Português: 14/02/22

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Análise de "Poema em Linha Reta"

            “Poema em linha reta” é um texto da autoria de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, um engenheiro de influência britânica, cuja obra enquanto poeta evolui do Decadentismo até à abulia e tédio, passando pelo Futurismo sensacionista.
            Neste poema, o sujeito poético começa por fazer uma afirmação confessional impactante: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.” Este dístico coloca-nos desde logo perante o tema que vai ser desenvolvido nos versos seguintes: a crítica às relações sociais e à falsidade e hipocrisia que as caracteriza. O «eu» observa que todas as pessoas suas conhecidas procuram passar uma imagem de perfeição, de triunfo e sucesso permanente, recusando qualquer hipótese de fracasso, derrota ou humilhação. De facto, essa gente nunca levou porrada, isto é, nunca foi “agredido” pelos outros ou pela vida, e não perde, é campeã em tudo; transmite uma imagem de triunfo e de sucesso. Note-se que o «eu» não afirma ter amigos, apenas conhecidos, o que justifica ao longo do texto pela dificuldade em se relacionar com as pessoas, porque são falsas e hipócritas. Ele socorre-se de adjetivação pejorativa para se autocaracterizar como um ser imperfeito, desde logo porque não se adequa às regras de etiqueta e às normas sociais e, por isso, é desprezado pelos outros. Ele assume-se como ridículo e cómico aos olhos dos demais, como um parasita, arrogante e mesquinho cobarde.
            Depois de denunciar, ironicamente, esta falsa imagem de perfeição dos outros, o sujeito poético, através de um registo coloquial, já anunciado no dístico inicial (“porrada”), enumera os seus defeitos e falhas e discorre sobre a sua condição de inferioridade social, ao assumir uma «persona» que não corresponde ao que a sociedade esperava. Assim, assume-se como alguém reles, porco, vil, parasita e sujo, o que significa que não procura dar de si uma imagem de homem perfeito, sério, bom; pelo contrário, chega ao ponto de assumir que não cumpre sequer as regras básicas de higiene que são esperadas: “porco”, “sujo”, sem “paciência para tomar banho”.
            E prossegue, afirmando-se como “ridículo”, “absurdo”, “grotesco” e “mesquinho” e que “tem enrolado os pés publicamente nos tapetes da etiqueta”, ou seja, que se sente humilhado por não saber como agir em público; é um socialmente inapto, questionando regras de etiqueta. A metáfora do verso 8 (“Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas”) destaca o facto de o sujeito poético mostrar inaptidão no cumprimento das regras de etiqueta, o que o torna ridículo aos olhos da sociedade. Ele não é capaz de se relacionar com os outros e é maltratado por eles, não sendo capaz de os enfrentar, o que revela cobardia da sua parte (“tenho sido enxovalhado e calado”). Quando tenta responder, sente-se mais ridículo ainda: “Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda”. Por outro lado, o seu comportamento social inadequado é percecionado pelas criadas de hotel e pelos moços de fretes, que o desprezam quando deveriam trata-lo com algum respeito e deferência. A referência às criadas de hotel e aos moços de fretes acentua a dimensão irrisória do «eu» aos olhos da sociedade. Porquê? Estes indivíduos situam-se no nível mais baixo da hierarquia social, contudo eles mesmos consideram o sujeito poético um indivíduo ridículo.
            A sua vergonha acentua-se ao confessar a sua desonestidade, referindo-se às suas “vergonhas financeiras”, motivadas por pedir emprestado e não pagar, numa confissão de admissão de insucesso e ruína financeira. A seguir assume, de novo, a sua cobardia, a sua incapacidade de se defender e de lutar pela própria honra, preferindo “fugir” e desviar-se dos golpes/ataques alheios: “Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado”. Tudo isto o leva a confessar o seu comportamento estúpido e ridículo no contexto de uma sociedade pautada pelo sucesso, pelo cavalheirismo e pela cortesia, o isolamento e a solidão (por não estar à altura das expectativas e das normas sociais e reconhecer as suas falhas e insuficiências), o sentir-se excluído e à parte dos demais: “Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo”. Ele constata que não tem par no mundo, pois, quando revela todos os seus defeitos e imperfeições, diferencia-se do resto da sociedade, que apenas aparenta virtudes e sucessos, daí o seu isolamento e solidão, num mundo onde predomina o fingimento, até porque é o único a reconhecer referidos defeitos e imperfeições.
            Esta estrofe coloca-nos perante alguém inadequado à convivência social, incompreendido até pelo seu fracasso. Recorrendo à enumeração e, sobretudo, à ironia, o «eu» destaca o contraste entre os indivíduos que sentem a necessidade de existir uma aparência de grandeza e sucesso pessoal e o sujeito lírico e os seus fracassos, insucessos e defeitos.
            Fazendo uso de um esquema elaborado pela editora Santillana, podemos sintetizar o conflito entre o «eu» poético e as demais pessoas da seguinte forma:


            Estilisticamente, além da enumeração e da ironia, há a realçar o recurso à anáfora, que enfatiza a postura do «eu», e a repetição da expressão “tantas vezes”, que acentua o contraste entre o sujeito poético e os outros. De facto, ao contrário dos seus conhecidos (não amigos), o «eu» reconhece que frequentemente assume comportamentos que o tornam ridículo e até desprezível. Além disso, a presença dos advérbios de modo (“irrespondivelmente”, “indesculpavelmente”) salientam a recusa do sujeito lírico em procurar razões que justifiquem as suas atitudes indignas: ao contrário dos outros, não busca encontrar pretextos que justifiquem ou tornem o seu comportamento aceitável, optando antes por se assumir plenamente como é.
            A partir da estrofe seguinte, o sujeito poético deixa de lado a ironia e expõe o seu conflito de identidade e denuncia a falta de sinceridade e a hipocrisia reinantes: “Toda a gente que eu conheço e que fala comigo / Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, / Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…”. Deste modo, o «eu» volta a destacar o facto de os «outros» procurarem transmitir uma imagem de triunfo e sucesso. Esta postura dos demais acentua a sua dificuldade em comunicar com eles, em virtude de fingirem ser perfeitos e só transmitirem o que lhes é conveniente.
            Perante este panorama, exprime o desejo de encontrar alguém, uma «voz humana», que se expresse como ele faz, revelando todos os seus defeitos e falhas. Mesmo quando assumem um ou outro fracasso, jamais o fazem com as suas grandes falhas, “são todos o Ideal”. Desta forna, o «eu» denuncia a sociedade por cultivar as aparências, por não admitir ou tolerar o fracasso, razão pela qual as pessoas sentem a necessidade de adotar uma postura infalível, bem marcada pelo recurso ao nome «príncipe», que traduz a tal postura inquestionável de alguém que ocupa a posição mais destacada entre os seus pares. O «eu» aproveita para ir mais além e proceder à distinção entre o erro humano – o pecado – e a miséria humana que transparece de uma vida caracterizada pelo ridículo de um fracasso recorrente que acarreta o desprezo da sociedade. Em suma, o «eu» manifesta o desejo de que os outros se libertem dessa necessidade de passar uma imagem ideal e perfeita e mostrem a sua dimensão humana. Para o sujeito, a perfeição dos outros associa-se não tanto a um caráter irrepreensível a nível ético, mas a uma imagem de virilidade que exclui todos os comportamentos considerados desonrosos, como, por exemplo, a cobardia. É por isso que os pecados e as atitudes violentas são inaceitáveis.
            A falsidade e a hipocrisia daqueles que, mesmo quando cometem erros ou sofrem adversidades, mantêm a dignidade, as aparências não comprometendo jamais a sua imagem pública. O sujeito poético recusa assumir o comportamento social adequado, que se espera de si, pois não acredita nele, e, assim, denuncia a hipocrisia que está na base deste comportamento e que tem como consequência a sua exclusão de uma sociedade que prima pelo sucesso aparente. Por outro lado, o poema permite-nos entrever alguns dos costumes sociais da época em que foi escrito (primeiras décadas do século XX), nomeadamente certas normas e etiquetas em consonância com o desenvolvimento da indústria e a ascensão do capitalismo, que trouxeram consigo alguns valores menos humanos e mais orientados para o luxo e o consumismo.
            A sociedade atual, em pleno 2022, mantém estes traços denunciados por Campos no poema. Por exemplo, a vaidade, a falsidade ou a hipocrisia são traços que encontramos todos os dias nas mais diferentes situações. De igual modo, a solidão, o isolamento ou o ostracismo a que é votado quem não pensa ou não se comporta como “é suposto” são bem comuns, com fenómenos como o «bullying» a atingir níveis inusitados, muito também graças à explosão das chamadas redes sociais. A vaidade, o culto da personalidade, o egocentrismo, a multiplicação de heróis são recorrentes: toda a gente quer aparecer, ser «famosa», mesmo que recorrendo a métodos ou adotando comportamentos questionáveis, como, por exemplo, a exposição exaustiva da vida privada; atores, modelos, cantores, em suma, artistas em geral apresentam-se muitas vezes como seres superiores aos comuns mortais em termos financeiros, de poder ou força, de tal forma que parecem pairar como os deuses do Olimpo.
            O poema prossegue com uma interrogação do sujeito lírico: “Onde há gente neste mundo?” Esta interrogação retórica encerra a denúncia da profunda solidão que persegue o indivíduo no contexto da vida moderna, já então marcada pelos avanços sociais e tecnológicos. Porém, a realidade é que não é apenas o «eu» que é humano; os outros também têm comportamentos menos dignos (“Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?”), só que não são sinceros nem honestos em relação aos seus fracassos, falhanços e vulnerabilidades: “Poderão as mulheres não os terem amado, / Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!” O importante é sempre o culto das aparências, de uma imagem de sucesso, e não parecer ridículo.
            Já o «eu» assume ser ridículo, mas, ao contrário dos outros, não foi traído, e só é ridículo exatamente porque não esconde, antes confessa os seus fracassos e reconhece as suas debilidades. Esta postura diferente tem como consequência a impossibilidade de comunicar com os demais indivíduos, que designa como seres «superiores» devido à imagem irreal e falsa: “Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?”
            Socorrendo-nos novamente do trabalho da editora Santillana, podemos sintetizar a questão da crítica social da seguinte forma:


            Através deste poema, Álvaro de Campos critica o vazio, a falsidade e a hipocrisia de uma sociedade que vive de aparências, bem como a ausência de espírito crítico das pessoas em geral, a quase obsessão de certas pessoas de granjear o respeito dos outros e o receio ou a incapacidade de assumir as suas falhas e os seus defeitos. Por outro lado, há uma clara tentativa de suscitar nos outros o culto da sinceridade, da honestidade, da transparência e combater as ilusões de grandeza, destinadas a alimentar o seu ego. É claro que a intenção de Álvaro de Campos passa por denunciar a hipocrisia da sociedade do seu tempo, nomeadamente das pessoas que escondem os seus defeitos e falhas, mostrando-se como seres imaculados, de sucesso e perfeitas.
 
            O título do poema é irónico e antecipa a feição crítica do texto, que visa os indivíduos que vivem sempre em “linha reta”, isto é, que vivem como se a vida não tivesse qualquer tipo de fracassos ou humilhações e fosse marcada por vitórias constantes. A existência não é uma “linha reta”, antes é torta, feita de altos e baixos, de erros e acertos, de imperfeições e contradições. Ao longo do texto, o «eu» procura desconstruir a imagem de triunfo constante, mostrando que, na realidade, não passa de uma imagem falsa e hipócrita.

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