“Poema
em linha reta” é um texto da autoria de Álvaro de Campos, heterónimo de
Fernando Pessoa, um engenheiro de influência britânica, cuja obra enquanto
poeta evolui do Decadentismo até à abulia e tédio, passando pelo Futurismo
sensacionista.
Neste
poema, o sujeito poético começa por fazer uma afirmação confessional
impactante: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. / Todos os meus
conhecidos têm sido campeões em tudo.” Este dístico coloca-nos desde logo
perante o tema que vai ser desenvolvido nos versos seguintes: a crítica às
relações sociais e à falsidade e hipocrisia que as caracteriza. O «eu» observa
que todas as pessoas suas conhecidas procuram passar uma imagem de perfeição,
de triunfo e sucesso permanente, recusando qualquer hipótese de fracasso,
derrota ou humilhação. De facto, essa gente nunca levou porrada, isto é, nunca
foi “agredido” pelos outros ou pela vida, e não perde, é campeã em tudo;
transmite uma imagem de triunfo e de sucesso. Note-se que o «eu» não afirma ter
amigos, apenas conhecidos, o que justifica ao longo do texto pela dificuldade
em se relacionar com as pessoas, porque são falsas e hipócritas. Ele socorre-se
de adjetivação pejorativa para se autocaracterizar como um ser imperfeito,
desde logo porque não se adequa às regras de etiqueta e às normas sociais e,
por isso, é desprezado pelos outros. Ele assume-se como ridículo e cómico aos
olhos dos demais, como um parasita, arrogante e mesquinho cobarde.
Depois
de denunciar, ironicamente, esta falsa imagem de perfeição dos outros, o
sujeito poético, através de um registo coloquial, já anunciado no dístico
inicial (“porrada”), enumera os seus defeitos e falhas e discorre sobre a sua
condição de inferioridade social, ao assumir uma «persona» que não corresponde
ao que a sociedade esperava. Assim, assume-se como alguém reles, porco, vil,
parasita e sujo, o que significa que não procura dar de si uma imagem de homem
perfeito, sério, bom; pelo contrário, chega ao ponto de assumir que não cumpre
sequer as regras básicas de higiene que são esperadas: “porco”, “sujo”, sem
“paciência para tomar banho”.
E
prossegue, afirmando-se como “ridículo”, “absurdo”, “grotesco” e “mesquinho” e
que “tem enrolado os pés publicamente nos tapetes da etiqueta”, ou seja, que se
sente humilhado por não saber como agir em público; é um socialmente inapto,
questionando regras de etiqueta. A metáfora do verso 8 (“Que tenho enrolado os
pés publicamente nos tapetes das etiquetas”) destaca o facto de o sujeito
poético mostrar inaptidão no cumprimento das regras de etiqueta, o que o torna
ridículo aos olhos da sociedade. Ele não é capaz de se relacionar com os outros
e é maltratado por eles, não sendo capaz de os enfrentar, o que revela cobardia
da sua parte (“tenho sido enxovalhado e calado”). Quando tenta responder,
sente-se mais ridículo ainda: “Que quando não tenho calado, tenho sido mais
ridículo ainda”. Por outro lado, o seu comportamento social inadequado é percecionado
pelas criadas de hotel e pelos moços de fretes, que o desprezam quando deveriam
trata-lo com algum respeito e deferência. A referência às criadas de hotel e
aos moços de fretes acentua a dimensão irrisória do «eu» aos olhos da
sociedade. Porquê? Estes indivíduos situam-se no nível mais baixo da hierarquia
social, contudo eles mesmos consideram o sujeito poético um indivíduo ridículo.
A
sua vergonha acentua-se ao confessar a sua desonestidade, referindo-se às suas
“vergonhas financeiras”, motivadas por pedir emprestado e não pagar, numa
confissão de admissão de insucesso e ruína financeira. A seguir assume, de
novo, a sua cobardia, a sua incapacidade de se defender e de lutar pela própria
honra, preferindo “fugir” e desviar-se dos golpes/ataques alheios: “Eu, que,
quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado”. Tudo isto o leva a confessar
o seu comportamento estúpido e ridículo no contexto de uma sociedade pautada
pelo sucesso, pelo cavalheirismo e pela cortesia, o isolamento e a solidão (por
não estar à altura das expectativas e das normas sociais e reconhecer as suas
falhas e insuficiências), o sentir-se excluído e à parte dos demais: “Eu
verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo”. Ele constata que não tem
par no mundo, pois, quando revela todos os seus defeitos e imperfeições,
diferencia-se do resto da sociedade, que apenas aparenta virtudes e sucessos,
daí o seu isolamento e solidão, num mundo onde predomina o fingimento, até
porque é o único a reconhecer referidos defeitos e imperfeições.
Esta
estrofe coloca-nos perante alguém inadequado à convivência social,
incompreendido até pelo seu fracasso. Recorrendo à enumeração e, sobretudo, à
ironia, o «eu» destaca o contraste entre os indivíduos que sentem a necessidade
de existir uma aparência de grandeza e sucesso pessoal e o sujeito lírico e os
seus fracassos, insucessos e defeitos.
Fazendo
uso de um esquema elaborado pela editora Santillana, podemos sintetizar o
conflito entre o «eu» poético e as demais pessoas da seguinte forma:
Estilisticamente,
além da enumeração e da ironia, há a realçar o recurso à anáfora, que enfatiza
a postura do «eu», e a repetição da expressão “tantas vezes”, que acentua o
contraste entre o sujeito poético e os outros. De facto, ao contrário dos seus
conhecidos (não amigos), o «eu» reconhece que frequentemente assume
comportamentos que o tornam ridículo e até desprezível. Além disso, a presença
dos advérbios de modo (“irrespondivelmente”, “indesculpavelmente”) salientam a
recusa do sujeito lírico em procurar razões que justifiquem as suas atitudes
indignas: ao contrário dos outros, não busca encontrar pretextos que
justifiquem ou tornem o seu comportamento aceitável, optando antes por se
assumir plenamente como é.
A
partir da estrofe seguinte, o sujeito poético deixa de lado a ironia e expõe o
seu conflito de identidade e denuncia a falta de sinceridade e a hipocrisia
reinantes: “Toda a gente que eu conheço e que fala comigo / Nunca teve um ato
ridículo, nunca sofreu enxovalho, / Nunca foi senão príncipe – todos eles
príncipes – na vida…”. Deste modo, o «eu» volta a destacar o facto de os
«outros» procurarem transmitir uma imagem de triunfo e sucesso. Esta postura
dos demais acentua a sua dificuldade em comunicar com eles, em virtude de
fingirem ser perfeitos e só transmitirem o que lhes é conveniente.
Perante
este panorama, exprime o desejo de encontrar alguém, uma «voz humana», que se
expresse como ele faz, revelando todos os seus defeitos e falhas. Mesmo quando
assumem um ou outro fracasso, jamais o fazem com as suas grandes falhas, “são
todos o Ideal”. Desta forna, o «eu» denuncia a sociedade por cultivar as
aparências, por não admitir ou tolerar o fracasso, razão pela qual as pessoas
sentem a necessidade de adotar uma postura infalível, bem marcada pelo recurso
ao nome «príncipe», que traduz a tal postura inquestionável de alguém que ocupa
a posição mais destacada entre os seus pares. O «eu» aproveita para ir mais
além e proceder à distinção entre o erro humano – o pecado – e a miséria humana
que transparece de uma vida caracterizada pelo ridículo de um fracasso
recorrente que acarreta o desprezo da sociedade. Em suma, o «eu» manifesta o
desejo de que os outros se libertem dessa necessidade de passar uma imagem
ideal e perfeita e mostrem a sua dimensão humana. Para o sujeito, a perfeição
dos outros associa-se não tanto a um caráter irrepreensível a nível ético, mas
a uma imagem de virilidade que exclui todos os comportamentos considerados
desonrosos, como, por exemplo, a cobardia. É por isso que os pecados e as atitudes
violentas são inaceitáveis.
A
falsidade e a hipocrisia daqueles que, mesmo quando cometem erros ou sofrem
adversidades, mantêm a dignidade, as aparências não comprometendo jamais a sua
imagem pública. O sujeito poético recusa assumir o comportamento social
adequado, que se espera de si, pois não acredita nele, e, assim, denuncia a
hipocrisia que está na base deste comportamento e que tem como consequência a
sua exclusão de uma sociedade que prima pelo sucesso aparente. Por outro lado,
o poema permite-nos entrever alguns dos costumes sociais da época em que foi
escrito (primeiras décadas do século XX), nomeadamente certas normas e
etiquetas em consonância com o desenvolvimento da indústria e a ascensão do
capitalismo, que trouxeram consigo alguns valores menos humanos e mais
orientados para o luxo e o consumismo.
A
sociedade atual, em pleno 2022, mantém estes traços denunciados por Campos no
poema. Por exemplo, a vaidade, a falsidade ou a hipocrisia são traços que
encontramos todos os dias nas mais diferentes situações. De igual modo, a
solidão, o isolamento ou o ostracismo a que é votado quem não pensa ou não se
comporta como “é suposto” são bem comuns, com fenómenos como o «bullying» a
atingir níveis inusitados, muito também graças à explosão das chamadas redes
sociais. A vaidade, o culto da personalidade, o egocentrismo, a multiplicação
de heróis são recorrentes: toda a gente quer aparecer, ser «famosa», mesmo que
recorrendo a métodos ou adotando comportamentos questionáveis, como, por
exemplo, a exposição exaustiva da vida privada; atores, modelos, cantores, em
suma, artistas em geral apresentam-se muitas vezes como seres superiores aos
comuns mortais em termos financeiros, de poder ou força, de tal forma que
parecem pairar como os deuses do Olimpo.
O
poema prossegue com uma interrogação do sujeito lírico: “Onde há gente neste
mundo?” Esta interrogação retórica encerra a denúncia da profunda solidão que
persegue o indivíduo no contexto da vida moderna, já então marcada pelos
avanços sociais e tecnológicos. Porém, a realidade é que não é apenas o «eu»
que é humano; os outros também têm comportamentos menos dignos (“Então sou só
eu que é vil e erróneo nesta terra?”), só que não são sinceros nem honestos em
relação aos seus fracassos, falhanços e vulnerabilidades: “Poderão as mulheres
não os terem amado, / Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!” O
importante é sempre o culto das aparências, de uma imagem de sucesso, e não
parecer ridículo.
Já
o «eu» assume ser ridículo, mas, ao contrário dos outros, não foi traído, e só
é ridículo exatamente porque não esconde, antes confessa os seus fracassos e
reconhece as suas debilidades. Esta postura diferente tem como consequência a
impossibilidade de comunicar com os demais indivíduos, que designa como seres «superiores»
devido à imagem irreal e falsa: “Como posso eu falar com os meus superiores sem
titubear?”
Socorrendo-nos
novamente do trabalho da editora Santillana, podemos sintetizar a questão da
crítica social da seguinte forma:
Através
deste poema, Álvaro de Campos critica o vazio, a falsidade e a hipocrisia de
uma sociedade que vive de aparências, bem como a ausência de espírito crítico
das pessoas em geral, a quase obsessão de certas pessoas de granjear o respeito
dos outros e o receio ou a incapacidade de assumir as suas falhas e os seus
defeitos. Por outro lado, há uma clara tentativa de suscitar nos outros o culto
da sinceridade, da honestidade, da transparência e combater as ilusões de
grandeza, destinadas a alimentar o seu ego. É claro que a intenção de Álvaro de
Campos passa por denunciar a hipocrisia da sociedade do seu tempo, nomeadamente
das pessoas que escondem os seus defeitos e falhas, mostrando-se como seres
imaculados, de sucesso e perfeitas.
O
título do poema é irónico e antecipa a feição crítica do texto, que visa
os indivíduos que vivem sempre em “linha reta”, isto é, que vivem como se a
vida não tivesse qualquer tipo de fracassos ou humilhações e fosse marcada por
vitórias constantes. A existência não é uma “linha reta”, antes é torta, feita
de altos e baixos, de erros e acertos, de imperfeições e contradições. Ao longo
do texto, o «eu» procura desconstruir a imagem de triunfo constante, mostrando
que, na realidade, não passa de uma imagem falsa e hipócrita.