como o sujeito lírico se sente, que esses sentimentos que experimenta e entrelaçam os seus pensamentos o moldam a cada instante e o fazem constatar que a cada transformação que sofre um «eu» se «despedaça» para que outro nasça: “na que estou sendo a cada instante, / outra imagem se despedaça”. O sujeito poético evidencia a natureza dialética do tempo, cuja principal lei é a transformação. A cada instante algo muda com o tempo: os pensamentos, os sentimentos e as emoções do ser que sofre com a transitoriedade da vida.
    O sujeito poético vive o mistério da vida entre a tristeza e a alegria e esse mistério pertence-lhe, mas não é percecionado por ninguém de fora, apenas por ele mesmo, que o percebe na vivência do ser através dos “turvos rostos sucedidos” que guarda na memória. O nome «tanque» é uma metáfora que sugere o reservatório das memórias ou o lugar onde as lembranças estão armazenadas. De acordo com o «eu», essa memória é clara, ou seja, o «eu» consegue lembrar-se facilmente das suas recordações nos turvos rostos que se sucederam e já não possui mais.
    Na quarta estrofe, o sujeito poético exprime, de forma melancólica, que “ninguém distingue a leve sombra / que o autêntico desenho mata”, ou seja, ninguém consegue compreender as mudanças sentimentais que ocorrem em si, mesmo que estejam estampadas na figura do ser, pois, para todos, apesar da transitoriedade do amanhecer e do anoitecer, ela continua “a mesma, continuada e exata”, ou seja, não mudou.
    A última estrofe, uma quintilha, contém uma reflexão sobre a passagem e a duração do tempo. O sujeito poético reconhece as mudanças por si sofridas e as que estão por acontecer. Além disso, chora pelas mutações por que passou e chorará pelas que ainda sofrerá no futuro: “chorai, olhos de mil figuras [hipérbole] / pelas mil figuras passadas [hipérbole] / e pelas mil que vão chegando” [hipérbole].
    Na penúltima e na última estrofe, o sujeito poético reflete e alude à noite e ao dia, enfatizando a passagem descrita no início do poema (“amanhecer e anoitecer”), portanto é nessa passagem do tempo entre noite e dia que os rostos se sucederam, onde mil figuras passaram e onde outras mil estão por vir. Essas mudanças, embora “não consentidas”, são “recebidas e esperadas”, como alguém que não admite a velhice e a morte, mas espera por elas, mesmo que não sejam certas e exatas, cabendo-lhe apenas a tarefa de as aguardar e aceitar.
    Cada momento da vida do «eu» leva-o a vivenciar diferentes acontecimentos e sentimentos, como o amor, a tristeza e a felicidade. No entanto, se a vida é tão breve e passageira, esses sentimentos são tao fugazes como os instantes que se passam? Ou eternizam-se nas suas ações a ponto de permanecerem no seu “tanque da memória”?

quarta-feira, 3 de maio de 2023

Análise do poema "Epigrama N.º 2", de Cecília Meireles


                 No primeiro verso, o «eu» poético apresenta a felicidade escrita em maiúscula, personificada, e caracteriza-a como algo efémero: “És precária e veloz”. Por outro lado, é algo difícil de acontecer, que “custa a vir e, quando vens, não se demora”. A velocidade com que os momentos de felicidade acontecem está relacionada com o tempo e a sua transitoriedade, visto que tudo no universo gira em torno do tempo e da ação dele sobre os seres.

                Por outro lado, a felicidade constitui a razão de ser do tempo, a qual, por ser tão “precária e veloz”, “obrigou” o ser humano a medir o tempo e a inventar as horas, para que esses momentos fossem medidos e valorizados: “Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo, / e, para te medir, se inventaram as horas.”

                Na segunda estrofe, o sujeito poético designa a felicidade como “coisa”, o que significa que é muito difícil compreender a sua natureza, defini-la. Esta ideia é frisada quando o «eu» qualifica a felicidade com o adjetivo «estranha», sugerindo, assim, que é algo que não se pode explicar (estranha), apenas sentir. No entanto, apesar de ser um sentimento bom, pode tornar-se muitas vezes “doloroso”, dado que são tristes as horas subsequentes quando comparadas aos momentos em que ela se fez sentir.

                A felicidade, tal como o tempo, é transitória, passageira, o que torna a vida do homem mais triste, uma vez que, após a passagem dos momentos felizes, resta ao homem uma realidade monótona porque rotineira, pelo que aquele inventou as horas, porque, desse modo, saberá dar valor ao tempo em que está feliz: “Porque um dia se vê que as horas todas passam, / e um tempo, despovoado e profundo, persiste.”

                O sujeito poético, no último verso, enfatiza, de forma melancólica, a transitoriedade da vida, “porque um dia se vê que as horas todas passam”. Como tudo é passageiro, a felicidade também é transitória e passa, razão pela qual o «eu» lírico se refere a “um tempo, despovoado e profundo, persiste”.

                Esta tristeza que brota após a passagem da felicidade não é individual; pelo contrário, é expressa em nome dos homens que sofrem quando a perdem ou passam por momentos de felicidade, facto que lhe ensina o valor do tempo e da sua existência, bem como a importância do significado da felicidade, visto que o sujeito poético é alguém que já experimentou o sabor da felicidade, pelo que conhece o quão importante é e o que há a esperar dela.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Análise de "Retrato", de Cecília Meireles

                 Este poema de Cecília Meireles é constituído por três quadras de versos maioritariamente brancos ou soltos e nele é traçado o autorretrato do sujeito poético, daí o uso da primeira pessoa do singular.

                De facto, o título do texto remete exatamente para o traçar do próprio retrato, tanto físico (as feições do rosto e do corpo) como psicológico (do qual ressalta a angústia existencial interior, motivada pela consciência da passagem do tempo).

                O sujeito poético começa por constatar a mudança operada no seu rosto, graças à passagem do tempo: “Eu não tinha este rosto de hoje” – v. 1. No segundo verso, são enumeradas três características desse rosto: “calmo”, “triste” e “magro”. Destes traços ressalta a tristeza do «eu», originada talvez pela própria mudança e pela consciência tardia da transitoriedade da vida. O tom negativo do retrato é acentuado nos dois versos seguintes (anafóricos), que acrescentam mais duas características: os olhos vazios e o lábio amargo. Os olhos azuis parecem sugerir o vazio existencial que marca o presente do «eu», enquanto o lábio (note-se o uso do singular) evidencia a sua amargura e, por extensão, sugere a ausência do sorriso, motivados pela perda da beleza (do próprio «eu» e da vida).

                Deste modo, a primeira quadra destaca a preocupação, a tristeza, a amargura e a melancolia do sujeito poético por causa da passagem do tempo e do envelhecimento, bem evidentes nas mudanças que constata terem-se operado. Note-se, ainda, o facto de os elementos corporais servirem não tanto para a descrição de traços físicos, mas sim psicológicos. A única característica física que é associada ao rosto é a magreza e, ainda assim, serve como «justificação» para a sua tristeza.

                No verso inicial da terceira estrofe, o sujeito poético prossegue o seu autorretrato descrevendo as mãos, que representam, frequentemente, a força e o trabalho. No caso do poema, é destacada a sua fraqueza / fragilidade (“sem força” – v. 5) e, logo de seguida, são descritas como “Tão paradas e frias e mortas” (polissíndeto e tripla adjetivação), enfatizando a sua degradação e frieza. O terceiro verso foca-se no coração, que perdeu o seu vigor e os sentimentos, pois o «eu» observa-o e constata que está escondido: “Eu não tinha este coração / Que nem se mostra.”

                Na terceira quadra, o sujeito lírico revela que não se apercebeu da ocorrência da mudança ao longo dos anos: “Eu não dei por essa mudança”. Que mudança foi essa? “Tão simples, tão certa, tão fácil.”. A tripla adjetivação, a anáfora e a reiteração do advérbio «tão» reforçam o caráter da transitoriedade, que ocorreu tanto física quanto interiormente. A mudança ocorreu de forma rápida e cruel.

                Nos derradeiros dois versos, está presente uma metáfora e uma interrogação em forma de discurso direto, anunciado pelos dois pontos e pelo travessão: o espelho representa um tempo passado, onde as feições eram outras e marcavam uma outra idade, e a face é o reflexo da passagem do tempo e da velhice, em suma, do decurso da vida. O último verso sintetiza uma reflexão existencial profunda: onde foi que a essência do «eu» lírico se perdeu?

                Em suma, Cecília Meireles questiona, neste texto, a mudança na vida do ser humano decorrente da passagem do tempo no sentido do envelhecimento. Os anos passam, o aspeto físico das pessoas altera-se, as doenças surgem, as limitações físicas acentuam-se e tudo isso se reflete na parte psicológica.

                A velhice torna-se visível na degeneração do corpo, no sentido da vida para a morte: a mão que perde a força, se torna fria e morta.

 

terça-feira, 1 de abril de 2014

Análise de "O último andar" - Cecília Meireles


1       No último andar é mais bonito:
         do último andar se vê o mar.
         É lá que eu quero morar.

         O último andar é mais longe:
5       custa muito a lá chegar.
         Mas é lá que eu quero morar.

         Todo o céu fica a noite inteira
         sobre o último andar.
         É lá que eu quero morar.

10    Quando faz lua, no terraço
         fica tudo luar.
         É lá que eu quero morar.

         Os passarinhos lá se escondem,
         para ninguém os maltratar,
15    no último andar.

         De lá se avista o Mundo inteiro,
         tudo parece perto, no ar.
         É lá que eu quero morar:

         no último andar.

                Neste poema, o sujeito poético exprime o seu desejo de habitar o “último andar”, que caracteriza de diferentes formas.

                Assim, começa por o apresentar como «mais bonito» (v. 1), pois dele «se vê o mar». Trata-se, portanto, de um espaço amplo, vasto, ilimitado, como é sugerido pela amplitude da visão que proporciona, do mar e do céu (3.ª estrofe). É nesse lugar, pois, que o «eu» deseja morar.
                Na segunda estrofe, associa-o à altura («é muito longe» ‑ v. 4) e à consequente dificuldade de acesso («custa-se muito a chegar» ‑ v. 5). Não obstante, reafirma, convictamente, o desejo de aí morar.
                A ideia de amplitude e vastidão é reafirmada na terceira estrofe. De noite, é possível ver todo o céu (hipérbole), quase como se estivesse ao alcance da mão e nele fosse possível tocar. O próprio luar parece repousar inteiramente nele.
                No último andar, os passarinhos (diminutivo afetivo) escondem-se para ninguém os maltratar. Assim, o espaço assume-se como uma espécie de refúgio e sinónimo de liberdade. De refúgio, porque serve de proteção e acolhimento, e de liberdade, pelo que o voo das aves no céu ilimitado, metaforicamente, simboliza.
                Por último, desse lugar é possível avistar-se o mundo inteiro e «tudo parece perto» (hipérbole). Ou seja, o último andar é um local elevado quer no plano físico quer no plano moral, pelo que representa enquanto espaço simbólico: local associado ao anseio de liberdade (que caracteriza o ser humano de qualquer época e espaço), local de refúgio e proteção, local que permite o acesso à vastidão do mundo e à contemplação das suas belezas, local de desejo de transcendência e plenitude.

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